O WHISTLEBLOWING NO BRASIL: OS PRIMEIROS PASSOS FORAM DADOS, MAS AINDA HÁ ESPAÇO PARA EVOLUÇÃO
Amanda Athayde
Lucas Santos de Sousa
O artigo aborda os avanços do Brasil na regulamentação do whistleblowing, destacando leis como a 12.846/13 e 13.608/18, programas da CGU e o PL 2.581/23, visando proteção e incentivos aos denunciantes.
Discutiremos os esforços nacionais na regulamentação e implementação do instituto nas esferas pública e privada no Brasil.[1]
Atualmente, os principais diplomas normativos[2] que tratam de aspectos do instituto do whistleblowing no Brasil são: i) a lei 12.846/13 (lei anticorrupção), ao incentivar a implementação de programas de integridade no ambiente corporativo que englobem canais de denúncias; e (ii) a lei 13.608/18, responsável pelo primeiro esforço em introduzir a figura do whistleblower no Brasil. Ademais, visualiza-se o debate sendo trazido à tona a partir do (iii) PL 2.581/23.
Nos termos da (i) lei 12.846/13 (lei anticorrupção), a lei concede benefícios, como a aplicação de sanções mais leves, a empresas que possuam canais de denúncias. Para fazer jus ao benefício, o programa de integridade corporativo da companhia é avaliado pela CGU – Controladoria-Geral da União no curso de um PAR – Processo Administrativo de Responsabilização ou durante as tratativas para a assinatura de um acordo de leniência, quando então avalia-se se os canais são “amplamente divulgados a funcionários e terceiros”, sendo adequados ao “tratamento das denúncias e à proteção de denunciantes de boa-fé” (art.57, X, do decreto 11.129/22).
Tomando por base a lei anticorrupção, a CGU empreendeu esforços educativos e fomentou programas que, dentre outros pontos, versavam sobre a proteção de denunciantes. Em 2015, o órgão publicou diretrizes para programas de integridade de empresas privadas, em que recomendou a implementação de canais de denúncia que “garantam a proteção ao denunciante de boa-fé como, por exemplo, o recebimento de denúncias anônimas e a proibição de retaliação de denunciantes”.[3] Na versão atualizada do documento, disponibilizada em 2024, as recomendações seguiram a mesma linha, com ênfase na implementação de garantias de “não-retaliação, anonimato e confidencialidade”.[4]
Sob o programa “Selo Pró-Ética”, a CGU empreende uma análise aprofundada do canal de denúncias da empresa interessada em obter o selo, avaliando se há garantias de proteção aos denunciantes de boa-fé, se as apurações podem ser acompanhadas, se o canal está acessível a funcionários e ao público externo, dentre outros pontos.[5] Já em 2024, a CGU lançou o programa “Pacto Brasil Pela Integridade Empresarial”, que traz critérios semelhantes ao Selo Pró-Ética, com a diferença de que a adesão à iniciativa se faz com a realização de uma autoavaliação pela empresa, não havendo análise ou chancela por parte da CGU.[6] Embora ainda esteja em estágio embrionário, o Pacto Brasil já conta com 160 empresas participantes, registrando um crescimento de 30% apenas no mês de setembro.[7]
Por se tratarem de iniciativas ligadas à lei anticorrupção, há um enfoque em fomentar programas que permitam a detecção de fraudes e irregularidades relacionadas ao combate à corrupção, sendo que o instituto do whistleblowing, conforme apresentado nos artigos anteriores dessa série, pode ter aplicabilidade muito mais abrangente, sendo útil na apuração de denúncias por violações direitos humanos, práticas comerciais abusivas, fraudes contábeis, fraudes contra licitações, dentre outras.
Por sua vez, a (ii) lei 13.608/18 foi o mais próximo que já chegamos de ter uma legislação com um regime abrangente de proteção a denunciantes.[8] A lei foi editada originalmente com o propósito de regulamentar o serviço de disque-denúncia, bastante utilizado para angariar informações da população em crimes de menor complexidade ou envolvendo organizações criminosas, mas posteriormente foi reformada pelo pacote anticrime (lei 13.964/19), passando a trazer dispositivos que alargaram seu espectro de incidência.
O seu art. 4º-A determina que os entes federativos, suas autarquias e fundações, mantenham unidades de ouvidoria e correição para receber informações sobre “crimes contra a Administração Pública, ilícitos administrativos, ou quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público”.[9] O denunciante goza de isenção contra eventual responsabilização civil e penal, e sua identidade deve ser preservada. Há também dispositivos discorrendo sobre a proteção contra retaliações, inclusive prescrevendo ressarcimento em dobro dos danos materiais experimentados pelo denunciante. Dentre as formas de retaliação previstas na lei, constam demissão arbitrária, alteração injustificada de funções ou atribuições, imposição de sanções, retirada de benefícios ou negativa de fornecimento de referências profissionais positivas (art. 4º-C). Por fim, a lei institui um sistema de recompensas ao denunciante, que podem ser de até 5% do valor recuperado, em casos que versem sobre crimes contra a Administração Pública (art. 4º-C, §3º).
A lei 13.608/18 pode ser lida como o primeiro passo para a estruturação de um programa de proteção a denunciantes no âmbito do Poder Executivo Federal. Objetivando regulamentá-la, foram editados o decreto 10.153/19, posteriormente complementado pelo decreto 10.890/21.
O primeiro decreto, o decreto 10.153/19, focava na criação de mecanismos da proteção da identidade do denunciante, trazendo também disposições de natureza procedimental.[10] A proteção à identidade do denunciante é uma das melhores práticas recomendadas pela experiência internacional, nos termos detalhados no segundo artigo dessa série.[11] O decreto posterior, 10.890/21, por sua vez, definiu as competências da CGU sob a lei 13.608/18, que incluem: (i) receber e examinar denúncias relativas às práticas de retaliação contra denunciantes praticadas por agentes públicos vinculados à Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional, ou às empresas públicas e às sociedades de economia mista; (ii) adotar ou determinar de ofício medidas de proteção contra retaliações; (iii) suspender atos administrativos praticados em retaliação ao direito de denunciar; e (iv) editar atos administrativos de proteção do denunciante.[12]
O que se nota é que a lei 13.608/18 e os decretos 10.153/19 e 10.890/21 trazem boa parte dos elementos clássicos de uma legislação que verse sobre whistleblowing. No entanto, o conjunto normativo ainda peca por não estabelecer regimes próprios para setores em que a figura do whistleblowing poderia ser particularmente útil, como, por exemplo, mercado de capitais. Não houve um esforço em realizar adequações nas legislações penal e trabalhista para tornar as novas normas mais eficientes[13], assim como não há um critério claro para definição das recompensas financeiras. Ademais, houve a opção por fixar esse incentivo financeiro em um patamar de 5% no Brasil, ao passo que em outras jurisdições, como o recente Corporate Whistleblower Awards Pilot Program do DoJ de 2024, detalhado no terceiro artigo desta série[14], permite recompensas de até 30%.
Para além dessas legislações em vigor, o debate sobre o whistleblowing tem sido levantado a partir do (iii) PL 2.581/23. Essa recente iniciativa objetiva instituir uma política de proteção a denunciantes no mercado financeiro, a ser conduzida pela CVM – Comissão de Valores Mobiliários. Parece ser uma tentativa de reproduzir um sistema similar às políticas de whistleblowing da SEC – Securities and Exchange Commission, que no ano fiscal de 2023 recebeu mais de 18.000 denúncias, resultando em aproximadamente US$600 milhões pagos em recompensas a 68 denunciantes. Desde o início do programa, em 2011, já foram mais de US$2 bilhões pagos em recompensas a aproximadamente 400 denunciantes.[15]
O PL 2.581/23 assegura ao denunciante proteção integral contra retaliações e a isenção de qualquer responsabilidade civil, administrativa, trabalhista ou penal em relação ao relato, mesmo que provada a sua posterior improcedência.[16] Esse nível de proteção, no entanto, só se aplica ao denunciante que não reportou fatos ou provas que sabia serem falsos, ou seja, beneficia apenas o denunciante de boa-fé. O ato de retaliação configurará infração administrativa, punível pela CVM com as sanções previstas no art. 11, da lei 6.385/76, que incluem advertência, multa, inabilitação temporária para o exercício do cargo de administrador, dentre outras.
Se convertidas em lei, as recompensas instituídas pelo PL 2.581/23 serão mais generosas do que as da lei 13.608/18: Elas serão de até 10%, a serem fixadas com base (i) no valor das multas aplicadas e dos recursos recuperados no âmbito de processos administrativos instaurados pela CVM; e (ii) o valor do produto do crime ou do ilícito que tiver sido recuperado em processos judiciais de natureza civil ou penal.
Pelo PL 2.581/23, são definidas algumas categorias de indivíduos que, embora possam figurar como denunciantes, não são elegíveis ao recebimento das recompensas previstas na lei, destacando-se dentre elas os advogados da pessoa jurídica envolvida no ilícito e os funcionários que exerçam funções de governança, conformidade, integridade, controle interno, auditoria, gestão de riscos ou investigações, que tenham tido conhecimento do ilícito a partir do exercício de suas funções. Há, portanto, clareza quanto aos aspectos objetivo e subjetivo da proteção conferida, conforme sugerido pelas melhores práticas internacionais.
Essas disposições são inspiradas na Rule 21F-4(b), do SEC Act dos Estados Unidos[17], que estabelece uma presunção de que indivíduos inseridos nessas categorias são inelegíveis para figurar como whistleblowers, já que receberam as informações sensíveis precisamente por estarem em posições relacionadas à apuração dos ilícitos, à punição dos envolvidos, e ao aconselhamento jurídico da empresa. Trata-se, assim, de uma à atuação em conflito de interesses. Ademais, se esses profissionais pudessem se tornar denunciantes, a pessoa jurídica não teria a quem recorrer internamente para lidar com esse tipo de situação.
Vale salientar, no entanto, que essas regras de inelegibilidade não são absolutas no sistema da SEC. Se o funcionário conseguir comprovar que a) a denúncia é necessária para evitar que a conduta ilícita cause danos substancial ao interesse financeiro ou à propriedade da pessoa jurídica ou dos investidores; b) a pessoa jurídica está implementando medidas que prejudicará uma futura investigação; ou c) ao menos 120 dias se passaram desde que o funcionário teve acesso à informação sobre a conduta ilícita.[18] O PL 2.581/23 tenta adotar uma solução semelhante, propondo que os funcionários das áreas de compliance/auditoria/integridade (mas não os advogados) podem fazer jus à recompensa, se “não forem tomadas as providências necessárias de apuração interna e de comunicação posterior dos fatos às autoridades pela própria pessoa jurídica”.
O que se nota é que, se o PL 2.581/23 for de fato convertido em lei, o programa de proteção a denunciantes da CVM pode servir como “laboratório” para outros setores, permitindo que a cultura de proteção a denunciantes finalmente seja incorporada ao ambiente corporativo brasileiro. As leis 12.846/13 e 13.608/18 foram passos importantes nessa caminhada, que pode avançar de maneira decisiva com a eventual aprovação do PL 2.581/23, sempre sujeito a debate e aprimoramentos. Ao longo dessa série, esperamos ter contribuído satisfatoriamente para o debate, cabendo à sociedade civil organizada e à academia contribuir para o debate da instituição de políticas públicas sólidas para a proteção de denunciantes no Brasil.
FONTE: https://www.migalhas.com.br/depeso/422765/o-whistleblowing-no-brasil-os-primeiros-passos-foram-dados
[1] O primeiro, segundo e terceiro artigos da série, tratando respectivamente sobre a evolução histórica do instituto, as melhores práticas internacionais nas esferas pública e privada, denunciantes de boa-fé e programas de recompensas, podem ser encontrados em: a) https://www.migalhas.com.br/depeso/420918/whistleblowing-breves-notas-sobre-a-evolucao-historica-do-instituto; e b) https://www.migalhas.com.br/depeso/421316/whistleblowing-melhor-pratica-internacional-na-esfera-publica-privada; e c) https://www.migalhas.com.br/depeso/421758/whistleblowing-boa-fe-e-programas-de-recompensas.
[2] Outros diplomas normativos tratam tangencialmente do tema, como (i) a Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União (lei 8.443/1992), que autoriza a realização de denúncias sobre irregularidades perante o órgão, confere imunidade ao denunciante e tratamento sigiloso à denúncia; e (ii) o Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União (lei 8.112/1990), que impõe ao servidor público o dever de relatar irregularidades das quais tiver ciência em razão do cargo. Nesse sentido: BOTTINI, Pierpaolo Cruz. CAVALI, Marcelo Costenaro. “Proteger (e recompensar?) os denunciantes de boa-fé? (parte 2)”.
[3] BRASIL. Controladoria-Geral da União. “Programa de Integridade: diretrizes para empresas privadas”. Setembro/2015. Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/integridade/colecao-programa-de-integridade-privada, acesso em 17.11.2024. P. 21.
[4] BRASIL. Controladoria-Geral da União. “Programa de Integridade: diretrizes para empresas privadas – Vol. II”. Outubro/2024. Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/noticias/2024/10/cgu-publica-novo-guia-de-diretrizes-para-empresas-privadas/GuiaDiretrizes_v14out1.pdf, acesso em 17.11.2024. P. 33.
[5] Esses critérios de avaliação podem ser encontrados no Formulário de Conformidade, documento que deve ser preenchido pela empresa interessada em aderir ao programa. Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/integridade-privada/avaliacao-e-promocao-da-integridade-privada/empresa-pro-etica/avaliacao, acesso em 17.11.2024.
[6] Esses critérios de avaliação podem ser encontrados no Guia de Autoavaliação, documento que deve ser preenchido pela empresa interessada em aderir ao programa. Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/integridade-privada/pacto-brasil/autoavaliacao, acesso em 17.11.2024.
[7] Informação disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202410/pacto-brasil-pela-integridade-empresarial-cresce-30-em-setembro-e-alcanca-160-empresas, acesso em 17.11.2024.
[8] ATHAYDE, Amanda. MATOS, Mylena. Denunciante Premiado? Portal Jota, 28.3.2018. Disponível em: https://www.amandaathayde.com.br/_files/ugd/62c611_dd6e33c498814660839415775dc9e0db.pdf, acesso em 17.11.2024.
[9] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13608.htm, acesso em 17.11.2024.
[10] Informação disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/d10153.htm, acesso em 17.11.2024.
[11] Disponível em: https://www.migalhaesfes.com.br/depeso/421316/whistleblowing-melhor-pratica-internacional-na-ra-publica-privada, acesso em 10.1.2025.
[12] Informação disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/decreto/d10890.htm, acesso em 17.11.2024.
[13] CÔRTES, Pâmela de Rezende. A quem você é leal?: motivações para o whistleblowing = Who are you loyal to? motivations for whistleblowing. Revista da CGU, Brasília, v. 13, n. 23, p. 142-157, jan./jun. 2021. P. 148. Disponível em: https://revista.cgu.gov.br/Revista_da_CGU/ article/view/350/260. Acesso em: 17.11.2024.
[14] Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/421758/whistleblowing-boa-fe-e-programas-de-recompensas, acesso em 10.1.2025.
[15] Informações disponíveis em: https://www.sec.gov/enforcement-litigation/whistleblower-program e https://www.sec.gov/files/fy23-annual-report.pdf, acesso em 17.11.2024.
[16] Informações disponíveis em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2440671&filename=PL%202581/2023, acesso em 17.11.2024.
[17] Disponível em: https://www.sec.gov/files/amended-whistleblower-rules-2022.pdf, acesso em 17.11.2024.
[18] Vide Rule Rule 21F-4(b)(v), disponível em: https://www.sec.gov/files/amended-whistleblower-rules-2022.pdf, acesso em 17.11.2024.