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OS CONTRATOS INCOMPLETOS E A ARBITRAGEM

OS CONTRATOS INCOMPLETOS E A ARBITRAGEM

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

 

Contratos incompletos envolvem risco e incerteza devido ao tempo entre o acordo e o cumprimento, impactando obrigações, previsões e decisões jurídicas.

Introdução

Antes desconhecida entre os doutrinadores pátrios, a noção e as implicações jurídicas dos contratos chamados incompletos já estão bastante sedimentadas entre nós – e significativamente não no âmbito do Judiciário e talvez um pouco menos em sede de arbitragem. Por isso nos propomos a fazer uma breve análise do instituto e de suas imbricações com esta última forma de solução de conflitos.

 

1. Noção de contratos incompletos – risco e incerteza

Ela vem da economia, marcada pelos estudos de economistas norte-americanos e depois aplicada ao direito.

Os contratos no universo jurídico, no tocante ao plano do seu aperfeiçoamento, ou seja quanto ao cumprimento final das obrigações assumidas pelas partes, mostram-se como de execução imediata por ambas ou de execução diferida no tempo por uma delas ou pelas duas. É neste último cenário que se apresentam os contratos incompletos, no tocante aos efeitos produzidos para os seus signatários, fruto do exercício pelas partes da sua autonomia privada e do exercício também nela fundado de operações respeitantes ao direito de propriedade, constitucionalmente garantidos.

O fenômeno se dá tanto em relação aos contratos sinalagmáticos ou fechados, celebrados por duas únicas partes, credoras e devedoras recíprocas; como também na esfera dos contratos abertos ou associativos, estes formados por um mínimo de duas partes e sem número máximo pré-determinado, variável ao longo tempo conforme se retirem sócios antigos ou novos sejam agregados.

O que importa para o estudo da incompletude contratual e das questões econômicas e jurídicas que dela decorrem é a existência de um lapso de tempo entre a celebração do acordo e o cumprimento das obrigações correspondentes, dentro de um ambiente de risco e/ou de incerteza, ambos relacionados aos efeitos que a passagem do tempo pode proporcionar, no respeitante ao cumprimento das obrigações contratuais que – intuitivamente mesmo – nos levam a concluir que quanto maior for o lapso temporal para tal fim, maior certamente será o nível do risco e da incerteza que as envolvem.

Veja-se que não se trata de incompletude pré-contratual, o que ocorreria na presença de memorandos de entendimento, dado que um pré-contrato poderia encontrar-se também na situação acima. Ou seja, um contrato preliminar poderia ser considerado naturalmente um contrato incompleto em si mesmo ou em relação ao contrato definitivo, cujos contornos não fossem integralmente satisfeitos na sua formulação. Por outro lado, não se poderia falar de incompletude pré-contratual, consideradas certas dificuldades para a obtenção pelas partes interessadas de um nível ótimo de informações, devendo se entender que essa é uma questão colocada no plano da assimetria informacional, dado que obrigações contratuais somente nascem a partir do contrato concluído, ainda que haja custos de transação incorridos pelas eventuais futuras partes do contrato principal, na busca de minimização da referida assimetria.

O mundo ideal dos economistas claramente não existe, ou seja, o do agente absolutamente racional, cujas circunstâncias se mostrariam perenes (e sobre o qual foram construídos os modelos econômicos clássicos), resultando que o futuro foi, é, e sempre será uma incógnita.

Abre-se parênteses para observar que, desde que comecei a estudar economia, não entendia e não aceitava intuitivamente aqueles modelos estabelecidos sobre a racionalidade dos agentes econômicos, que não se adaptavam à realidade, ainda que permitissem estudar o seu objeto sob uma perspectiva abstrata. Para mim tudo funcionava como um desfile de modas, nos quais os convidados acompanham a passagem cadenciada dos modelos, nas suas indumentárias muitas vezes extravagantes, que ninguém como tais jamais as adquiria. Tratava-se mais de uma performance do que um sistema de vendas. Muito tempo depois fui salvo pela economia comportamental, uma contribuição de Richard Thaler, prêmio Nobel de 2017, o qual afirmou que as pessoas são previsivelmente irracionais, desafiando com as suas iniciativas a teoria econômica clássica. Exemplo frisante é o do estouro da boiada que ocorre nas crises das bolsas. Enquanto a racionalidade manda que se espere baixar a poeira para se desfazer dos ativos, uma parte significativa dos agentes vende rapidamente todos os ativos que têm, experimentando grandes perdas. Depois que o mercado se acalma o estrago irremediável está feito.

E quando se trata de celebrar um contrato de prestações a serem executadas depois de concluído, é natural a preocupação das partes sobre os efeitos futuros concernentes às obrigações assumidas, isto é, se: (i) poderão ser integralmente cumpridas; (ii) se o seu cumprimento for apenas parcial; (iii) mesmo passiveis de cumprimento parcial se isso se dará a um custo insuportável faticamente para o devedor; e (iv) se o cumprimento parcial for de interesse e útil para o credor.

O risco pode ser administrado pelas partes mediante a celebração de um contrato de seguro – fundado nas leis estatísticas -; ou pela adoção de cláusulas pré estabelecidas pelas partes, que o circunscrevam dentro de determinados patamares do tempo de cumprimento das obrigações concertadas e do montante dos prejuízos estimados, como é o caso do hedge.

Quanto à incerteza, que não pode ter a sua ocorrência prevista evidentemente com qualquer margem de segurança e cujos efeitos são mínima ou absolutamente desconhecidos, a única forma de administrá-los seria tomar a experiência passada e projetá-la para o futuro, por meio de um mecanismo de adivinhação, que pudesse permitir a minimização dos aspectos financeiros ou outros futuramente revelados, com o fim de permitir o adimplemento das obrigações assumidas e garantir a perenidade da empresa. Vejamos o exemplo da pandemia do covid-19.

São praticamente unânimes as vozes dos analistas que afirmam a ocorrência futura de nova pandemia, com efeitos tão ou mais graves para a sociedade do que aquela que recentemente nos assolou. De acordo com o critério acima referido, determinado empresário poderia estimar o montante do prejuízo esperado e se prevenir por meio da criação de uma reserva contábil progressiva para contingências, cujos recursos correspondentes deveriam ser aplicados em alguma operação financeira segura de longo prazo. Esta, por sua vez, também estaria sujeita a riscos/incertezas, revelando-se esses fatores como integrantes permanentes do jogo. Mas não aquele empresário teria entendido que se trata ficar inerte, diante da máxima de que “se ficar o bicho come; se correr o bicho pega”.

Acontece que a criação da aludida reserva de contingência estaria na esterilização por tempo indeterminado dos valores para ela aportados, que a empresa não poderia utilizar nos seus negócios futuros, do que decorreria o aumento de custos e redução dos lucros. Esses resultados poderiam revelar-se grandemente maléficos, especialmente se os concorrentes optassem por ignorar o possível advento de nova pandemia, com ganhos atuais bem mais relevantes frente aos do empresário cuidadoso, que poderia perder clientela e a sua estratégia de sobrevivência revelar-se impraticável.

A escolha da réplica do passado para o fim de direcionar a adoção de uma proteção contra o futuro é criticada por Frank Hyneman Knight, para quem não existiria uma identidade invariável quanto aos modos de comportamento, que não seriam os mesmos já adotados anteriormente, com isso também ficando refutada a noção da atuação racional dos agentes econômicos. O futuro jamais se comportaria o mesmo em relação a um passado considerado idêntico, tendo em vista diversas variáveis, inclusivo novo comportamento dos agentes.

Como se verifica, a busca pelo equilíbrio duradouro das prestações enfrenta os chamados custos de transação, que, sinteticamente significam toda e qualquer atividade e recursos financeiros para que um contrato possa ser celebrado em bases mais seguras para as partes. Veja-se a respeito Rachel Sztajn.

Esses custos de transação, nos termos do teorema de coase, integram, entre outros elementos, os ingredientes necessários para a alocação eficiente dos direitos de propriedade, cuja circulação é substancialmente feita por meio de contratos, ou seja, além do primeiro, a racionalidade das partes e a existência de um mercado no qual são negociadas todas as mercadorias, sob um regime de direitos de propriedade precisamente disciplinados.

  1. A arbitragem à luz dos contratos incompletos e os remédios jurídicos disponíveis

Nos termos da lição de Vincenzo Roppo, os defeitos do contrato podem corresponder ao fato de que ele não andou direito, impedida dessa forma a realização dos efeitos desejados pelas partes, situações nas quais certos remédios jurídicos operam, desde que os interesses frustrados daquelas sejam merecedores de tutela, na forma da lei.

O significado de defeito contratual é muito amplo, não construído segundo uma adequada técnica jurídica, considerada a dificuldade de sua identificação sistemática, pois se refere a diversas fattispecies contratuais, o que o leva a algumas fronteiras, de forma a que a segurança e a certeza das relações contratuais não sejam abaladas. Para esse efeito alguns critérios foram estabelecidos pelos doutrinadores, como a forma da ativação de tais critérios; a consideração do interesse das partes; o aspecto referente sua à gênese (originária ou superveniente); e o da extinção ou da preservação do contrato.

Como foi visto acima, os contratos incompletos não preenchem os elementos necessários e suficientes para o atendimento das partes e isso ocorre de forma originária ou superveniente. No primeiro caso o contrato já nasce imperfeito do ponto de vista do seu conteúdo, seja por omissão das partes, ou seja, porque ao tempo da sua conclusão os custos de transação se revelavam excessivamente elevados para a busca da administração os riscos a ele inerentes. O problema da incompletude superveniente se dá pela alteração ulterior das regras do jogo, não administradas igualmente pela mesma razão dos custos de transação não assumidos.

O remédio fundamental para a administração da incompletude contratual está em deixar as portas abertas, contemporaneamente à sua celebração, de maneira a que possam ser feitos os necessários ajustes, mediante comum acordo das partes. É claro, por sua vez que, mesmo assim, uma incompletude possa restar, desafiada a solução pela adoção de um caminho adequado. Isso pode ser dar pela mediação ou pelo recurso ao mecanismo do dispute board, apropriado para contratos de longo prazo, de execução continuada no tempo.

No entanto, as soluções acima alvitradas podem esbarrar em situações negativas, não se chegando à sua adoção, do que decorrerá a necessidade da instauração de um processo judicial ou arbitral, neste caso, diante da existência de uma cláusula compromissória. Dessa maneira o árbitro, como juiz de fato e de direito, deverá resolver o conflito pela aplicação da lei, se não for aberta a porta da equidade. Nesse caso será necessário identificar a lei aplicável, na inexistência de cláusula contratual que possa dar fim ao litígio. Em casos específicos a lei de cada tipo de contrato será a fonte da solução. Não havendo essa previsão restará buscar a norma adequada no CC, destacando-se que não existe tutela sistemática do contrato no nosso ordenamento jurídico, cabendo ao julgador fazer a sua pesca em uma água bastante turva. E o caminho será a busca de tal norma no próprio campo do contrato ou do negócio jurídico, do qual é espécie. Lembre-se mais uma vez que as sociedades são constituídas mediante contrato aberto, aplicáveis conforme a sua forma o próprio CC e a lei das sociedades anônimas. Vejamos alguns exemplos.

Arts. 421 a 426 do CC – Princípios gerais

O arbitro deverá:

reconhecer e aplicar a liberdade contratual nos limites função social;

nas relações privadas atentar para o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual;

aplicar o princípio da paridade e simetria contratual (portanto não reconhecendo a hipossuficiência de alguma das partes frente à outra, exceto a existência de norma especial em contrário ou de elementos concretos que afastem a presunção legal que têm a natureza dispositiva;

verificar a existência e aplicar parâmetros objetivos que tenham sido estabelecidos pelas partes para o fim da interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução;

aplicar a forma de alocação de riscos que as partes tenham estabelecido;

somente determinar a revisão contratual de maneira excepcional e limitada;

verificar a atuação das partes segundo os princípios de probidade e da boa-fé e aplicá-los conforme o caso;

identificar a presença de adesão contratual e adotar a melhor interpretação mais favorável ao aderente, quando caracterizada, diante de cláusulas ambíguas ou contraditórias; e

reconhecer a licitude da criação de contratos atípicos e aplicar as suas cláusulas.

Em primeiro lugar é sempre bom lembrar que estamos diante de normas jurídicas, algumas delas fruto da chamada lei da liberdade econômica, que introduziu no CC o art. 421-A e, portanto, de caráter mandatório. Em segundo lugar, observe-se a questão extremamente problemática da função social do contrato. Isto porque a segurança e a certeza jurídicas dependem de que o aplicador da lei saiba identificar o instituto a ser utilizado na sua decisão, quanto ao seu conteúdo e aos seus limites, não se revelando possível julgar de forma adequada alguma situação jurídica à luz da falta de qualquer imagem bem definida, diante de um fantasma evanescente, mutável segundo os olhos daquele operador do direito. Em aulas e palestras eu tenho desafiado os alunos e ouvintes e me fornecerem em poucas linhas e com objetividade e clareza uma definição abstrata da função social do contrato, que possa ser chamada a atuar em casos concretos. Até agora não obtive qualquer sugestão satisfatória. Como se diz na língua de Shakespeare, “the game is afoot!”.

Arts. 427 a 435 – A formação do contrato

Nesse campo a questão se coloca nos momentos anteriores ao nascimento do contrato, que deixa de acontecer quando ausentes os elementos relacionados à obrigatoriedade ou não da proposta contratual. Portanto, as normas de que se trata não se referem a contratos incompletos, mas existentes ou não existentes.

Arts 462 a 466 – O contrato preliminar

Esse contrato apresenta questões interessantes no plano da sua incompletude. Essa se daria em demonstrar, mediante provocação da parte interessada, a ausência de algum elemento essencial do contrato definitivo a ser celebrado. Neste caso cabe ao julgador integrá-lo pela inclusão do referido elemento, para tanto aplicáveis as normas correspondentes.

Essa integração – que se revela de natureza relativa -, a ser feita obrigatoriamente pelo julgador, pode tomar diferentes aspectos, como supletiva, corretiva, por equidade, legal (ou normativa) e judicial. Por equidade em arbitragem, como se sabe, somente se houver autorização das partes para tanto.

Significa dizer que o contrato preliminar – por isso mesmo sem um objeto definitivo próprio ou em si mesmo – é celebrado para que o contrato principal possa ser concluído, percebendo-se a necessidade do julgador em atentar para os elementos mínimos deste último, com o fim de caracterizar a incompletude do primeiro.

O problema da integração supletiva está precisamente na reconstrução hipotética de qual teria sido a vontade comum das partes, não sendo dado ao juiz substituir-se a uma delas, mas devendo atuar de forma equidistante, colocando-se mentalmente em dois momentos diversos na posição de cada uma daquelas e depois estabelecendo a norma comum que teria nascido do acordo entre elas. Fácil dizer, difícil fazer.

Celebrado um contrato, ele se referirá a relações jurídicas factuais desejadas pelas partes. Mas em muitas ocasiões fatos não previstos nem desejados virão a interferir na vida do contrato, cabendo discutir se passarão ou não a integrá-lo e, se afirmativa a resposta, em que medida por meio do processo de integração que deverá ser feito pelo julgador.

No direito italiano a integração do contrato tem por base os arts. 1,374, 1.375, 1.175, 1.339 e 1.340 do CCIt. E, de acordo com Rodolpho Sacco e Giorgio De Nova, ela se dá no sentido de que somente os fatos desejados representariam a vontade das partes e, portanto, integram o contrato, conjugando-se com os efeitos impostos pela lei, incluindo-se nesta os usos e costumes e o recurso à equidade. Mas os autores em foco observam com propriedade que os efeitos legais do contrato são estranhos ao conteúdo do acordo (quanto aos fatos que o envolvem), mas estão seguramente nele integrados como regulamento. Para este fim deve ser feita uma distinção entre contrato (acordo de vontades sobre determinado objeto) e o seu regulamento pelas partes.

Arts. 478 a 480 – Resolução por onerosidade excessiva

Nos termos desses dispositivos essa resolução se dá mediante a atuação do julgador no caso em que, tratando-se de execução continuada ou diferida, a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis.

Não se trataria aqui, precisamente, de contrato incompleto, uma vez que os efeitos danosos não poderiam ter sido previstos dada a própria natureza dos acontecimentos em jogo, com o seu custo administrado por meio de cláusulas para tanto previamente estabelecidas. Poder-se-ia dizer que a busca de uma solução antecipada do evento futuro elevaria os custos de transação para um patamar alçado ao infinito, tarefa impossível.

Ocorrido o evento inesperado, as partes podem chegar a um acordo superveniente e, assim não acontecendo, deverá o julgador restabelecer o equilíbrio contratual, determinando que a prestação inadimplida seja determinada no plano de uma onerosidade não excessiva, tomando-se para tanto as condições vigentes ao tempo da contratação e em que teriam sido estimados e alocados os riscos da operação.

FONTE: https://www.migalhas.com.br/depeso/417983/os-contratos-incompletos-e-a-arbitragem