O TRADICIONAL SISTEMA PROCESSUAL BRASILEIRO E A REVOLUÇÃO DOS PRECEDENTES JUDICIAIS NO CPC/2015
Adriano Antonio de Sousa
SUMÁRIO: Introdução; 1 Fatores históricos relacionados ao common law x civil law; 2 Teoria do precedente judicial – Conceitos e fundamentos; 3 Operacionalização dos precedentes normativos; 3.1 A dinâmica do precedente: ratio decidendi/obter dictum; 3.2 A ratio decidendi; 3.3 O obiter dictum; 4 Técnicas de superação dos precedentes judiciais; 4.1 Técnica do distinguishing; 4.2 Técnica do overruling; 5 Teoria dos precedentes judiciais no CPC/2015; 5.1 Motivos e objetivos da adoção do sistema de precedentes; 6 Os elementos essenciais da sentença e a sistemática dos precedentes no CPC/2015; 6.1 Os precedentes judiciais e o incidente de resolução de demandas repetitivas; 6.2 O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR; 6.3 O Incidente de Assunção de Competência – IAC; 6.4 A reclamação como controle da atuação judicante; 7 Oportunidades, desafios e críticas ao novo paradigma; 7.1 Pesquisa: análise da aplicação prática do precedente no Direito brasileiro; Considerações finais; Referências.
INTRODUÇÃO
A Lei nº 13.105/2015 introduziu um novo conceito de “precedente” no ordenamento pátrio, alterando sobremaneira a natureza jurídica desses precedentes ao dotá-los de características como normatividade, obrigatoriedade e vinculatividade. Além das decisões proferidas em controle concentrado de constitucionalidade e das súmulas vinculantes, o novo código atribuiu efeitos vinculantes também aos julgados proferidos pelo STF e pelo STJ em recursos extraordinários e especiais repetitivos; aos enunciados das súmulas do STF em matéria constitucional e pelo STJ em matéria infraconstitucional; e aos acórdãos produzidos pelos Tribunais em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) e em Incidente de Assunção de Competência (IAC).
A formação jurídica brasileira, de raiz romano-germânica fundada na tradição do civil law, tem a lei como principal fonte do Direito, sendo da essência da norma processual civil uma natureza preponderantemente privada e individualista. Até a vigência da Lei nº 13.105/2015, os precedentes no ordenamento pátrio apresentavam, em regra, com as exceções apontadas pela doutrina, tão somente eficácia argumentativa/persuasiva, voltada primordialmente ao convencimento do julgador para a aplicação de determinada tese jurídica, sem força vinculante ou obrigatória.
A partir da Lei nº 13.105/2015, contudo, mencionado arcabouço normativo altera-se substancialmente com a adoção de precedentes dotados de força normativa e vinculante, delineando evidente aproximação de parâmetros característicos do sistema common law, fundado no Direito pautado em precedentes judiciais, o chamado make-law, de observância obrigatória pelas instâncias ordinárias, em uma vinculação horizontal e vertical, sob pena de cassação do entendimento divergente, por meio de reclamação.
Inegável que a inserção do modelo de precedentes normativos pelo Código Processual de 2015 representa não somente uma substancial mudança de paradigma no direito processual pátrio, mas notadamente uma alteração estrutural na forma de resolução de conflitos. A introdução dos precedentes normativos na práxis cotidiana altera os alicerces da teoria do Direito no pilar relativo à hermenêutica jurídica.
Parte das explicações para essa mutação do sistema processual está relacionada ao fenômeno da globalização (notadamente pela facilidade das comunicações), que permeia as sociedades contemporâneas, robustecendo uma tendência global de ruptura e mesclagem dos esquemas jurídicos clássicos, originando o que se denomina “commonlawlização do direito nacional“, com crescente prestígio do poder criativo do juiz, evidenciadas exemplificadamente pelos art. 105, III, e 103-A da CF; pelos arts. 285-A, 475, § 3º, 481, parágrafo único, 518, § 1º, 557 e 741 do antigo CPC; e pelas Leis nºs 10.259/2001, 11.276/2006 e 9.868/1999, além de inúmeros julgados no âmbito do STF e do STJ.
O abalo nas estruturas do ordenamento jurídico pátrio, entretanto, não tem como único fator o fenômeno da globalização, mas também, preponderantemente, a observância de uma notória crise no sistema judiciário brasileiro consubstanciada no excessivo número de demandas e na proliferação desmedida de recursos, não raras vezes fomentada por excessiva divergência jurisprudencial em que, diante de uma mesma regra jurídica, se perfazem inúmeras decisões distintas e conflitantes para casos idênticos ou semelhantes, originadas de interpretações personalistas e individualizadas, em uma dinâmica caótica de loteria das decisões judiciais.
Essa crise sistêmica acarreta um abalo na certeza do Direito, na sua previsibilidade e na segurança jurídica, desaguando, ao final, em uma insuficiente prestação jurisdicional, na qualidade e no tempo de sua oferta, com severos reflexos no desenvolvimento econômico e social do País.
Nesse contexto, emerge uma possível alternativa de solução para o sistema com a doutrina do stare decisis e dos precedentes vinculantes, a partir de uma progressiva uniformização da jurisprudência, com perspectivas de uma maior racionalidade e convergência de decisões para casos análogos, com prováveis reflexos positivos no amplo espectro das estruturas socioeconômico e sociais do País.
Mencionada revolução normativa traz, entrementes, além de oportunidades, também questionamentos e críticas por parte da doutrina, notadamente relacionadas a conceitos, amplitude e aplicação dos novos institutos e procedimentos inseridos no ordenamento jurídico.
1 FATORES HISTÓRICOS RELACIONADOS AO COMMON LAW X CIVIL LAW
O jusnaturalismo do século XVI fundava-se na concepção de valores e pretensões decorrentes de fundamentos metafísicos, sem suporte em qualquer norma de natureza estatal. O surgimento do positivismo jurídico, em contraposição, consubstanciava-se na noção de um modelo lógico em que o Direito se origina da lei.
O sistema civil law, organizado preponderantemente rumo à aplicação do direito positivado, tem o juiz como intérprete e aplicador da lei, não lhe reconhecendo, todavia, o poder de criar o Direito. Nesse sistema, a faculdade criadora é circundada por balizas legais e técnicas bem mais restritas do que no sistema common law.
Por sua vez, a tradição common law, com origem na Inglaterra, espraia sua influência por vasto território, notadamente aqueles de colonização britânica, como, exemplificadamente, Irlanda, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Irlanda e partes da África e da Ásia, incluindo a Índia, com alicerce sobre raízes profundamente pragmáticas, sendo de sua essência o prestigiamento superlativo das decisões judiciais, formadas com base na experiência, sem compromisso ou vínculo com modelos próprios do sistema civil law em que a lógica abstrata antecedente ao fato vincula o juiz, em que o Direito está escrito nos textos da lei em tese.
Nessa seara, faz-se relevante esclarecer que stare decisis não se confunde com o sistema do common law. O respeito ao passado na construção da decisão judicial caracteriza a tradição britânica do common law. O stare decisis (mais evidente nos EUA), por sua vez, é teoria relativamente nova, caracterizada não somente pelo respeito ao Direito consuetudinário, mas também pela força obrigatória e vinculativa dos precedentes normativos. Advém, pois, de uma evolução do common law, impulsionada pela conveniência de se uniformizar a jurisprudência pela via das balizas estipuladas pelos precedentes normativos.
Um fenômeno em franca observância é o afastamento do modelo lógico próprio do positivismo jurídico, com a adoção de práticas mais aderentes à realidade jurídica, a partir da intensificação da força normativa dos princípios em detrimento da lei, em um claro alinhamento à sistemática do common law. De outro lado, por sua vez, evidenciam-se também gradativas modificações na sistemática do common law, que cada vez mais legisla e positiva regras jurídicas por meio de lei, aproximando-se do civil law.
Neste contexto, surge o chamado “paradoxo metodológico“, cunhado por Cândido Rangel Dinamarco, entendido como uma contraposição entre tradições jurídicas distintas [1].
O princípio da legalidade é instrumento balizador e ao mesmo tempo limitador da atividade jurisdicional. Nesse sentido, a determinação de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” tem importante função de proteger o indivíduo em face do Estado. A adoção do sistema do stare decisis, em um claro diálogo entre as famílias romano-germânica e anglo-saxônica, traz a necessidade de repensar a compreensão do termo “lei“, empregado na CF/1988, ante a necessidade de se manter uma convivência harmônica entre os institutos do ordenamento jurídico e a natureza vinculativa e obrigatória dos precedentes judiciais, notadamente ante a provável preponderância dos precedentes normativos em detrimento da norma legal.
A Lei nº 13.105/2015 traça um roteiro imperativo para a aplicação dos precedentes. Não há, ontologicamente, diferenças entre a aplicação da lei ou do precedente, relevando o fato de que este último apresenta mais elementos de concretude do que aquela.
Entretanto, em uma substancial alteração dos pilares do positivismo, ainda marcante no ordenamento brasileiro (notadamente por meio do princípio da legalidade), em existindo um precedente normativo aplicável a um determinado caso concreto, ao juiz não se dará opção de escolher outro parâmetro de apreciação da causa. Em outros termos, ao julgador estará facultado utilizar a lei na fundamentação da decisão judicial, porém, não para afastar a aplicação do precedente quando contemple julgamento de caso idêntico ou similar.
No Brasil, a Emenda Constitucional nº 03/1993 é tida como um marco na aproximação do sistema adotado pelo ordenamento nacional (civil law) ao sistema anglo-saxônico (common law), ao introduzir no ordenamento a ação declaratória de constitucionalidade cuja decisão apresenta efeitos erga omnes e vinculante junto aos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública. Logo na sequência, o legislador ordinário editou a Lei nº 9.868/1999 atribuindo efeitos vinculantes também à ação direta de inconstitucionalidade.
O marco mais reconhecido, entretanto, para o estudo dos precedentes judiciais é a Emenda Constitucional nº 45/2004, que, além de ter promovido a denominada reforma no Poder Judiciário e inserido em nosso ordenamento as chamadas súmulas vinculantes, introduziu a repercussão geral nas questões submetidas a recurso extraordinário (art. 102, § 3º, da Constituição), comprovando o cada vez mais intenso diálogo instaurado entre processualistas e constitucionalistas na utilização da processualística como instrumento de concretização e aprimoramento da jurisdição constitucional.
2 TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL – CONCEITOS E FUNDAMENTOS
Grosso modo, parafraseando MacCormick, “precedentes são decisões anteriores que funcionam como modelos para decisões futuras” [2].
Em sentido lato, precedente é a decisão tomada à luz de um caso concreto, podendo ou não seu elemento normativo ser utilizado como parâmetro ou baliza para julgamentos posteriores. Em sentido estrito, precedente é a própria ratio decidendi (holding), consistente nos fundamentos jurídicos que sustentam a decisão; para Fredie Didier Jr. [3], é a norma geral do caso concreto (geral porque potencialmente aplicável em casos semelhantes); segundo Cruz e Tucci, “a essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto” [4], importando ressaltar que, para Marinoni [5], em um sentido estrito, somente pode ser considerado precedente aquele dotado de eficácia jurídica vinculante.
O instituto dos precedentes judiciais no Brasil, fundado no reconhecimento da força normativa dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais, na expansão da jurisdição constitucional (inicialmente a partir do controle de constitucionalidade), e no desenvolvimento de uma nova hermenêutica constitucional, é decorrência de um processo de constitucionalização que tem como epicentro a valorização da normatividade dos princípios constitucionais na interpretação e na aplicação das normas inferiores. Nesse processo de constitucionalização, também denominado neoconstitucionalismo, estruturado sobre os pilares de natureza construtivista (já que cada precedente, cada associação ou distinção entre casos agrega um plus no desenvolvimento incremental do sistema), a compreensão da lei se dá com base na Constituição, denotando acentuada hegemonia axiológica dos princípios constitucionais, os quais, utilizados como parâmetro de aplicação do Direito e dotados de densa normatividade, vinculam a hermenêutica jurídica, com visíveis consequências nas estruturas do modelo jurídico nacional, superando mesmo o discurso metafísico das correntes jusnaturalistas e o formalismo com regras estritas das correntes positivistas.
Sintetizando, nessa nova dogmática de interpretação, sendo os princípios constitucionais apresentados como fonte primeira do Direito, em sendo uma lei interpretada, deve o ser à luz desses mesmos princípios. A assertiva busca legitimidade no reconhecimento prático da supremacia da Constituição para a aplicação direta de sua norma ao caso concreto.
Os precedentes normativos (vinculantes e obrigatórios) são classificados, quanto aos seus limites subjetivos, em precedentes de eficácia vinculante vertical (eficácia externa) e de eficácia vinculante horizontal (eficácia interna). Na primeira, quando a ratio decidendi do precedente for de obrigatória observância pelas instâncias inferiores ao Tribunal prolator; na segunda, quando também a própria Corte se mantiver vinculada à ratio construída na decisão proferida.
Os precedentes sempre possuem o efeito persuasivo; nas palavras de Cruz e Tucci, “indício de uma solução racional e socialmente adequada [6]“. Há precedentes, entretanto, com eficácia obstativa ou impeditiva, os quais apresentam finalidade específica de impedir a apreciação de determinada demanda, a revisão de decisões ou a remessa necessária, apresentando-se tanto no sentido de não admissão como de negativa liminar de mérito, como, por exemplo, precedentes formados no julgamento de casos repetitivos ou assunção de competência e enunciados de súmula que autorizam a improcedência liminar da demanda e, ainda, negativa de provimento a recurso que contrariar precedente ou enunciado de súmula, entre outros.
Parte da doutrina aponta, ainda, a existência de precedentes permissivos ou autorizantes que, ao contrário dos precedentes obstativos, visam a garantir a apreciação de demanda, a revisão de decisão judicial ou a remessa necessária, como, por exemplo, na ocorrência de tese firmada em julgamento de recursos repetitivos ou em súmula vinculante autorizando a concessão de tutela de evidência.
3 A OPERACIONALIZAÇÃO DOS PRECEDENTES NORMATIVOS
3.1 A dinâmica do precedente: ratio decidendi/obter dictum
A operacionalização dos precedentes normativos (entendida como técnica de utilização), como originados no ordenamento pátrio, pressupõe o conhecimento de quatro institutos fundamentais desenvolvidos no sistema common law: ratio decidendi ou holding, obiter dictum, distinguishing e overruling.
3.2 A ratio decidendi
A ratio decidendi é a norma jurídica geral que se extrai da fundamentação do julgado. São os fundamentos determinantes do precedente e que vinculam os órgãos jurisdicionais (horizontal e verticalmente), obrigando-os a adotar a mesma tese jurídica na fundamentação de suas decisões, por ocasião do julgamento futuro de casos semelhantes. Da ratio se extrai, por indução, uma regra geral de direito com potencial de generalização na aplicação de casos semelhantes. Faz-se relevante acentuar que mencionada generalização tem como pressupostos a imposição de estabilidade, a coerência e a integridade da jurisprudência nos Tribunais.
Resume a doutrina que o conceito de ratio decidendi se norteia pela dupla função por ela exercida: em sua função interna, a ratio se apresenta como os fundamentos jurídicos ou a tese jurídica que sustenta a solução de determinado caso in concreto; em sua função externa, a ratio é a norma jurídica geral a ser aplicada como parâmetro ou diretriz a outras situações, igualmente concretas, objeto de demandas semelhantes. Neste último caso, se consubstancia em elemento do precedente judicial, apto a ser universalizado e potencialmente vinculante.
Na visão de Fredie Didier Jr., a ratio decidendi, motivo determinante da decisão, é formulada e se identifica no seio dos elementos da decisão judicial (relatório, fundamentação e dispositivo), mas com eles não se confunde, “importando saber as circunstâncias fáticas relatadas, a interpretação dada aos preceitos normativos no contexto e a conclusão a que se chega” [7].
Não sem razão, como pode-se constatar, Perluigi Chiassoni, citado por Priscila Silva de Jesus, ao mesmo tempo em que elenca as definições que podem ser atribuídas à ratio decidendi, critica a falta de uniformidade advinda das inúmeras acepções do termo [8].
Entende a doutrina, ainda de forma embrionária, que, se uma decisão traz mais de um motivo como fundamento, todas rationes obrigam. Lado outro, ressalta Luiz Guilherme Marinoni que uma decisão colegiada, mesmo que consensual, mas com fundamentos diversos, não se firma como precedente por falta de ratio decidendi[9]. No mesmo sentido, não se forma o precedente em caso de fundamentação insuficiente, de difícil extração da ratio.
Mesmo no âmbito da nova doutrina, há discussão sobre o melhor método para se identificar a ratio decidendi. Para tanto, no common law, observam-se três teorias ou testes:
1) Teoria de Eugene Wambaugh: afirma que a ratio decidendi de um caso é a razão sem a qual o caso seria decidido de outra forma. A ratio decidendi é uma proposição necessária para a decisão, uma técnica de inversão, criticada pela falibilidade sobretudo em casos que apresentem duas razões autonomamente suficientes;
2) Teoria de Herman Olyphant: aduz que a ratio decidendi de um caso não tem ligação com o raciocínio do juiz para chegar à decisão. Os fatos levados ao Tribunal devem ser considerados estímulos para uma resposta, a decisão real do caso. A combinação de estímulo/resposta (= fatos/decisão) representa a ratio decidendi do caso;
3) Teoria Arthur Lehman Goodhart: afirma que a identificação da ratio está relacionada com os fatos (material facts) considerados pelo juiz como fundamentais na sua decisão.
3.3 O obiter dictum
O obiter dictum tem sua conceituação efetuada de forma negativa: é toda proposição de direito que não seja parte da ratio. São, pois, proposições, argumentos, princípios ou opiniões jurídicas acessórias, irrelevantes ou relevantes, mas dispensáveis no julgamento do caso, não apresentando influência relevante na formação da ratio.
Em que pese sua natureza de elemento secundário do precedente judicial, o obiter dictum pode desempenhar relevante papel em um ordenamento em que se adote a teoria dos precedentes. Como elemento auxiliar e circundante da motivação e do raciocínio exposto na decisão, caracteriza-se como instrumento de evidente eficácia persuasiva, ante eventual sinalização de possível ou mesmo provável alteração na orientação do Tribunal em relação a determinada tese ainda majoritária.
Em outros termos, o obter dictum corresponde a questões postas em discussão mas dispensáveis à solução da causa. Podem estar consubstanciados em considerações marginais ou em fundamentos minoritários e argumentos periféricos ao caso concreto, sendo, por isso, não vinculativos.
4 TÉCNICAS DE SUPERAÇÃO DOS PRECEDENTES JUDICIAIS
4.1 Técnica do distinguishing
Distinguishing é técnica, método de confronto, interpretação e aplicação de precedente normativo, a partir da comparação entre a ratio decidendi do caso paradigma e as circunstâncias fáticas (elementos objetivos) do caso em julgamento, concluindo ou não pela similitude entre ambos.
A doutrina identifica duas acepções de distinguishing: o distinguish-método e o distinguish-resultado.
O distinguish-método opera na comparação entre o caso em análise e o caso paradigma, já o distinguish-resultado, quando o resultado do confronto indicar diferenças entre os casos. Havendo distinção, ao magistrado caberá dois caminhos: a) dar à ratio decidendi uma interpretação restritiva, afastando-a do caso em análise (restritive distinguishing); ou b) estender ao caso a mesma solução (ampliative distinguishing).
Nesse confronto entre caso paradigma e caso em julgamento, pode-se concluir pela similitude de ambos, situação em que o precedente deve ser aplicado. Situação contrária e que justifica o distinguishing é a distinção fática que revela justificativa lógica capaz de permitir o isolamento do caso sub judice em face do precedente, não bastando o simples apontamento de fatos distintos, devendo haver uma distinção material nas circunstâncias dos casos em análise.
Por sua vez, Francisco Rosito leciona que o modifying (modificação):
“É a técnica utilizada para reconhecer a existência de fundamento para alterar a ratio decidendi do precedente anteriormente estabelecido”, havendo duas técnicas de modificação da ratio decidendi: o narrowing (restrição), também nominado de restrictive distinguishing, e o extending (extensão), também denominado ampliactive distinguishing. [10]
4.2 Técnica do overruling
A técnica de superação de um precedente judicial é denominada de overruling, consubstanciado no afastamento de um precedente judicial pela sua revogação ou pela adoção de novo entendimento do Tribunal acerca de determinada tese, com uma maior carga de fundamentação, em virtude da modificação dos valores sociais, dos conceitos jurídicos ou mesmo em virtude do surgimento de instabilidade em sua aplicação.
A técnica do overruling é uma forma de revogação de precedentes que ocorre tanto no plano horizontal (quando o órgão revoga seu próprio precedente) como também no plano vertical (ocorre quando um Tribunal Superior revoga um precedente de um órgão hierarquicamente inferior).
Sinteticamente, o overruling apresenta-se como a técnica por meio da qual um precedente perde a sua força vinculante e é substituído (overruled) por outro precedente. No sistema do common law, a superação de um precedente por outro pode se dar de forma expressa (express overruling) ou tácita (implied overruling). No último caso, quando o órgão julgador adotar posição diversa da observada no precedente substituído sem dispor expressamente a respeito. No ordenamento nacional, entretanto, em que pesem, ainda, algumas divergências, a forma tácita não é admitida, em face da previsão do art. 927, § 4º, do CPC, que exige fundamentação adequada e específica para a superação de uma determinada orientação jurisprudencial, bem como do dever de estabilidade que também impede a alteração injustificada de entendimento.
Na visão de Luiz Guilherme Marinoni:
De modo geral, as exigências de uniformidade, coerência, consistência, imparcialidade, universalizabilidade e, mais genericamente, racionalidade na aplicação do Direito exigem que na revogação de precedentes judiciais sejam ponderadas cuidadosamente as necessidades de estabilidade e de mudança do sistema jurídico. [11]
Matéria ainda controvertida no ordenamento pátrio, a doutrina do common law classifica o overruling conforme sua eficácia seja ex nunc ou ex tunc. Nesse sentido, operando eficácia ex tunc (retrospective overruling), o novo precedente se aplica a fatos e situações ocorridas no passado, aos ainda pendentes de julgamento e aos casos futuros. Operando com eficácia ex nunc (prospective overruling), o novo precedente somente deverá ser observado na aplicação a casos futuros, aplicando-se o precedente substituído aos casos em curso antes da superação.
Outros conceitos também são trazidos pelo sistema alienígena, não necessariamente adotados pelas previsões do CPC/2015, como, por exemplo:
1) o anticipatory overruling, espécie de não aplicação preventiva do precedente, por instâncias inferiores, quando o Tribunal respectivo deixa transparecer uma alteração no seu posicionamento. Em realidade, trata-se de uma antecipação com base em um juízo de probabilidade, permitindo uma desconsideração pontual do stare decisis, mas, por outro lado, inserindo uma brecha no sistema em detrimento da estabilidade, da previsibilidade e da segurança jurídica;
2) o overriding, espécie de revogação parcial do precedente, observada em situações em que o Tribunal limita o âmbito de incidência de um precedente em virtude de uma regra de direito superveniente que impede sua aplicação em sua totalidade. Há, nessa circunstância, uma redução da incidência fática do precedente. A diferenciação entre o overriding e o distinguishing reside no fato de que, no primeiro, uma questão de direito superveniente é o fator impeditivo da aplicação do precedente; já no segundo, o impedimento se origina de uma questão de fato inerente ao caso em julgamento;
3) por fim, reversal traduz-se em técnica de controle, surgindo quando uma Corte Superior reforma uma decisão da Corte inferior.
5 TEORIA DOS PRECEDENTES JUDICIAIS NO CPC/2015
As principais considerações e características acerca dos precedentes estão previstas basicamente no CPC/2015, no Livro III, Dos Processos nos Tribunais e dos Meios de Impugnação das Decisões Judiciais, Título I, Da Ordem dos Processos e dos Processos de Competência Originária dos Tribunais, Capítulo I, Disposições Gerais.
5.1 Motivos e objetivos da adoção do sistema de precedentes
A Lei nº 13.105/2015, ao inserir os arts. 926 e 927, inova o ordenamento ao prever, de forma expressa, um rol de precedentes obrigatórios, impondo taxativamente aos Tribunais uma atuação direcionada à uniformização de sua jurisprudência, de forma a mantê-la estável, íntegra e coerente. Para além da necessária uniformização da jurisprudência, pressupõe a adequada referência às circunstâncias fáticas formadoras dos precedentes. O alvo do legislador foi a perniciosa lentidão e a falta de previsibilidade (estabilidade) das decisões, sedimentada na expressão “jurisprudência lotérica“, em que casos de mesmo substrato fático/jurídico são resolvidos de forma oposta, gerando incontornável insegurança jurídica, além de crescente litigiosidade recursal, com amplos reflexos na credibilidade e na confiabilidade estrutural do sistema, a impactar negativamente os extratos sociais e econômicos.
Nesse sentido, a previsão do art. 926, ao imputar aos Tribunais a obrigação de uniformização, busca afastar divergências; ao exigir estabilidade da jurisprudência, imputa aos magistrados em geral o dever de respeito e observância dos precedentes firmados. Por sua vez, as noções de integridade (ideia de unidade do Direito) e coerência (vista em seu aspecto formal como noção de não contradição e, no aspecto material, como conexão positiva de sentido) evidenciam que casos semelhantes devem ser decididos de forma semelhante, a partir dos mesmos fundamentos jurídicos aplicados em decisões anteriores, de forma a privilegiar a indispensável segurança jurídica do sistema, afastando o voluntarismo e ativismo arbitrário. Eis o dispositivo:
Art. 926. Os Tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
- 1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os Tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
- 2º Ao editar enunciados de súmula, os Tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.
É notório que a instabilidade da jurisprudência, em parte originada pela proliferação de interpretações divergentes e mesmo conflitantes em face de pontos idênticos ou semelhantes, apresenta forte impacto no desprestígio das leis e dos juízes. Nesse sentido, a relevância de se manter a jurisprudência estável, íntegra e coerente é condição essencial para a operacionalização do novo modelo adotado com a inserção dos precedentes vinculantes.
Tem-se como previsível e até aceitável a ocorrência de interpretações divergentes da lei por parte de juízes de primeira instância, diante da criatividade natural na busca de soluções justas e adequadas. Diferente, entretanto, é o que se espera dos Tribunais, os quais, com fundamento no princípio da isonomia, têm a missão de impedir a cristalização dessas decisões divergentes ou conflitantes. Glacielle Borges, citando Bruno Dantas, menciona que “normal é a jurisprudência dos Tribunais orientar a atuação dos juízes inferiores” e, por sua vez, “anormal é os Tribunais oferecerem o insumo da imprevisibilidade e da insegurança jurídica para os magistrados das instâncias inferiores e à sociedade em geral” [12].
O art. 927 do CPC/2015, por sua vez, elenca os precedentes judiciais vinculantes, os quais devem ser obrigatoriamente observados pelos juízes (stare decisis vertical) e Tribunais (stare decisis horizontal).
Art. 927. Os juízes e os Tribunais observarão:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os enunciados de súmula vinculante;
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V – a orientação do Plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
- 1º Os juízes e os Tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, §
1º, quando decidirem com fundamento neste artigo.
- 2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
- 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
- 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
- 5º Os Tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores.
Em conclusão, nos termos da Lei nº 13.105/2015, são normativos:
- a) os precedentes do STF proferidos em controle concentrado de constitucionalidade;
- b) os precedentes judiciais que conduzam à edição de enunciado de súmula vinculante;
- c) os precedentes proferidos em incidente de assunção de competência;
- d) os precedentes proferidos em resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
- e) os precedentes judiciais que conduzam à edição de enunciados de súmulas do STF em matéria constitucional e do STJ em matéria infraconstitucional;
- f) os precedentes oriundos do Plenário ou órgão especial do Tribunal.
Tomando por base o comando inserido no art. 927 do CPC/2015, extrai-se, de forma contundente, a natureza impositiva da observância dos mencionados precedentes, vinculando verticalmente os juízes e horizontalmente os Tribunais, com observância assegurada por meio da reclamação prevista no art. 988 do mesmo Codex.
O art. 927, § 1º, do CPC/2015 impõe aos magistrados que, ao decidirem com fundamento nos precedentes nele previstos, observem o disposto nos arts. 10 [13] e 489, § 1º, do CPC [14]. O mandamento legal objetiva, em realidade, evitar “decisões surpresas“, prestigiando o princípio do contraditório e confirmando a obrigatoriedade da plena e suficiente justificação da decisão, nos moldes como determinado no art. 93, IX, da Carta Magna [15].
Embora o art. 927, § 3º, preveja expressamente a possibilidade de modulação do overruling no caso de alteração da jurisprudência dominante, não há dúvidas de que a regra se aplica a qualquer alteração de precedente, súmula ou decisões provenientes de casos repetitivos e IAC.
Assim, uma fundamentação adequada e específica das decisões no CPC/2015 ganha expressivo relevo a partir dos comandos de seu art. 927, especificamente em seu § 4º, devendo ocorrer não somente na aplicação do precedente, súmula ou jurisprudência, mas também quando da sua não aplicação/observância ou modificação, em notória preocupação com o respeito aos princípios da isonomia, da proteção da confiança e da segurança jurídica, em um arcabouço em que assegure o respeito não somente a situações consolidadas no passado, mas também às legítimas expectativas originadas a partir das rationes já firmadas.
Observe-se que nem toda decisão judicial ou jurisprudência se traduz em precedente vinculante. A partir de parâmetros negativos, não será precedente a decisão que aplicar lei a partir de uma mera interpretação da norma legal já vinculativa ou que se limitar a promover a subsunção de fatos ao texto legal ou uma decisão que já tenha como suporte um precedente vinculante, nada agregando à tese aplicada ao caso concreto.
Nesse diapasão, note-se que precedente não é sinônimo de decisão judicial. Todo precedente tem origem em uma decisão judicial, mas nem toda decisão judicial deve ser considerada um precedente judicial em sentido técnico, já que nem todas estão revestidas dos elementos que permitem qualificá-la como tal, fazendo-se necessária, ainda, certa carga normativa, a teor do art. 927, evidenciando que a eficácia do precedente e das demais decisões é distinta, apresentando efeitos também distintos, fato que ganha relevo na temática da fundamentação das decisões, ante eventual divergência apontada pela doutrina, no que tange à obrigatoriedade de observância do procedimento do distinguishing na aplicação ou rejeição de um precedente, mas não para qualquer decisão no âmbito do processo.
De forma semelhante, não se confunde precedente normativo com enunciados de súmulas de jurisprudência. Estes, embora exprimam o entendimento ou resumo da interpretação predominante de um Tribunal acerca de determinada matéria, não se revestem, na sua formação, das garantias que possuem um precedente, como, por exemplo, o necessário contraditório advindo de um amplo debate dos litigantes em sua elaboração. Em outro aspecto, enquanto a súmula é, na sua aplicação prática, sujeita a interpretações desvinculadas de um caso concreto, o precedente costuma ser lido de forma estrita e particular, facilitando a operação do distinguishing em casos futuros.
6 OS ELEMENTOS ESSENCIAIS DA SENTENÇA E A SISTEMÁTICA DOS PRECEDENTES NO CPC/2015
Os preceitos introduzidos pelo art. 489 do CPC/2015 norteiam diretrizes básicas para compreensão da dinâmica dos precedentes no ordenamento jurídico brasileiro, fazendo emergir, a partir da descrição dos elementos essenciais a uma sentença judicial, uma cultura argumentativa obrigatória na praxis jurídica.
Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
I – o relatório […];
II – os fundamentos […];
III – o dispositivo […].
- 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
- 2º No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.
- 3º A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé.
De forma transversa, os incisos V e VI introduziram no ordenamento jurídico nacional a técnica da distinção ou distinguishing, determinando que a desconsideração de um precedente pressupõe a demonstração de que os pressupostos de fato e de direito não correspondem aos mesmos do caso concreto, sendo necessária a similitude entre as teses jurídicas do paradigma e do caso em análise, mas não propriamente a identidade entre ambos.
Sinteticamente, entre outras diretrizes, a previsão legal induz a um discurso racional e argumentativo acerca da aplicação ou não de um precedente judicial, condicionando a validade da sentença à explicitação de sua motivação e de seus fundamentos determinantes, fatores de crucial relevância para a individualização do direito e da particularização da situação fática levada a juízo. Nesse ínterim, mesmo a aplicação das súmulas (vinculantes ou não) deve observância à técnica de comparação e diferenciação própria dos precedentes, em uma contundente guinada no exercício da jurisdição: com o CPC/2015, a aplicação das súmulas de maneira mecânica e simplista deixa de ser vista como mera inconveniência para emergir como indisfarçável ilicitude ante a previsão do art. 489, razão para anulação da sentença judicial.
6.1 Os precedentes judiciais e o incidente de resolução de demandas repetitivas
Para o atingimento do desiderato de melhoria na efetividade da prestação jurisdicional, marcada por maior previsibilidade, estabilidade, segurança jurídica e redução de demandas, a Lei nº 13.105/2015 introduz no ordenamento pátrio o Incidente de Assunção de Competência – IAC e o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR, respectivamente, nos arts. 947 e 976 a 985.
Os objetivos do legislador ordinário com os IAC e IRDR, atrelados às previsões dos art. 926 e 927, são evidentes: a partir da coletivização das teses jurídicas, vinculativas às instâncias ordinárias, garantir a uniformização, estabilização e previsibilidade da jurisprudência, minimizando divergências interpretativas, com expressivos reflexos na celeridade de tramitação dos processos, eliminação de pulverização de demandas sobre um mesmo tema e diminuição de recursos aos tribunais superiores. Prestigia-se a eficiência na prestação jurisdicional, a igualdade de tratamento ao jurisdicionado e a segurança jurídica de todo o ordenamento.
6.2 O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR
O IRDR é cabível quando identificada repetição de processos com controvérsia unicamente de direito, com risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica, frente à potencial probabilidade de coexistirem decisões conflitantes.
Os arts. 976 e seguintes do CPC/2015 introduzem impactantes alterações no sistema processual pátrio a partir do novel “Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas” – IRDR, uma vez que o surgimento de tese jurídica vinculante deverá ser aplicada a processos individuais ou coletivos dentro da área de jurisdição do Tribunal prolatante.
A nova sistemática deverá impactar na celeridade de julgamento dos processos em curso, na segurança jurídica e, a partir dessa, provavelmente, na busca de soluções alternativas de litígio ante a previsibilidade propiciada pelo conhecimento da tese estatuída no IRDR, com reflexos, inclusive, na formação e atuação profissional do operador do Direito. Assim a norma:
Art. 976. É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas quando houver, simultaneamente:
I – efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito;
II – risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.
[…]
Art. 985. Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada:
I – a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo Tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região;
II – aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do Tribunal, salvo revisão na forma do art. 986.
- 1º Não observada a tese adotada no incidente, caberá reclamação.
- 2º Se o incidente tiver por objeto questão relativa a prestação de serviço concedido, permitido ou autorizado, o resultado do julgamento será comunicado ao órgão, ao ente ou à agência reguladora competente para fiscalização da efetiva aplicação, por parte dos entes sujeitos a regulação, da tese adotada.
Art. 986. A revisão da tese jurídica firmada no incidente far-se-á pelo mesmo Tribunal, de ofício ou mediante requerimento dos legitimados mencionados no art. 977, inciso III.
Art. 987. Do julgamento do mérito do incidente caberá recurso extraordinário ou especial, conforme o caso.
- 1º O recurso tem efeito suspensivo, presumindo-se a repercussão geral de questão constitucional eventualmente discutida.
- 2º Apreciado o mérito do recurso, a tese jurídica adotada pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça será aplicada no território nacional a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito.
A introdução do IRDR no ordenamento, entretanto, não fica imune a críticas por parte da doutrina, segundo a qual o instituto torna o precedente dele advindo mais forte que a norma, em violação ao princípio da legalidade e à independência entre os Poderes, além de vincular excessivamente o juiz em prejuízo de sua independência e livre convicção, equiparando, de outro lado, a força do incidente à das súmulas vinculantes, sem autorização constitucional.
6.3 O Incidente de Assunção de Competência – IAC
O IAC, previsto no art. 947 do CPC/2015, é admissível quando a causa envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, de forma a justificar a apreciação pelo órgão colegiado indicado no regimento do Tribunal. Diversamente do IRDR, no IAC não há repetição de processos múltiplos:
Art. 947. É admissível a assunção de competência quando o julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo de competência originária envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos.
- 1º Ocorrendo a hipótese de assunção de competência, o relator proporá, de ofício ou a requerimento da parte, do Ministério Público ou da Defensoria Pública, que seja o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária julgado pelo órgão colegiado que o regimento indicar.
- 2º O órgão colegiado julgará o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária se reconhecer interesse público na assunção de competência.
- 3º O acórdão proferido em assunção de competência vinculará todos os juízes e órgãos fracionários, exceto se houver revisão de tese.
- 4º Aplica-se o disposto neste artigo quando ocorrer relevante questão de direito a respeito da qual seja conveniente a prevenção ou a composição de divergência entre Câmaras ou Turmas do Tribunal.
Nos termos do art. 927, III, do CPC, o precedente originado de acórdão em IAC vincula os juízes das instâncias inferiores, bem como os juízes do próprio Tribunal prolator da decisão.
6.4 A reclamação como controle da atuação judicante
Nessa seara de precedentes vinculantes, ganha força o instrumento da reclamação aos Tribunais como instrumento que viabiliza a força dos precedentes:
Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para:
I – preservar a competência do Tribunal;
II – garantir a autoridade das decisões do Tribunal;
III – garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; (Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016)
IV – garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência; (Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016)
- 1º A reclamação pode ser proposta perante qualquer Tribunal, e seu julgamento compete ao órgão jurisdicional cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir.
[…]
- 4º As hipóteses dos incisos III e IV compreendem a aplicação indevida da tese jurídica e sua não aplicação aos casos que a ela correspondam.
- 5º É inadmissível a reclamação: (Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016)
I – proposta após o trânsito em julgado da decisão reclamada; (Incluído pela Lei nº 13.256, de 2016)
II – proposta para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, quando não esgotadas as instâncias ordinárias. (Incluído pela Lei nº 13.256, de 2016)
[…]
Art. 992. Julgando procedente a reclamação, o Tribunal cassará a decisão exorbitante de seu julgado ou determinará medida adequada à solução da controvérsia.
Em análise inicial do CPC/2015, a doutrina apresentava crítica relacionada à ampliação do alcance da reclamação, caracterizando-a como um “atalho processual” a viabilizar uma supressão de instância rumo ao STF. O acesso per saltum à Corte Suprema, viabilizado pela redação original da Lei nº 13.105/2015, fazia surgir o risco de transformar o STF em Corte de revisão.
O advento da Lei nº 13.256/2016 fez por restringir a via da reclamação direta para o STJ e STF. Agora, a teor do art. 988, § 5º, II, será cabível o instrumento somente após esgotadas as instâncias ordinárias.
7 OPORTUNIDADES, DESAFIOS E CRÍTICAS AO NOVO PARADIGMA
O Código Processual Civil estatuído pela Lei nº 13.105/2015 traz consigo um compromisso de propiciar uma adequada e efetiva tutela jurisdicional nos moldes exigidos pela Constituição Federal, além de um objetivo de dotar o ordenamento jurídico de coerência, estabilidade e integridade. Para tanto, o modelo de precedentes introduzido pela lei apresenta, indubitavelmente, maior potencial em prol de melhor conformidade na aplicação do Direito.
Entretanto, a reboque da profunda alteração estrutural consubstanciada na inserção dos precedentes no ordenamento pátrio, emergem, em um movimento contraposto de ação e reação, severas críticas por parte da doutrina, além de desafios de implementação.
Uma das críticas se fundamenta, notadamente, no argumento de que, salvo exceções, a Constituição não autoriza a função legislativa ao Poder Judiciário, visualizando na incorporação dos precedentes normativos uma clara invasão de competência ao permitir ao Poder Judiciário produzir normas gerais e abstratas, como no rol do art. 927 do CPC, em evidente ruptura com o princípio da legalidade e afronta ao fundamental princípio democrático e da separação de poderes, em que, precipuamente, o Poder Legislativo legisla, o Poder Executivo executa e o Poder Judiciário julga.
Em contrapartida, aduz a corrente contrária que a reconstrução da norma é tarefa imanente à atividade jurisdicional, sendo geral e concreta a norma advinda do precedente normativo e não geral e abstrata, como a lei. A crítica de violação ao princípio da legalidade pela inserção dos precedentes normativos é refutada, também, sob o argumento de que a legalidade deve ser entendida como conformidade com o ordenamento constitucional e não como lei em sentido estrito, aduzindo, ainda, que a lei é o limite à discricionariedade judicial em um modelo de precedentes normativos e vinculantes.
Já na visão de Pierluigi Chiassoni, na mesma linha de raciocínio anterior, se as normas só existem a partir da interpretação, é possível dizer que o respeito ao princípio da legalidade significa, em realidade, respeito à interpretação conferida à lei pelos órgãos institucionalmente a tanto encarregados. [16]
O debate, se puramente técnico, parece não aproveitar à constitucionalidade da inserção dos precedentes normativos, ante o fato de que, no modelo neoconstitucional, vale a interpretação que o juiz faz da lei e não a lei em si mesma. O argumento de Pierluigi, de notória natureza sofística, por sua vez, faz por ratificar os riscos provenientes da ampla gama de interpretações possíveis de um mesmo texto positivado. A solução, assim, pende para a adoção de um pragmatismo operante.
Tema polêmico é a retirada do termo “livremente” do art. 371 do novo Codex[17]. A partir desse fato, parte da doutrina passou a entender que a forma de valoração da prova pelo juiz foi substancialmente alterada, impactando no sistema de persuasão racional pela eliminação do princípio do livre convencimento motivado. Em contraposição, argumenta-se que interpretar o Direito se difere de valorar a prova, permanecendo a liberdade na valoração da prova de forma motivada, conforme o art. 489, § 1º, do CPC/2015 (e art. 93, IX, da CF), mas agora dentro de novas fronteiras estabelecidas pelos precedentes normativos, devendo respeito aos parâmetros de coerência e integridade do Direito, de forma verticalizada e vinculante.
Um dos desafios apontados é a necessidade de correta aplicação do art. 489, §§ 1º e 2º, do CPC, essencial para o êxito das pretensões e objetivos da nova sistemática. “Julgar procedente com base na súmula vinculante x ou no art. y” não basta. Faz-se imprescindível a superação do silogismo a partir da correta fundamentação na forma do art. 489, sem o que a incorreta aplicação dos precedentes normativos fragilizará todo o sistema legal respectivo, abrindo grave canal para uma ainda maior insegurança jurídica.
Outro dos desafios reais, mencionados pela doutrina para implementação e êxito do modelo de precedentes normativos, é a compreensão do instituto por parte dos magistrados em geral, consciência de que as técnicas de distinguishing e overruling necessitam de correta aplicação, refreando o protagonismo individual exacerbado.
Aduz parte da doutrina que, levada às últimas raias, a regra segundo a qual cada juiz decide de acordo com a sua própria consciência, sem as balizas do Direito, leva a uma situação denominada “estado de natureza interpretativo“, em que nenhum juiz ou Tribunal se sente vinculado à sua própria decisão anterior. Possivelmente esta seja uma das maiores dificuldades para o êxito almejado na modificação do paradigma pelo Código de 2015. Em uma visão mais extremada, o desbordamento da discricionariedade para uma “arbitrariedade judicial“, agora sem os limites da norma positivada, pode desaguar em uma possibilidade de escolha pelos Tribunais entre cumprir a lei ou não cumprir a lei, fazendo emergir um ambiente de juristocracia, em um desequilíbrio da balança dos poderes, com sérios riscos à tradição republicana.
A contundência da assertiva procede. O êxito do modelo dos precedentes normativos não se funda tão somente na sua inserção legislativa no ordenamento brasileiro ou na compreensão de seus institutos, mas primordialmente na modificação de conduta dos julgadores, no sentido de que o livre convencimento seja efetivamente motivado, além de balizado pelos parâmetros dos precedentes e pela norma, rumo à almejada coerência, integridade e estabilidade do sistema jurídico.
Nesse contexto, a compreensível preocupação com metas numéricas fundadas em princípios como celeridade e eficiência, aliada a decisões com “fundamento padrão“, confortavelmente assentada em uma inércia atitudinal de parte da magistratura, motivadas com argumentos utilitaristas, justificados por princípios genericamente servíveis para quaisquer casos e aplicados em teses sem contexto, em detrimento da qualidade dos julgados, também é fator preocupante.
O objetivo de maior celeridade nos julgamentos, com decisões coerentes e maior segurança jurídica, encontra, ainda, óbice na formação acadêmica. A grade curricular das faculdades nacionais não está, ainda, adaptada para municiar o estudante de conhecimentos específicos para a correta utilização do sistema de precedentes normativos, o que poderá acarretar graves dificuldades na operacionalização do sistema ante a deficiência na formação acadêmica.
Outra questão de relevo é o fato de que o IRDR e o IAC serão suscitados perante qualquer Tribunal, não havendo previsão legal para julgamento desses incidentes no âmbito dos Juizados Especiais (TNU, TRU e TR). Emergem, assim, dúvidas acerca do papel das TRU, TR e TNU na uniformização da jurisprudência no microssistema dos juizados, ante a notória dificuldade de compatibilização com a força e prevalência dos precedentes provenientes dos TJ e TRF, em detrimento da jurisprudência dos Juizados Especiais.
Na visão de Luiz Guilherme Marinoni, as Cortes de Justiça (TJ, TRF, TRT), diversamente das Cortes Supremas (STF e STJ), têm suas funções voltadas aos casos concretos “com função de controle da interpretação dos fatos da causa e do direito aplicável“. Nesse sentido, o dever de uniformização via precedentes acabará por reduzir o salutar debate sobre temas jurídicos presentes no seio das demandas. O dever de uniformização, função precípua das Cortes Supremas, voltadas à unidade do Direito, se harmoniza com o “papel de exploração de possíveis significados dos textos jurídicos” por parte das Cortes de Justiça, visto que, em um raciocínio lógico, conhecer o disforme precede a atividade de uniformização, sob pena de engessamento da atividade intelectiva e do desenvolvimento do Direito.
7.1 Pesquisa: análise da aplicação prática do precedente no Direito brasileiro
Sintomáticas são as hipóteses elencadas em pesquisa realizada no âmbito do CNJ, antes da vigência do CPC/2015, sob o título “A força normativa do direito judicial: uma análise da aplicação prática do precedente no Direito brasileiro e dos seus desafios para a legitimação da autoridade do Poder Judiciário” [18], que demonstra a preocupação da cúpula do Poder Judiciário com a forma como se dará a construção da sistemática dos precedentes a partir da nova formatação introduzida pelo CPC/2015.
No estudo apresentado, a juízo da equipe executora da pesquisa, 20{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} do total das súmulas vinculantes analisadas (4 súmulas) não tiveram observados, para sua formação, o pressuposto constitucional de “reiteradas decisões sobre casos análogos“, denotando clara postura proativa do STF na edição de súmulas vinculantes, evidenciando perigoso ponto de desequilíbrio entre os Poderes. Como aduz o mencionado estudo, a preocupação do legislador, ao estabelecer esse critério como necessário para a edição das súmulas vinculantes, decorre justamente da força normativo-vinculante que elas possuem. Ao olvidar-se deste ponto corre-se o risco de o Judiciário adotar um raciocínio típico do Poder Legislativo.
No mesmo sentido, outro ponto de relevo é a conclusão acerca da criação de súmulas fundadas em argumentos pragmáticos (notadamente vinculados a questões financeiras, econômicas ou tributárias), incorrendo-se no risco de expansão da margem de discricionariedade do Poder Judiciário, adentrando em juízos de conveniência e oportunidade, próprios da função legislativa.
Em consonância com o afirmado anteriormente, a maioria das súmulas editadas pelas duas Cortes foi fiel aos precedentes que lhes serviram de fundamento. Entretanto, foi constatado que algumas súmulas possuíam conteúdo mais restrito ou mais amplo do que a questão discutida nos acórdãos paradigmas. Esse último caso (conteúdo mais amplo) é motivo de preocupação porque parece desnaturar a súmula de forma a aproximá-la de um enunciado legislativo, “na medida em que a fixação de regras em enunciados genéricos, para além do que foi decidido de maneira específica em cada caso concreto, constitui uma forma indireta de violação do requisito legal da existência de reiteradas decisões” e, o que é ainda mais grave, implica a produção de uma ratio decidendi que não foi construída com a participação das partes e em observância do princípio do contraditório.
Ao se fixar uma regra geral e abstrata produzida à margem do princípio da vinculação ao debate (mootness principle), dificulta-se uma correta e adequada aplicação da súmula vinculante no julgamento de outros processos, além de limitar a correta aplicação (utilização) da técnica do distinguishing (dificuldade na localização e na identificação da ratio decidendi) e do overruling.
A equipe constatou que, estruturalmente, “a maioria das súmulas dos Tribunais analisados possui redação dotada, exclusivamente, de termos concretos, utilizando-se conceitos fechados e exaustivos, contrastando-se com conceitos indeterminados, valorativos ou interpretativos“. A rigor, trata-se de situação preocupante na visão da equipe, haja vista que, nos casos em que não existe a publicação dos debates realizados na sessão em que a súmula foi promulgada (situação ocorrida em todas as súmulas do STJ e do STF anteriores à Súmula Vinculante nº 14), não se faz possível identificar o leading case (o caso paradigma) utilizado para criação das súmulas, única forma de alcançar uma interpretação adequada do seu enunciado.
Identificou-se, ainda, a existência de súmulas do STF, sem efeitos vinculantes, que interpretam preceitos legislativos já revogados expressa ou tacitamente, além de alteração na redação original de súmulas, com alargamento/ampliação de seu conteúdo, em decorrência de dissenso entre os ministros.
Na visão da equipe pesquisadora:
Como cada julgador tem autonomia para decidir e cada voto não precisa considerar em nada os demais, a contagem de votos pela inconstitucionalidade ou constitucionalidade da norma ao final da votação é tranquilamente verificável, mas a determinação da regra judicial não o é, diante da possibilidade de mesmo em um julgamento decidido por unanimidade, cada um dos onze ministros ter votado por razões completamente diversas (idêntica conclusão, com fundamentos distintos), já que cada qual elabora seu próprio voto de forma independente dos demais, emergindo expressiva dificuldade na identificação da ratio decidendi.
Em um sistema de precedentes obrigatórios e vinculativos, mencionada conclusão traz grave empecilho para o êxito do novo modelo inserido pelo CPC/2015. Não havendo como se identificar a ratio decidendi nos julgados que a preveem, inviabilizada estará a construção de coerência, estabilidade ou integridade da jurisprudência dentro dos próprios Tribunais, não havendo, por óbvia consequência, precedente a vincular as instâncias inferiores ou os próprios Tribunais em stare decisis horizontal nem mesmo a utilização das técnicas de overruling ou distinguishing.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As profundas mudanças no seio do processo civil pátrio são impulsionadas por nítida influência constitucional, norteando sensíveis alterações nos pilares do processo civil, marcadamente técnico, individualista e privado, rumo a fundamentos acentuadamente objetivos e jurisprudenciais, próprio do common law, revelando clara alteração de paradigmas, transmudando para um processo compreendido como fenômeno de poder, social e coletivo.
Na tradição romano-germânica, o Direito encontra a sua primeira e mais clara expressão na lei, utilizada na aplicação do abstrato ao concreto. O princípio fundamental é o da legalidade. Na nova formatação do ordenamento, o órgão central de onde emana a juridicidade deixa de ser o Poder Legislativo e passa a ser o Judiciário.
O ordenamento de então (CPC/1973 – art. 126) [19] definia a lei como fonte primária do Direito, relegando à jurisprudência um papel subsidiário e persuasivo, induzindo o juiz à busca da vontade concreta da lei e do Direito. No campo da hermenêutica jurídica, entretanto, alterou-se a função do julgador na interpretação do texto legal, passando a norma a ser resultado dessa interpretação e não mais um pressuposto desta. Não é pequena a mudança. Os parâmetros positivistas vão sendo intuitivamente abandonados a partir da adoção da concepção neoconstitucionalista.
Pela análise do teor da Lei nº 13.105/2015, resta evidente a ampla adoção de precedentes normativos/vinculantes pelo ordenamento pátrio. Mencionada adoção, revolucionária à medida que abala substancialmente os pilares do sistema civil law, adotado por largo espaço de tempo, apresenta severos desafios, ao passo que impõe uma necessária familiarização e rápida adaptação da comunidade jurídica à nova forma de lidar com conceitos pouco conhecidos como ratio decidendi, obter dictum e distinguishing, a forçar uma necessária guinada na forma como os profissionais do Direito exercerão seu múnus.
Oportunidades, em contrapartida, surgem a partir da nova estruturação do ordenamento, podendo viabilizar o aprimoramento da atuação judicial, entendida em sua acepção lata, em busca dos objetivos de maior racionalidade da prática judiciária, maior previsibilidade jurídica, tratamento isonômico dos interesses em conflito nas inúmeras ações similares e na maior celeridade em direção ao respeito do jurisdicionado na realização de justiça.
Viradas jurisprudenciais abruptas, em um contexto de jurisprudência extremamente caótica, são terreno fértil para a proliferação de recursos no afã, absolutamente compreensível, de reverter o sempre instável entendimento dos Tribunais, a depender do relator ou da Turma a que ele for distribuído.
Nessa seara, a vinculação aos precedentes, à jurisprudência e aos enunciados de súmulas, previstos no art. 489 do CPC, induz a uma provável diminuição no âmbito de livre criação jurisprudencial, na medida em que os próprios Tribunais estarão obrigados à observância e respeito às suas próprias decisões anteriormente prolatadas, nos termos dos arts. 926 e 927 do CPC.
Sem embargo das inúmeras discussões em torno do tema, é relevante reforçar que o poder de produzir precedentes vinculantes não deve ser um poder sem limites. A construção do teor vinculante de um precedente se restringe aos fatos que o gerou e à questão jurídica apreciada.
Curioso observar um peculiar paradoxo de influências no ordenamento brasileiro: se a construção do sistema constitucional pátrio apresenta forte inspiração norte-americana (due process of law e consagração das garantias e direitos fundamentais), diversamente, o ordenamento infraconstitucional tem origem na tradição romano-germânica. O controle de constitucionalidade difuso é inspirado no judicial review, importado da prática estadunidense, enquanto o controle concentrado tem origem austríaca. Em tempos recentes, ao ordenamento fundado na tradição do civil law constrói-se um complexo sistema de precedentes judiciais vinculantes e obrigatórios, de óbvia inspiração no common law.
O atingimento dos objetivos de maior estabilidade e, intuitivamente, de justiça (em sentido leigo) apresenta um pressuposto de ordem comportamental subjetiva elementar: a compreensão do magistrado de que é parte integrante de um todo, não atuando isoladamente. A atividade jurisdicional do juiz, fruto de uma liberdade responsável, sem se descurar de sua independência, deve se direcionar a uma prestação de justiça caracterizada pela coerência, integridade, celeridade, credibilidade e confiabilidade.
Nesse sentido, nas palavras de Luiz Guilherme Marinoni, “o cargo de juiz não existe para que aquele que o ocupa possa proferir ‘a sua decisão’, mas para que ele possa colaborar com a prestação jurisdicional – para o que a decisão, em contraste com o precedente, nada representa, constituindo, em verdade, um desserviço [20]“. Bem, não é tarefa fácil em se considerando séculos de individualismo, característico da tradição do civil law, a moldar o comportamento, a conduta e cultura judicial.
Bem, alea jacta est!
REFERÊNCIAS
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[1] DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
[2] MACCORMICK, Neil [1941]. Retórica e o Estado de Direito. Uma teoria da argumentação jurídica (Introdução de Conrado Hubner Mendes). Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.
[3] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015.
[4] CRUZ E TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: RT, 2004. p. 174.
[5] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
[6] CRUZ E TUCCI, José Rogério. Op. cit. p.
[7] DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de; MACÊDO, Lucas Buril de (Org.). Coleção grandes temas do novo CPC: precedentes. Salvador: JusPodivm, v. 3, 2015.
[8] JESUS, Priscilla Silva. Teoria do precedente judicial e o novo Código de Processo Civil.
Disponível em: <www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/download/3240/
2321>. Acesso em: 25 maio 2016.
[9] MARINONI, Luiz Guilherme. Op. cit.
[10] ROSITO, Francisco. Teoria dos precedentes judiciais: racionalidade da tutela jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2012. p. 303.
[11] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 394.
[12] TORQUATO, Glacielle Borges. O direito fundamental à previsibilidade das decisões judiciais e a proteção da confiança como consectários lógicos do Estado Democrático de Direito. Dissertação de Mestrado pela Universidade Federal do Tocantins, Palmas/TO, 2015.
[13] “Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.”
[14] “Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
[…]
- 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.”
[15] “Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
[…]
IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.”
[16] CHIASSONI, Pierluigi. Il precedente giudiziale: tre esercizi di disincanto. Disponível em: <http://www.giuri.unige.it/intro/dipist/digita/filo/testi/analisi_2004/07chiassoni.pdf>. Acesso em: 16 abr. 2015, p. 83-87.
[17] “Art. 371. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.”
[18] Conselho Nacional de Justiça. A força normativa do direito judicial: uma análise da aplicação prática do precedente no direito brasileiro e dos seus desafios para a legitimação da autoridade do Poder Judiciário. Coord. Thomas da Rosa de Bustamante et al.; Alice Gontijo Santos Teixeira et al.; Colab. Gláucio Ferreira Maciel et al. Brasília, 2015. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/destaques/arquivo/2015/06/881d8582d1e287566dd9f0d00ef8b218.pdf>. Acesso em: 25 maio 2016.
[19] “Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 01.10.1973)”
[20] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes…, cit., 3. ed. rev. atual. e ampl. 2013.