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O SUPERENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR: ABRANGÊNCIA, CONCEITO, PREVENÇÃO E RECUPERAÇÃO

O SUPERENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR: ABRANGÊNCIA, CONCEITO, PREVENÇÃO E RECUPERAÇÃO

Fernando Lima Gurgel do Amaral

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 O Consumo como Terapia. 3 Conceito. 4 Classificação. 5 Prevenção; 5.1 Análise de Capacidade de Pagamento do Cliente. 6 Recuperação do Superendividado. Bibliografia.

                       

1 Introdução          

A doutrina nacional, capitaneada pelos estudos de Cláudia de Lima Marques[1], entende que o superendividamento diz respeito à impossibilidade estrutural do devedor pessoa física, de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas decorrentes de consumo, vencidas e vincendas, excluindo as dívidas oriundas de relações profissionais, delituosas, alimentares ou fiscais.

Não há no Brasil uma legislação para o consumidor superendividado. A legislação hoje vigente acerca de bens impenhoráveis, tais como a Lei nº 8.009/90 e como o art. 649 do Código de Processo Civil (CPC), são medidas incompletas e imperfeitas na proteção do superendividado. Isso porque essas medidas não previnem o superendividamento e tampouco recuperam o indivíduo superendividado, mas somente asseguram a impenhorabilidade de bens que o legislador julgou indispensáveis para a vida humana digna.

A importância do tema é evidente. Se o legislador entendeu pertinente regular e dar meios de auxílio às sociedades empresárias quando estas se encontram em dificuldades financeiras (Lei nº 11.101/05), ainda mais importante se faz elaborar uma legislação para prevenção do superendividamento e recuperação do superendividado. Enquanto nas falências das sociedades empresárias o dano ao ser humano é indireto (sócios e empregados, por exemplo), nos casos do superendividamento da pessoa física o dano à dignidade do ser humano é direto, constante e instransponível.

A eventual legislação acerca deste tema necessita delimitar sua abrangência, conceituando quem é o superendividado, e afastando ou não, por exemplo, créditos decorrentes de relação profissional. Também é necessário que sejam elaboradas medidas preventivas, de modo a fornecer informações adequadas ao consumidor quando da contratação do crédito. E, por fim, deverá a legislação prever mecanismos de recuperação do superendividado, comumente mediante a homologação judicial de um plano de pagamento das dívidas, com novas condições de prazo e eventual deságio.

Tramita hoje no Senado o Projeto de Lei nº 283/2012 (PL nº 283/2012), o qual possui regramento global para o superendividamento de consumo. O presente artigo fará uma análise livre acerca do tema, não se restringindo aos conceitos do PL nº 283/2012, que apenas serão analisados pontualmente.

2 O Consumo como Terapia     

Edward Luttwak[2] analisou que no ano de 1998, nos Estados Unidos da América, o país crescia juntamente à renda doméstica, mas o consumo crescia ainda mais rápido e, com isso, o endividamento familiar ganhava proporções históricas. A paradoxal situação de crescimento da economia e da renda familiar, juntamente à escalada do endividamento dos consumidores, fez Edward Luttwak indagar “por que os norte-americanos gastam tanto? Por que os que têm menos vão em frente e gastam até se endividar e falir?” [3]. Para responder a essa questão, o que, aliás, é uma tarefa fadada ao insucesso, não há somente uma alternativa, é preciso inicialmente analisar a evolução dos modelos de consumo.

No princípio, conforme ensina Zygmunt Bauman[4], a pessoa consumia um produto ou serviço por conta de uma necessidade, mas o capitalismo necessitava de mais consumo. Supostas necessidades foram criadas mediante propaganda. Ainda assim, o imperativo de crescimento do consumo não se contentou com esta realidade. Portanto, o modelo teve que ser alterado. Na transição do século XIX para o século XX, o consumo não mais era movido pela necessidade, mas pelo desejo. Naquele novo século, o consumo já não consistia na somatória de necessidades reais ou artificiais, mas, sim, no desejo, o qual não precisa de justificação ou causa, estando fadado a permanecer insaciável.

Mas mesmo o desejo é finito e custoso. É finito porque há algo subjacente. Enquanto no modelo da necessidade o impulso subjacente é a autoaprovação, no desejo há por baixo a comparação, a vaidade e a inveja. Além disso, o desejo é custoso, pois, embora expansível, há necessidade de investimento pelos fornecedores para criar mais desejo nos consumidores.

Assim, o modelo mais uma vez necessitou ser alterado para expandir o consumo. Primeiro da necessidade para o desejo, e agora do desejo para o querer. O querer é o atual modelo de consumo. Diferentemente dos modelos anteriores, não há no querer qualquer ligação com a realidade. Não há nada por baixo do querer. O ato de consumir no atual modelo é líquido, semelhante a um sonho, e como todo querer, é insincero e infantil[5].

Zygmunt Bauman analisou que o consumidor compra por dois motivos, que são os motores neste novo modelo de consumo. Primeiro porque busca sensações agradáveis ao adquirir bens de consumo, sejam eles alimentos, celulares modernos, ou ainda sensações mais profundas prometidas por conselheiros profissionais, sempre empurrados por uma forte carga de publicidade criadora de desejos. Mas há um segundo motivo. O consumidor compra para escapar da agonia decorrente da incerteza da vida moderna[6], a qual está atrelada à inexistência de standards de felicidade na sociedade contemporânea. O indivíduo se encontra em uma eterna busca pelo sucesso, pela felicidade e pela sua personalidade.

Dessa forma, a própria personalidade é objeto de consumo. As compras não estão restritas a bens materiais. O indivíduo consome determinadas habilidades sociais que entende necessárias para ser bem-sucedido na vida. Conforme exemplificado por Bauman, o consumidor vai às compras “pelo tipo de imagem que gostaríamos de vestir e por modos de fazer com que os outros acreditem que somos o que vestimos[7]. O consumo, sob este prisma, é fator de individualização do indivíduo, sendo que, nas camadas mais pobres, o consumo possui ainda fator simbólico de conceder dignidade no meio social[8]. Além disso, esta angustia e insegurança também estão atreladas ao esfacelamento das relações pessoais, sobretudo aos familiares[9].

Há diversas soluções encontradas pelo homem moderno para sanar a angústia, a incerteza e a solidão. Drogas, álcool, tabagismo, religião e trabalho foram algumas das soluções encontradas, mas nenhuma delas se iguala ao ato de consumir. O consumo é a melhor terapia para o indivíduo moderno. Preenche a solidão, alivia a angústia e a incerteza, molda ou, pelo menos, representa a sua personalidade, além de conceder um pouco de dignidade às classes mais humildes, que somente no consumo encontram algum ponto de contato com o mundo que lhes é vendido na televisão. Qualquer solução legislativa a ser dada ao problema do superendividamento não pode menosprezar este fenômeno sociológico.

3 Conceito  

Na doutrina nacional, há um entendimento majoritário no sentido de que o superendividamento diz respeito à impossibilidade global do devedor pessoa física, de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas decorrentes de consumo, vencidas e vincendas, excluindo as dívidas oriundas de relações profissionais, delituosas, alimentares ou fiscais [10].

Embora muitos dos textos nacionais tragam essa definição, esse conceito está longe de ser uníssono. Diversas são as questões ainda em debate: (i) o que fazer com a pessoa física superendividada por dívida decorrente não de relação de consumo, mas, sim, de relação profissional, por exemplo?; (ii) o consumidor de má-fé não terá auxílio algum? Ou melhor, será possível provar a boa ou má-fé no caso concreto? Caso esta resposta seja negativa, esta impossibilidade fática deve ser contemplada na legislação?; (iii) há necessidade de se fixar na legislação um valor mínimo para a manutenção da pessoa e de sua família?

Diante dessas indagações, é possível elencar as principais questões que ainda necessitam ser debatidas pela doutrina: (i) restrição às pessoas físicas; (ii) restrição às dívidas de consumo; (iii) exclusão dos superendividados de má-fé; e (ii) valor mínimo da dívida para configuração de superendividamento.

A primeira problemática diz respeito à restrição às pessoas físicas, havendo pouca divergência a esse respeito. Há, entretanto, uma pequena confusão quanto à justificativa. Muito se fala que o endividamento da pessoa jurídica estaria regulado pela Lei nº 11.101/05 [11], o que não é completamente verdade. Isso porque a Lei de Falência e Recuperação Judicial diz respeito somente às sociedades empresárias. Com isso, sociedades simples não empresárias não podem se valer da aludida legislação, tampouco estão dentro do conceito de superendividamento.

Por outro lado, uma das principais controvérsias relacionadas a este tema diz respeito à segunda problemática, mais especificamente à restrição do regime jurídico em questão somente às dívidas decorrentes de consumo. O entendimento majoritário na doutrina nacional defende que o conceito de superendividamento deve ser restrito às dívidas de consumo, excluindo as dívidas fiscais, decorrentes de alimentos ou relações profissionais [12]. Mas a questão está longe de ser pacífica. Isso porque a legislação do superendividamento, ao excluir do seu campo de abrangência os créditos decorrentes de dívidas profissionais, fiscais, alimentares ou de delitos, deixa sem amparo estas pessoas físicas, que permanecerão superendividadas.

No PL nº 283/2012, há previsão de restrição da legislação somente aos créditos decorrentes de consumo[13]. Aliás, a Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (ABECS), em audiência pública perante o Senado Federal acerca do PL nº 283/2012, apontou o seu descontentamento com tal posição legislativa. Para a ABECS, “deveria-se discutir insolvência civil como um todo, e não isoladamente apenas em relação ao consumo[14]. Na França, por exemplo, também está dentro do conceito de superendividado a pessoa física cuja dívida é decorrente de prestação de garantia em favor de sociedade igualmente em situação de endividamento[15].

Não se pode negar que a restrição aos débitos oriundos de consumo deixa de fora muitas pessoas físicas que necessitam de um auxílio legal. Contudo, a realidade social, econômica e fática do consumidor superendividado é distinta da realidade dos superendividados pelas dívidas fiscais, profissionais, decorrentes de delito ou dívidas de alimentos.

Embora haja pontos em comum entre todos os superendividados, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas, empresários ou não, consumidores ou profissionais, o certo é que dentro deste gênero é possível e necessário agrupar realidades fáticas, sociais e econômicas, de modo a fornecer a cada grupo os mecanismos necessários para a solução do superendividamento[16].

No caso de uma sociedade empresária, por exemplo, ao agrupar essas pessoas, é possível perceber que o principal interesse em salvá-las da insolvência consiste (i) na manutenção dos empregos gerados pela sociedade, bem como (ii) na manutenção da fonte geradora de riqueza para fins de pagamento dos credores [17]. Com isso em mente, o legislador deu instrumentos que entendeu razoáveis às sociedades empresárias para solucionar a situação de crise, conforme consta na Lei nº 11.101/05.

Quando se pensa em superendividamento de pessoa física por dívidas de consumo, logo se pode imaginar um problema que atinge todas as classes sociais, desde a adolescência até o final da vida. Generalizando, não são dívidas muito altas quando comparadas a dívidas profissionais ou fiscais, sendo que, para tais dívidas de consumo gerarem situação de insolvência, a pessoa física normalmente não possui uma renda familiar muito elevada. Aliás, quanto menor a renda familiar, menor o montante de dinheiro disponível para o pagamento do endividamento, já que praticamente todo o rendimento familiar é destinado à manutenção do chamado “mínimo existencial“.

Para esses casos, o legislador pode e deve criar uma legislação que considere tanto a prevenção quanto a recuperação do superendividado. Por se tratar de valores baixos, o consumidor somente procurará uma solução se esta for célere, desburocratizada e barata. Conforme será melhor abordado posteriormente, para uma legislação adequada a essa realidade fática e social, será necessário criar um ambiente em que sejam presumidas verdadeiras as declarações do consumidor, permitindo a imposição de um plano de pagamento pelo Judiciário, mesmo se não for alcançada a composição amigável com os credores.

Os mecanismos aqui sugeridos para recuperar uma pessoa física superendividada não se mostram adequados para outras realidades, tais como os débitos alimentares, fiscais ou oriundos de relações profissionais ou decorrentes de delitos. No caso das dívidas profissionais, muitas vezes estas possuem valores elevados, além de haver uma relação mais equilibrada entre as partes. Nesses casos, o ambiente para a solução do superendividamento necessita ser mais equânime, dando maior segurança aos direitos dos credores, sob pena de majoração dos juros ou restrição de crédito. Não será necessário dar instrumentos tão poderosos ao superendividado por dívidas profissionais, tal como se deve dar ao superendividado por dívida de consumo.

Entretanto, ao invés de afastar por completo a dívida oriunda de relações profissionais, melhor ainda seria que o PL nº 283/2012 acolhesse tais dívidas, mas desde que limitadas a um determinado valor, condizente com o valor médio do superendividado consumidor, tendo em vista que o grande empecilho, no caso da dívida profissional, é justamente o valor normalmente elevado.

Também pode ser alegado que o devedor por relações profissionais não sofreu impacto da forte carga de marketing tal como sofre o consumidor. Ou seja, o consumidor superendividado é resultado da uma sociedade viciada no consumo de bens superficiais, sendo justo que haja uma solução para o seu superendividamento, cujos custos serão repartidos com a sociedade.

Contudo, isso não parece ser motivo suficiente para negar auxílio aos superendividados por relações profissionais, desde que o valor do superendividamento seja similar ao valor do superendividamento médio do consumidor. Até porque, dentro do campo da moral social, não há por que não prestigiar o empreendedor brasileiro, cujas dificuldades para prosperar são inúmeras, dados os empecilhos burocráticos, fiscais e infraestruturais, para citar os mais relevantes. O que deve ser evitado é trazer os grandes devedores para a legislação do superendividamento do consumidor.

Importa ainda ressaltar que a opção de restringir o regramento aqui analisado somente às dívidas de consumo não significa que as demais dívidas (fiscais, profissionais, alimentares ou decorrentes de delito) não serão contabilizadas para verificar se determinado sujeito está ou não superendividado. Em outros termos, todas as dívidas são contabilizadas para verificar se o consumidor está superendividado, mas o plano de pagamento, no qual poderá haver previsão de parcelamento e deságio, por exemplo, será restrito às dívidas de consumo, não surtindo efeito em relação às dívidas de natureza diversa[18].

A terceira problemática diz respeito à exclusão do superendividado de má-fé, ou seja, daquele que assumiu dívidas tendo plena ciência de que não as conseguiria pagar, sendo classificado pela doutrina como superendividado ativo consciente, conforme será pormenorizadamente analisado no capítulo seguinte. A doutrina tende a afastar do auxílio legal o superendividado ativo consciente, dada a sua má-fé[19], já tendo até o Superior Tribunal de Justiça (STJ) se manifestado neste sentido[20].

Embora essa seja a melhor solução, parece ser quase impossível analisar no caso concreto se o consumidor, no íntimo do seu pensamento, teve ou não o discernimento de que se poderia pagar a dívida contraída. Além disso, conforme será analisado posteriormente, o auxílio ao consumidor superendividado necessita ser um procedimento barato, célere e desburocratizado. Não se pode esquecer que a grande incidência desse auxílio será sobre situações fáticas em que o débito corresponda a valores baixos, embora insuperáveis para aquele consumidor.

Isso significa que não será razoável imputar ao consumidor a responsabilidade de provar a sua boa-fé, o que, aliás, parece ser uma prova muitas vezes impossível de se produzir, sendo tampouco razoável a realização de uma perícia, dados os custos para tanto, o que inviabilizaria por completo o objetivo da eventual legislação acerca do tema. Certamente este ônus de provar a má-fé do consumidor deverá recair sobre os credores, que somente conseguirão comprovar a má-fé nos casos limites, ou seja, nos casos em que a má-fé for absolutamente evidente.

Já a quarta questão problemática traz para discussão a necessidade ou não de fixação na legislação de um valor ou percentual determinado para ser o mínimo existencial do indivíduo. Não há uma corrente relevante que entenda pela fixação de um valor mínimo existencial. Por outro lado, segundo o entendimento majoritário, deve ser preservado um percentual mínimo sobre a renda do indivíduo.

Provavelmente por conta da legislação do crédito consignado, que permite somente a retenção de 30{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} do salário para pagamento do empréstimo, muito se repete na doutrina que o mínimo existencial corresponda a 70{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} do rendimento do superendividado [21]. Realmente, esse percentual está de acordo com o levantamento apresentado pelo Serasa, em audiência pública perante o Senado Federal, acerca do Projeto de Lei nº 283/2012, no sentido de que uma família brasileira gasta, em média, 68{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} do rendimento familiar para a sua manutenção [22].

Dentro desse percentual (68{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}), estão os gastos ligados à alimentação (30{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}), gás, luz e água (13{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}), moradia/aluguel (10{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}), transporte (8{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}) e vestuário (6{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}). O restante da renda seria gasto com produtos e serviços não indispensáveis, sendo eles os gastos referentes à telefonia (6{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}), pagamento de empréstimos (6{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}), lazer e cultura (5{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}), educação (2{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}) e outros (13{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}). Aliás, não é outro o percentual adotado no PL nº 283/2012, ao afirmar no § 1º do art. 104-A que “entende-se por superendividamento o comprometimento de mais trinta por cento da renda líquida mensal do consumidor com o pagamento do conjunto de suas dívidas não profissionais, exigíveis e vincendas (…)“.

Entretanto, parece não ser essa a melhor opção. Isso porque o mínimo existencial dependerá muito da situação específica de cada superendividado e de sua família. Um pouco mais da metade das famílias brasileiras recebe até dois salários mínimos, sendo que mais de 9{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} das famílias brasileiras não recebem ao menos um salário mínimo[23]. Mas todos são consumidores. E é preciso muito pouco para que um chefe de família se veja superendividado. Com uma família para sustentar e muito pouca renda, não são incomuns casos em que a integralidade da renda familiar seja destinada à manutenção do mínimo existencial. Aliás, não é incomum que ainda assim falte dinheiro para a manutenção do mínimo existencial. Claudia Lima Marques, ao analisar uma pesquisa do IBGE, informa que, no ano de 2003, 50,88{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} dos orçamentos familiares eram gastos só em consumo básico[24].

Caso o PL nº 283/2012 seja aprovado tal como está, não há dúvidas de que o Poder Judiciário, com o tempo, se encarregará de ajustar a legislação à realidade socioeconômica de cada família. Melhor seria que desde já o PL nº 283/2012 atribuísse ao Judiciário a incumbência de estabelecer o valor mínimo necessário para a manutenção de determinada família.

4 Classificação      

Além de delimitar o conceito, a doutrina divide e classifica grupos de superendividados por semelhança entre os motivos que levaram ao superendividamento. O superendividado passivo é aquele cujo superendividamento se deu por questões alheias ao seu controle, como, por exemplo, um acidente, a perda do emprego, um divórcio ou uma doença.

Isso significa que esse consumidor foi prudente ao se endividar, tendo assumido uma dívida dentro da sua possibilidade de pagamento. Mas, como boa parte da sociedade brasileira, esse consumidor hipotético possui um pequeno valor além do necessário para manter o seu mínimo essencial. Com isso, ocorrendo algum evento alheio à sua vontade, conforme acima exemplificado, ele se vê impossibilitado de pagar o seu débito de forma global e estrutural, tornando-se superendividado. Após realizações de alguns projetos pilotos, foi constatado que aproximadamente 70{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} dos superendividados são passivos, sendo que desse total, um terço decorre da perda de empregos por parte do superendividado [25].

Já o superendividado ativo é aquele cujo superendividamento se deu por falta de controle pelo consumidor, sendo esse grupo subdividido entre superendividado ativo consciente e inconsciente. Denomina-se superendividado ativo inconsciente o consumidor que foi incapaz de administrar o seu orçamento, tendo superestimado a sua capacidade de pagamento das suas dívidas. A esse respeito, vale lembrar que muitas vezes o endividamento de consumo não é decorrente de um único negócio jurídico, o que facilitaria a autoanálise quanto à capacidade de pagamento, mas, sim, de diversas contratações de crédito, dispersas no tempo, relativas a valores pequenos, os quais, somados em dado momento, ultrapassam a capacidade de pagamento do consumidor.

Já o superendividado ativo consciente seria aquele consumidor que, de má-fé, contraiu dívida acima do valor que poderia pagar. Trata-se do consumidor que estava ciente que não poderia arcar com as parcelas do financiamento ou empréstimos, mas ainda assim se endividou, de modo a obter bens materiais que não poderia consumir com a sua renda. Conforme previamente analisado, a doutrina tende a afastar do auxílio legal o superendividado ativo consciente, dada a sua má-fé, já tendo o STJ se manifestado nesse sentido.

5 Prevenção

A doutrina elenca diversos standards de conduta para quem concede o crédito ou financia um bem de consumo, a fim de prevenir que o consumidor se quede superendividado, os quais serão abaixo analisados e agrupados na seguinte ordem: (i) informações obrigatórias; (ii) publicidade; (iii) tempo de reflexão ou arrependimento; e (iv) análise de capacidade de pagamento do cliente.

No que diz respeito às informações obrigatórias, que deverão constar no contrato de concessão de crédito, já há no Código de Defesa do Consumidor (CDC) regulação acerca do tema, mais especificamente o art. 52 [26], prevendo algumas informações básicas no empréstimo ou financiamento de bens de consumo. Já o art. 54-B do PL nº 283/2012 [27] prevê mais detalhadamente quais são as informações básicas, além de estabelecer como devem ser prestadas.

Embora as informações obrigatórias, sobretudo como devam ser apresentadas ao consumidor, sejam absolutamente relevantes, não parece ser esse um ponto de divergência na doutrina ou legislação internacional acerca do tema. Tampouco parece haver resistência por parte dos fornecedores de crédito ao consumidor acerca dessa questão, o que não significa que não haja necessidade de fiscalização.

No que concerne ao regramento da publicidade, mais uma vez, o Código de Defesa do Consumidor possui um artigo (art. 37 [28]), embora não específico, sobre concessão de crédito ao consumidor, aplicável a qualquer fornecimento de produto, dentre eles o crédito ao consumidor. O art. 54-B do PL nº 283/2012, nos seus §§ 3º, 4º e 5º [29], além de prever questões específicas que já estavam englobadas em condutas mais abrangentes do art. 37, inova ao prever a proibição de determinadas condutas, hoje lícitas dada a inexistência de previsão semelhante no direito positivado.

No § 4º do art. 54-B há previsão de proibição das seguintes condutas: (i) formular preço para pagamento a prazo idêntico ao pagamento à vista; (ii) fazer referência a crédito “sem juros“, “gratuito“, “sem acréscimo“, com “taxa zero” ou expressão semelhante; (iii) indicar que a operação de crédito poderá ser concluída sem consulta a serviços de proteção de crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor; (iv) ocultar por qualquer forma os ônus e riscos da contração do crédito, dificultar a sua compreensão ou estimular o endividamento do consumidor.

Outra medida preventiva, muitas vezes analisada separadamente pela doutrina, diz respeito ao tempo de reflexão ou arrependimento, que possuem a mesma finalidade, justamente a de remediar a situação do consumidor que contratou o crédito por impulso.

O tempo de reflexão, para os fins de concessão de crédito, consiste na obrigatoriedade de manutenção das condições do crédito ofertado por um ou alguns dias. Ou seja, a oferta de crédito ao consumidor, no valor de R$ 1.000,00, para pagamento em cinco parcelas iguais, com taxa de juros de 1,3{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} ao mês, deverá valer por dois dias, por exemplo. Dentro deste período, o consumidor poderá levar a oferta para casa e tomar a sua decisão juntamente à sua família.

Já pelo tempo de arrependimento, o consumidor poderá, dentro de período fixado na legislação, desfazer unilateralmente o negócio jurídico, mediante a devolução do valor mutuado, sem juros, encargos ou multa. No PL nº 283/2012, há previsão dos dois mecanismos de prevenção, o que é um exagero. No art. 54-B, inciso III, há a seguinte determinação: “o prazo de validade da oferta, que deve ser no mínimo de dois dias“.

Quanto ao direito de arrependimento, o art. 54-D, no seu § 3º, determina que “o consumidor poderá, em sete dias, desistir da contratação de crédito consignado de que trata o caput deste artigo, a contar da data da celebração ou do recebimento de cópia do contrato, sem necessidade de indicar o motivo“, sendo que para exercer este direito, conforme determinado no § 4º do mesmo dispositivo, deverá o consumidor “devolver ao fornecedor o valor que lhe foi entregue, acrescido dos eventuais juros incidentes até a data da efetiva devolução, no prazo de sete dias após ter notificado o fornecedor do arrependimento, caso o consumidor tenha sido informado, previamente, sobre a forma de devolução dos valores“.

Importa ressaltar que, independentemente de inovação legislativa, o art. 49 do CDC já prevê a possibilidade do direito de arrependimento quando da aquisição de bens ou serviços fora do estabelecimento comercial do fornecedor. Para os fins de contratação de crédito, entende-se que o consumidor poderá exercer esse direito, devolvendo a quantia mutuada ou financiada, quando a contratação não ocorrer dentro do estabelecimento comercial do fornecedor [30]. É muito importante ressaltar que basta ao consumidor devolver integralmente o valor mutuado ao fornecedor, dentro do prazo legal, não havendo obrigação no aludido dispositivo de pagamento de juros, encargos ou multa, para exercício deste direito.

Não é difícil imaginar algumas situações em que o art. 49 do CDC seria aplicável, como na contratação de crédito pelo site do fornecedor de crédito, dentre outras tantas. Mas uma situação em especial é muito corriqueira e merece atenção: muitos vendedores oferecem em seus estabelecimentos financiamento a seus produtos, sendo que esse financiamento é fornecido por um terceiro, muitas vezes uma instituição financeira ou pessoa equiparada.

Nesses casos, o fornecimento de crédito é, por si só, um produto, ou seja, o consumidor adquiriu um eletrodoméstico, por exemplo, e paralelamente adquiriu um crédito, sendo cada aquisição com um fornecedor diferente [31]. Quanto ao crédito, este não foi adquirido no estabelecimento do fornecedor do crédito, muitas vezes um banco. Com isso, poderá ele se arrepender do financiamento, nos termos do art. 49 do CDC, o que não significa que ele poderá se arrepender da compra do eletrodoméstico, já que este produto foi adquirido na loja. Portanto, este consumidor arrependido da contratação do financiamento poderá tão somente desistir do financiamento, mas, para tanto, terá que pagar integralmente e à vista o valor do eletrodoméstico ao fornecedor de crédito.

5.1 Análise de Capacidade de Pagamento do Cliente      

De todas as medidas preventivas, certamente a mais relevante diz respeito ao art. 54-C do PL nº 283/2012, merecendo análise mais cuidadosa e separada das demais medidas preventivas. Isso porque o aludido dispositivo inova ao imputar diversas condutas ao fornecedor de crédito, atinentes a uma obrigação de orientação e análise da capacidade de pagamento do cliente, bem como os ônus do descumprimento dessas condutas [32].

Antes mesmo de analisar as condutas previstas no aludido PL, vale desde já esclarecer que, conforme previsto no dispositivo, caberá ao fornecedor provar o cumprimento desses deveres de conduta. Caso ele não consiga provar o cumprimento, a consequência será a inexigibilidade ou redução dos juros, encargos ou qualquer acréscimo ao principal, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e da indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor.

Quanto ao primeiro inciso do PL nº 283/2012, mais especificamente à regra de esclarecer, aconselhar e advertir o consumidor sobre a natureza do crédito, assim como as consequências específicas e genéricas do inadimplemento, a regra será bem-vinda desde que o seu cumprimento seja satisfeito mediante informações pormenorizadas por escrito no próprio contrato ou em folheto informativo entregue ao consumidor.

Por outro lado, quais seriam estas informações de aconselhamento além das informações obrigatórias (arts. 52 do CDC e 54-B do PL nº 283/2012)? Talvez a solução seria a elaboração de folhetos informativos conjuntamente entre fornecedores e associações de proteção aos consumidores. O objetivo da norma parece ser educar financeiramente o consumidor, o que, a princípio, é obrigação do Estado.

Já no que diz respeito à hipótese prevista no inciso II, parece pouco realista imputar tal regra ao fornecedor de crédito. Neste inciso do PL nº 283/2012 está previsto que caberá ao fornecedor “avaliar de forma responsável e leal as condições do consumidor de pagar a dívida contratada, mediante solicitação da documentação necessária e das informações disponíveis em bancos de dados de proteção ao crédito (…)“.

Parece ser impossível comprovar documentalmente o cumprimento dessa conduta. Isso significa que o fornecedor de crédito necessitará produzir depoimento pessoal e prova testemunhal. Mas, ainda assim, raramente essas provas serão conclusivas, pois dificilmente haverá um terceiro imparcial quando da concessão do crédito para testemunhar acerca do cumprimento das obrigações. Além disso, a prova testemunhal está limitada aos casos em que o débito não exceder o décuplo do maior salário mínimo (art. 401 do CPC), muito embora existam exceções, acerca das quais os fornecedores provavelmente poderão se valer (art. 402 do CPC), mas com uma boa dose de esforço adicional, aumentando ainda mais os custos da operação.

Na verdade, o único capaz de avaliar se poderá ou não realizar o pagamento da dívida é o próprio consumidor. Inverter essa responsabilidade é uma utopia jurídica. A melhor forma de proteger o consumidor, nesses casos, é dar a ele todas as informações necessárias, além de proibir propagandas agressivas.

Além disso, mesmo se comprovado que o fornecedor tomou diversas medidas para avaliar a capacidade de cumprimento da obrigação pelo devedor, ainda assim há de ser questionado se a obrigação é de meio ou de resultado. Pelo menos deveria ser entendido que a obrigação em questão seria de meio. Isso porque, caso a obrigação fosse de resultado, consequentemente o fornecedor de crédito teria descumprido tal obrigação sempre que o devedor ficasse inadimplente.

 Quanto ao último inciso do referido artigo do PL nº 283/2012, determinando que seja informada a identidade do agente financiador, bem como que seja entregue ao consumidor, ao garante e a outros coobrigados, uma cópia do contrato de crédito, essa regra poderá ser facilmente cumprida pelos fornecedores, sendo bem-vinda a inovação legislativa nesse sentido. Entretanto, enquanto não houver legislação positivada sobre o tema, é necessário analisar se esse dever de orientação está ou não previsto, expressa ou intrinsecamente, em algum dispositivo legal vigente [33]. A necessidade dessa análise ganha força quando se sabe que já existem decisões mitigando o direito dos credores com base no descumprimento dessa obrigação, ainda que não positivada.

A primeira corrente de pensamento entende que a obrigação de orientação estaria contida no dever de informar [34]. Para esse entendimento, caso o fornecedor de crédito não tivesse orientado o seu cliente, ele teria descumprido o dever de informar, hoje previsto expressamente no art. 52 do CDC. Porém, não parece ser esse o entendimento mais correto. Conforme amplamente reconhecido pela doutrina consumerista, o dever de informar estará atendido sempre que o fornecedor de crédito fornecer todas as informações necessárias, de forma clara, ao consumidor. Mas cabe única e exclusivamente ao consumidor ponderar acerca dessas informações e tomar a decisão que melhor lhe couber.

Outro possível entendimento seria o abuso de fornecimento do crédito, nos termos do art. 187 do CC [35]. Embora essa pareça ser a teoria mais plausível, também não pode ser acolhida. Isso porque o fornecedor de crédito é a pessoa mais interessada no pagamento. Ele fornece o crédito justamente para recebê-lo em momento posterior acrescido de juros e demais encargos. Definitivamente não é do seu interesse que o consumidor se encontre em situação de superendividamento, pois, nesses casos, ele nada receberá ou com um grande deságio.

No entanto, há quem sustente que o fornecedor de crédito teria interesse no inadimplemento, porque assim poderia cobrar os juros de mora e demais encargos atrelados à mora. Embora o superendividamento não seja do interesse do fornecedor de crédito, pois nesses casos o credor nada receberá, é possível imaginar um credor que coloque seus consumidores em situação de risco, propositadamente, objetivando o mero inadimplemento. Essa conduta, entretanto, acabaria por sujeitar alguns de seus clientes ao superendividamento. Nesses casos, caso fosse comprovada a conduta reiterada e generalizada do fornecedor de crédito nesse sentido, poderia ser reconhecido como ato ilícito o fornecimento de crédito.

Há um terceiro possível entendimento, no sentido de que o fornecedor de crédito estaria violando normas do Conselho Monetário Nacional (CMN), mais especificamente a Resolução CMN nº 1.559, inciso IX, ao oferecer crédito sem atender aos princípios da seletividade, garantia, liquidez e diversificação de riscos. Mais uma vez o fornecedor de crédito tem interesse tão somente no pagamento do crédito, acrescido de juros e encargos. Mas, nesse caso, mais relevante que este argumento, importa esclarecer que a aludida resolução não diz respeito à relação entre fornecedor de crédito e o seu cliente, mas tão somente à saúde e organização do mercado financeiro.

Aliás, a questão foi bem analisada pelo Superior Tribunal Federal, quando do julgamento da ADIn 2.591-1, oportunidade em que constou na ementa que “o conselho monetário é titular de capacidade normativa – a chamada capacidade normativa de conjuntura – no exercício da qual lhe incumbe regular, além da constituição e fiscalização, o funcionamento das instituições financeiras, isto é, o desempenho de suas atividades no plano do sistema financeiro“. Nessa perspectiva, a aludida resolução não pode ser utilizada para tentar regular a relação entre instituição financeira e cliente, pois é destinada unicamente à manutenção do correto funcionamento do sistema financeiro.

Por fim, pode-se cogitar ainda da aplicação, por analogia, das normas existentes no mercado de capitais relativas ao dever de verificação da adequação dos produtos, serviços e operações ao perfil do cliente, comumente denominado suitability. A esse respeito, a Comissão de Valores de Mobiliários (CVM) editou a Instrução nº 539/2013 (ICVM nº 539/2013), que entrou em vigor no dia 5 de janeiro de 2015, detalhando de forma global o suitability.

Embora possam parecer semelhantes os temas, já que ambos dizem respeito às obrigações de verificação de adequação do produto ao cliente, as normas de suitability são destinadas aos agentes do sistema de distribuição e consultores de valores mobiliários, os quais são responsáveis somente pela distribuição dos valores mobiliários, mas não são os seus emissores. Caso o valor mobiliário não seja adequado ao cliente, o prejuízo seria ou do próprio cliente, caso o pagamento do valor mobiliário já tivesse sido realizado, ou do emissor do título, nas hipóteses de operações alavancadas com pagamento postergado no tempo.

Nessa perspectiva, resta evidente uma distinção entre o dever de orientação que se pretende imputar ao fornecedor de crédito, em relação ao suitability imputado aos agentes de distribuição de valores mobiliários: caso haja superendividamento do consumidor de crédito, o próprio fornecedor será o maior prejudicado, simplesmente porque não terá condições de reaver o seu crédito. Essa circunstância inverte parte da lógica do suitability, afastando um suposto abuso do direito ao fornecer crédito sem análise prévia do perfil do cliente, já que o próprio fornecedor de crédito será prejudicado nessa hipótese, conforme exposto anteriormente.

Além disso, a própria ICVM nº 539/2013, no seu art. 6º [36], prevê a hipótese de o cliente optar por adquirir determinado valor mobiliário, mesmo após ser avisado de que seu perfil não seria compatível com tal produto. Para esses casos, basta que o distribuidor alerte o cliente acerca dessa circunstância, bem como que obtenha declaração expressa do cliente de que está ciente dos riscos assumidos. A mesma solução poderia ser adotada em eventual legislação quanto ao fornecimento de crédito ao consumidor. Além de todas as medidas preventivas e informativas, caso ainda assim o consumidor pretenda obter o crédito, a legislação poderia prever mecanismo semelhante, limitando a responsabilidade do fornecedor, desde que tomadas algumas medidas, tal como a declaração de assunção de risco pelo consumidor.

Diante desse cenário, a despeito dos argumentos acima apresentados, não é possível, pelas normas vigentes, imputar ao fornecedor de crédito a obrigação de orientação e aconselhamento ao consumidor, sobretudo sob pena de redução ou extinção dos juros, encargos ou da própria dívida.

A legislação positivada mais próxima desse tema consiste no art. 46 do CDC, sendo que o art. 54-C do PL nº 283/2012 faz referência expressa a esse artigo. Contudo, o art. 46 do CDC imputa ao fornecedor de crédito somente a obrigação de dar oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, bem como que este conteúdo não esteja escrito de forma a dificultar a compreensão do consumidor. Mais uma vez a obrigação aqui exposta diz respeito ao fornecimento adequado de informações, para que o próprio consumidor possa tomar a sua decisão. Caso o consumidor faça uma escolha equivocada, como, por exemplo, contratar crédito que não poderá pagar, muito embora tivesse ao seu alcance todas as informações acerca da contratação desse crédito, não poderá depois querer imputar a responsabilidade de tal escolha ao fornecedor.

6 Recuperação do Superendividado

A despeito de todas as medidas acima analisadas, objetivando evitar o superendividamento, não há qualquer esperança de que o superendividamento deixe de existir. Uma vez superendividado, cabe ao Direito dar uma solução a essa realidade, fazendo-se necessária a inovação legislativa. A despeito do regramento dado ao tema pelo PL nº 283/2012, a sua mera existência é muito bem-vinda, simplesmente por colocar em pauta a necessidade de debate e regulação pelo Direito dessa realidade. Embora os traços gerais do PL nº 283/2012 sejam corretos, alguns pontos cruciais não parecem adequados à realidade brasileira.

Basicamente, a recuperação do superendividado consiste na elaboração de um plano de pagamento de todas as dívidas decorrentes de consumo, vencidas e vincendas, provavelmente envolvendo alongamento no prazo de pagamento e deságio, a fim de que o superendividado possa quitar essa dívida.

As dívidas de consumo geralmente não são muito elevadas, mas ainda assim podem causar o superendividamento de uma família de baixa renda. Neste momento, sem uma legislação a esse respeito, o provedor de uma família humilde nada pode fazer quando está superendividado. Provavelmente, seu nome será incluído nos cadastros de restrição de crédito. Caso o valor não seja tão baixo, o credor ajuizará uma ação de cobrança ou execução. Em tese, ele poderia pedir sua insolvência civil, conforme prevista no CPC. No entanto, resta evidente que a insolvência civil, tal como prevista no CPC, não atende minimamente aos interesses deste cidadão. São diversos os motivos, mas deve ser destacado que o processo de insolvência é longo e complexo. Um homem médio nunca buscaria esta solução [37][38].

A solução para a recuperação do consumidor superendividado deve necessariamente ser de baixo custo, desburocratizada e célere. Os valores geralmente envolvidos simplesmente não justificam um ambiente diverso do aqui sugerido. Toda a legislação deve ser pensada sob este prisma, caso contrário, ou estará fadada ao insucesso, ou gerará um alto custo para as partes envolvidas, leia-se, devedor, credores e Estado.

Nessa perspectiva, inicialmente, há de ser decidido se o plano de pagamento deve ou não ter um caráter pedagógico. Caso a resposta seja negativa, basta a liquidação do patrimônio disponível do devedor, resguardando os bens impenhoráveis, a fim de que com o produto da venda seja quitada parte da dívida. Após um determinado período, a ser escolhido pelo legislador, dada a inexistência de bens, o restante da dívida será quitado. Este é o modelo fresh start, adotado nos Estados Unidos da América, com inúmeras peculiaridades além da demasiadamente simples exemplificação aqui apresentada.

Por outro lado, o modelo mais adequado parece ser aquele em que é elaborado um plano de pagamento, alongando a dívida por determinado período, podendo ser concedido desconto. Nesse modelo também pode haver utilização do patrimônio disponível para pagamento dos credores. Não há dúvidas de que este modelo além de preservar, dentro do possível, o direito do credor, também acaba por criar um elemento pedagógico, tendo em vista que o consumidor terá que enfrentar as consequências do seu superendividamento, mas dentro das suas possibilidades econômicas[39].

Já no que toca à possibilidade de conciliação, praticamente todas as legislações internacionais sobre superendividamento preveem um momento para a conciliação e composição amigável. Se as partes chegam a um consenso, devem assinar um contrato atestado por duas testemunhas, com as novas condições de pagamento, com força de título executivo extrajudicial, não sendo necessária sequer a homologação judicial. Quando o acordo não é alcançado, a solução é encaminhar a disputa ao Poder Judiciário, que terá a autoridade de homologar forçadamente o plano de pagamento, mesmo que sem aceitação dos credores.

Na recuperação judicial de uma sociedade empresária, tal como prevista na Lei nº 11.101/05, cabe aos credores decidir sobre o futuro da sociedade em recuperação judicial. Caso não aprovem o plano, é decretada a falência. Isso não é aceitável quando o endividado é uma pessoa física. A necessidade de aliviar o sofrimento da pessoa física superendividada é premente e humana, não podendo ser delegado aos credores o futuro desse sujeito [40].

Nessa perspectiva, não se alcançando a composição amigável, deverá o Judiciário analisar o plano apresentado e fazer as alterações que entender necessárias. Quando estiver satisfeito com o plano de pagamento, deverá homologá-lo, ainda que sem aprovação de nenhum dos credores. Os credores poderão recorrer dessa decisão sempre que não forem atendidos os pressupostos dos planos de pagamentos: (i) utilização dos bens penhoráveis para pagamento, e (ii) utilização do rendimento disponível, ou seja, aquele além do utilizado para manutenção do mínimo existencial.

O PL nº 283/2012 não prevê solução expressa caso não seja alcançada a composição amigável, o que certamente necessita ser corrigido. Há somente previsão de realização de audiência em que todos os credores devem estar presentes, sendo que “no caso de conciliação, com qualquer credor, a sentença judicial que homologar o acordo descreverá o plano de pagamento da dívida, tendo eficácia de título executivo e força de coisa julgada“.

Além disso, deve-se indagar se a recuperação do superendividado deve ser processada em ambiente judicial ou extrajudicial. O PL nº 283/2012 prevê que a recuperação será toda processada em ambiente judicial. Segundo o art. 104-A, o juiz poderá instaurar processo de repactuação das dívidas sempre que tal medida for requerida pelo devedor. Na verdade, quem instaura o processo é a parte, não o juiz de direito. O correto seria dizer que caberá ao juiz deferir o processamento do processo de repactuação de dívidas.

Entretanto, melhor seria que o processo tramitasse em ambiente extrajudicial, devendo ser encaminhado ao Poder Judiciário somente caso não fosse possível a composição amigável. Ou que fosse instaurado perante o Poder Judiciário, mas que sua fase inicial fosse processada extrajudicialmente, tal como ocorre na Lei nº 11.101/05, mais especificamente, quando da análise de divergências e habilitações pelo Administrador Judicial.

Provavelmente, em muitos dos casos, talvez até mesmo na maioria, o Poder Judiciário terá que intervir, pois não será alcançada composição amigável em ambiente extrajudicial. Ainda assim, será mais vantajoso o processamento inicial em ambiente extrajudicial. Isso porque o processo chegará ao juiz de direito já com todas as informações necessárias para homologação judicial do plano, ou, se julgar necessário, poderá o juiz solicitar alguma diligência adicional.

Em outras palavras, as medidas iniciais, como o levantamento dos bens do devedor, o arrolamento das dívidas, a negociação e, por fim, o plano de pagamento serão produzidas na fase extrajudicial. Caso os credores optem pela desaprovação do plano, o processo já com todas as informações será remetido ao ambiente judicial para homologação forçada do plano ou realização de diligências adicionais.

Já no que concerne à necessidade de comparecimento pessoal dos credores na fase de conciliação, o PL nº 283/2012, no art. 104-A, § 2º, prevê que todos os credores compareçam pessoalmente à audiência de conciliação, sob pena de “suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos da mora“.

A solução é altamente custosa se comparado aos valores que normalmente serão objeto dos processos de renegociação das dívidas de superendividamento. Alguns credores terão condições financeiras de contratar prepostos locais para os representarem nas audiências. Esses prepostos formalmente estarão munidos de poderes para transigir, mas não terão liberdade para negociar. Nada de diferente do que ocorre hoje nos juizados especiais cíveis, quando os grandes litigantes enviam prepostos para as audiências de conciliação, com propostas padrões previamente aprovadas pela empresa de forma genérica, sem analisar o caso concreto. Seja como for, para a pequena e grande empresa, sobretudo para a grande empresa de âmbito nacional, esses novos custos serão repassados ao consumidor, mediante majoração do preço.

Portanto, de modo semelhante ao modelo francês, melhor seria dispensar o comparecimento pessoal, cabendo ao conciliador entrar em contato com os credores, sempre por um canal oficial e passível de registro, tal como carta com aviso de recebimento, para fins de registro e contagem de prazo para resposta, mas sem dispensar um contato direto por telefone ou correio eletrônico. Nessa sugestão, caso o credor não responda dentro de determinado prazo, sofrerá as consequências da sua desídia e falta de interesse na composição amigável. A melhor pena para tanto não é a suspensão da exigibilidade da dívida, tal como previsto no PL nº 283/2012, mas tão somente a aceitação tácita do plano de pagamento proposto.

Além disso, o credor poderia responder ao conciliador informando que não está de acordo com o plano de pagamento ou mesmo apresentar um plano alternativo. Quanto mais fundamentada for a negativa do credor, mais subsídios terá o juiz quando da análise do processo, para fins de aprovação do pedido de homologação forçada. A depender da fundamentação do credor, o juiz poderia se convencer de que o plano proposto realmente não se adéqua ao caso concreto e, com isso, determinaria a elaboração de um novo plano.

No que diz respeito ao prazo de duração do plano de pagamento, o PL nº 283/2012 prevê que ele deverá durar no máximo cinco anos. O Banco Mundial, ao analisar este tema, sugere que o prazo máximo de um plano de pagamento seja de três anos[41]. Há um motivo para a existência desses limites. O superendividado terá que fazer um grande esforço para pagar a sua dívida. Boa parte, senão todo o seu rendimento disponível, será destinada ao pagamento do plano. Por esse período, o superendividado não terá condições de adquirir produtos e serviços além do essencial. O Banco Mundial analisou em diversos países o índice de cumprimento de planos de pagamento de pessoas físicas superendividadas. Os planos com prazo de pagamento de até três anos possuem uma taxa de cumprimento superior aos planos cujos prazos são superiores.

Nessa perspectiva, é recomendável que o PL nº 283/2012 determine que o prazo máximo do plano seja de três anos. Se não for tempo suficiente para pagamento da dívida, levando em consideração a renda disponível além da parcela destinada à manutenção do mínimo existencial, deverá então ser concedido um deságio na dívida quando da elaboração do plano. Em determinados casos, o deságio será maior ou menor, o que dependerá muito do valor da dívida, dos bens disponíveis para venda, dos custos de manutenção do superendividado e da sua renda disponível. Tentar criar planos de cinco, oito, ou 10 anos para evitar conceder deságios no crédito é a certeza de que tais planos serão descumpridos. Nenhuma pessoa física consegue viver somente com o mínimo por tanto tempo.

Além disso, importa analisar que a situação financeira do superendividado está sujeita a alterações ao longo do prazo de cumprimento do plano. Se melhorar, não há grandes problemas. Ele poderia realizar o pagamento antecipado de parcelas do plano ou quitá-lo integralmente. Mas se a situação do superendividado piorar, por questões que fogem ao seu controle, tais como a perda do emprego ou acidente, deverá o plano ser revisto para ser adequado a esta nova realidade.

No PL nº 283/2012, há previsão expressa da possibilidade de repactuação, mas não resta esclarecido se o juiz poderia homologar uma repactuação sem anuência de um, alguns ou todos os credores. Tal como sugerido anteriormente, melhor seria que o PL nº 283/2012 previsse a possibilidade de o juiz homologar forçadamente a alteração do plano, caso entendesse necessário, independentemente de composição amigável das partes. Embora não haja previsão no PL nº 283/2012, não deveria ser aceito pedido de revisão quando a situação financeira do superendividado se agravar por conduta sua, tal como a obtenção de novas dívidas.

Por fim, faz-se necessário analisar os casos de superendividados que não recebem nada além do necessário para manutenção do mínimo existencial. Conforme já exposto, um pouco mais da metade das famílias brasileiras recebe até dois salários mínimos, sendo que mais de 9{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} das famílias brasileiras não recebem ao menos um salário mínimo[42]. Não é preciso muito para que o chefe de uma dessas famílias se veja superendividado. Claudia Lima Marques, ao analisar uma pesquisa do IBGE, informa que, em 2003, 50,88{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} dos orçamentos familiares eram gastos só em consumo básico[43]. Nesses casos, não há muito que fazer além de dar quitação à dívida. Os custos incorridos pelo credor serão repassados ao preço e, consequentemente, à toda a sociedade.

E se o superendividado melhorar a sua situação financeira depois de homologado o plano? Deverá ser revisto o plano? Salvo em casos de ocultação de informações pelo devedor, a resposta deverá ser negativa. O plano de pagamento serve justamente para que o superendividado coloque sua vida em ordem, permitindo com isso que ele se soerga emocional e financeiramente. A obtenção de novas fontes de renda deve ser vista como a concretização do sucesso da recuperação do superendividado mediante a aprovação do plano de pagamento. Caso ele não tivesse obtido o auxílio-legal, jamais conseguiria se soerguer e não obteria novas fontes de renda. Caso seja comprovado que o devedor tenha ocultado informações, como, por exemplo, uma fonte de renda que não divulgou ao Poder Judiciário, poderá então ser ajuizada ação rescisória contra a decisão que homologou o plano de pagamento (art. 485, incisos III, VII e IX, do CPC).

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[1] “O superendividamento pode ser definido como a impossibilidade global do devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluindo as dívidas com o Fisco, oriundas de delito e de alimentos) em um tempo razoável com sua capacidade atual de rendas e patrimônio.” (MARQUES, Claudia Lima. Algumas perguntas e respostas sobre prevenção e tratamento do superendividamento dos consumidores pessoas físicas. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: RT, ano 19, n. 75, p. 009-042, jul./set. 2010)

[2] LUTTWAK, Edward. Turbocapitalismo: perdedores e ganhadores da economia globalizada. São Paulo: Nova Alexandria, 2001.

[3] Ibidem, p. 243.

[4] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

[5] BAUMAN, op. cit.

[6] BAUMAN, ibidem.

[7] BAUMAN, ibidem, p. 96.

[8] FORNASIER, Mateus de Oliveira; ENGELMANN, Wilson. Superendividamento e dignidade: um enfoque hermenêutico do instrumental técnico de exacerbação do hiperconsumismo na sociedade contemporânea à luz do direito do consumidor brasileiro. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: RT, ano 22, n. 88, p. 259-292, jul./ago. 2013.

[9] Edwark Luttwak analisa que a sociedade norte-americana é destituída de relações pessoais. Não que eles não se casem ou não tenham filhos. Mas a relação familiar é fragmentada, restrita à esposa e filhos, enquanto em sociedades humanas normais a família é um grupo muito maior de indivíduos (LUTTWAK, Edward. Op. cit., p. 246).

[10] SCHMIDT NETO, André Perin. Superendividamento do consumidor: conceito, pressupostos e classificação. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: RT, ano 18, n. 71, p. 9-33, jul./set. 2009

[11] SCHMIDT NETO, André Perin. Op. cit.

[12] “Além de ser pessoa física, o superendividado há de ser leigo, ou seja, não profissional da área e estar vinculado ao fornecedor por uma relação de consumo (o que insere na classificação a natureza da dívida), além de possuir boa-fé.” (CHAHIM DA SILVA, Ana Paula. Superendividamento do consumidor e a facilitação do acesso ao crédito. Repertório de Jurisprudência IOB: Civil, Processual, Penal e Comercial, São Paulo, IOB, v.3, n. 05, p. 165-160, 1ª quinz. mar. 2008)

[13] “Art. 54-A. Esta seção tem a finalidade de prevenir o superendividamento da pessoa física, promover o acesso ao crédito responsável e à educação financeira do consumidor, de forma a evitar a sua exclusão social e o comprometimento e seu mínimo existencial, sempre com base nos princípios da boa-fé, da função social do crédito ao consumidor e do respeito à dignidade da pessoa humana.”

[14] Apresentação da ABECS no Senado. Audiência pública 19.02.2013. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=122746&tp=1>. Acesso em: 3 nov. 2014.

[15] “A situação de superendividamento das pessoas físicas se caracteriza pela impossibilidade manifesta para o devedor de boa-fé de honrar o conjunto de suas dívidas não profissionais, exigíveis e vincendas. A impossibilidade manifesta para uma pessoa física de boa-fé de pagar obrigação decorrente de fiança ou de solidariedade na dívida assumida com empresa individual ou com uma sociedade caracteriza igualmente situação de superendividamento.” (Art. L 330-1, Code de la Consommation. Tradução livre)

[16] Neste sentido, sustentando posição semelhante, mas sem expor conclusão definitiva: “A experiência sugere que, como o número de devedores individuais necessitando assistência para a insolvência cresce, a insolvência individual normalmente torna-se um processo rotineiro. Legisladores conseguem muitos objetivos ao escolherem uma estrutura particular para um sistema de insolvência para pessoas físicas. Estes objetivos incluem um tratamento similar para indivíduos em situação similar, a prevenção de fraude e abuso, e a redução de requisitos burocráticos desnecessários” (SOARES, Ardyllis Alves. Conclusões do relatório do banco mundial sobre o tratamento do superendividamento e insolvência da pessoa física – resumo e conclusões finais. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: RT, ano 22, n. 89, p. 435-452, set./out. 2013).

[17] Art. 47 da Lei nº 11.101/05: “A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.

[18] MARTINS DA COSTA, Geraldo de Faria. Superendividamento: a proteção do consumidor de crédito em direito comparado brasileiro e francês. São Paulo: RT, 2002. p. 119.

[19] “Há na doutrina quem proponha que o superendividado ativo inconsciente deverá sempre ser tutelado por ter sido induzido ao consumo desmedido como uma vítima do marketing e da publicidade, enquanto aquele que se endivida conscientemente não deveria, nunca, receber a benesse legal.” (MARTINS DE LIMA, Mikael. O limite para concessão de crédito previsto no projeto de lei sobre o superendividamento. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo: RT, ano 15, n. 57, jul./set. 2012)

[20] Transcrição parcial do voto do Ministro-Relator: “A vingar a tese da recorrente, da prevalência da dignidade da pessoa humana, em face do ‘superendividamento’, estar-se-á institucionalizando calote consentido, ou seja, bastará a pessoa se endividar, deliberadamente, além das suas possibilidades de pagamento, adquirindo bens de consumo de forma desarrazoada e, depois, alegar, pura e simplesmente, aviltada na sua dignidade, suprimindo, então, os descontos dos empréstimos” (STJ, AgRg na MC 16.128/RS, Rel. Min. Fernando Gonçalves, Quarta Turma, j. 04.02.2010, DJe 08.03.2010).

[21] MARQUES, Claudia Lima. Op. cit.

[22] Apresentação da Serasa no Senado. Audiência pública 19.02.2013. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=122748&tp=1>. Acesso em: 13 out. 2014.

[23] Apresentação da Serasa no Senado. Audiência pública 19.02.2013. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=122748&tp=1>. Acesso em: 13 out. 2014.

[24] MARQUES, Claudia Lima. Op. cit.

[25] “Pesquisas recentes têm concluído que o superendividamento passivo causado por mudanças bruscas de rendimento é a espécie mais frequente de superendividamento. Neste sentido afirma Claudia Lima Marques comentando pesquisas elaboradas no Estado do Rio Grande do Sul: ‘(…) mais de 70{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} deles são superendividados passivos, que se endividaram em face de um acidente da vida, desemprego, morte de algum parente, divórcio, doença na família, nascimento de filhos, etc. (…)’. Rafaela Consalter fala em 80{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}, Karen Bertoncello e Clarissa de Lima em 84,5{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} dos casos no Rio Grande do Sul e Rosângela Cavallazzi em 73{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} dos casos no Rio de Janeiro.” (SCHMIDT NETO, André Perin. Op. cit.)

[26] “Art. 52. No fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor deverá, entre outros requisitos, informá-lo prévia e adequadamente sobre: I – preço do produto ou serviço em moeda corrente nacional; II – montante dos juros de mora e da taxa efetiva anual de juros; III – acréscimos legalmente previstos; IV – número e periodicidade das prestações; V – soma total a pagar, com e sem financiamento. § 1º As multas de mora decorrentes do inadimplemento de obrigações no seu termo não poderão ser superiores a dois por cento do valor da prestação. § 2º É assegurado ao consumidor a liquidação antecipada do débito, total ou parcialmente, mediante redução proporcional dos juros e demais acréscimos.”

[27] Art. 54-B do Projeto de Lei nº 283/2012: “Além das informações obrigatórias previstas no art. 52 e na legislação aplicável à matéria, no fornecimento de crédito e na venda a prazo, o fornecedor ou o intermediário deverá informar o consumidor, prévia e adequadamente, na oferta e por meio do contrato, sobre: I – o custo efetivo total e a descrição dos elementos que o compõem; II – a taxa efetiva mensal de juros, a taxa dos juros de mora e o total de encargos, de qualquer natureza, previstos para o atraso no pagamento; III – o montante das prestações e o prazo de validade da oferta, que deve ser no mínimo de dois dias; IV – o nome e o endereço, inclusive o eletrônico, do fornecedor; V – o direito do consumidor à liquidação antecipada do débito. § 1º As informações referidas no art. 52 e no caput deste artigo devem constar em um quadro, de forma resumida, no início do instrumento contratual. § 2º O custo efetivo total da operação de crédito ao consumidor, para efeitos deste Código, sem prejuízo do cálculo padronizado pela autoridade reguladora do sistema financeiro, consistirá em taxa percentual anual e compreenderá todos os valores cobrados do consumidor”.

[28] “Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 1º É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços. § 2º É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeite valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança. § 3º Para os efeitos deste código, a publicidade é enganosa por omissão quando deixar de informar sobre dado essencial do produto ou serviço.”

[29] “Art. 54-B (…) § 3º Sem prejuízo do disposto no art. 37, a publicidade de crédito ao consumidor e de vendas a prazo deve indicar, no mínimo, o custo efetivo total, o agente financiador e a soma total a pagar, com e sem financiamento. § 4º É vedado, expressa ou implicitamente, na oferta de crédito ao consumidor, publicitária ou não: I – formular preço para pagamento a prazo idêntico ao pagamento à vista; II – fazer referência a crédito ‘sem juros’, ‘gratuito’, ‘sem acréscimo’, com ‘taxa zero’ ou expressão de sentido ou entendimento semelhante; III – indicar que uma operação de crédito poderá ser concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor; IV – ocultar, por qualquer forma, os ônus e riscos da contratação do crédito, dificultar sua compreensão ou estimular o endividamento do consumidor, em especial se idoso ou adolescente. § 5º O disposto nos incisos I e II do § 4º deste artigo não se aplica ao fornecimento de produtos ou serviços para pagamento do preço no cartão de crédito em parcela única.”

[30] O STJ já decidiu pela aplicação do direito de arrependimento também na aquisição de crédito pelo consumidor: REsp 930.351/SP, Relª Minª Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 27.10.09, DJe 16.11.09. Neste mesmo sentido a doutrina já se posicionou: “A cláusula de arrependimento (art. 49 do CDC) seria aplicável? Em princípio, sim. Mas neste caso, a lei brasileira é mais restrita do que a de Portugal, pois somente se a contratação ocorre fora do estabelecimento prevê-se o arrependimento” (LOPES, José Reinaldo de Lima. Crédito ao consumidor e superendividamento. In: MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno Nubens Barbosa [Coord.]. Direito do consumidor: vulnerabilidade do consumidor e modelos de proteção. São Paulo: RT, 2011. v. II).

[31] O Tribunal de São Paulo (TJSP) já se manifestou sobre o tema, entendendo se tratar de contratos distintos, de compra e venda do bem em paralelo ao financiamento, mas coligados: “Apelação cível. Ação de rescisão de contrato de compra e venda e financiamento cumulado com dano moral. Sentença de parcial procedência. Insurgências da ré, instituição financeira, e autora. Compra e venda de motocicleta. Financiamento realizado fora do estabelecimento. Contratos coligados. Direito de arrependimento exercido no prazo legal. Inteligência do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor. Direito não atendido por vendedora e instituição financeira. Rescisão dos contratos retornando as partes ao estado anterior. Inserção do nome da autora no cadastro de inadimplentes. Inserção indevida. Dano moral caracterizado. Recurso da ré não provido. Recurso adesivo parcialmente provido” (TJSP, 34ª Câm. Dir. Priv, Ap 0002480-63.2008.8.26.0456, Des. Rel. Hélio Nogueira, DJ 09.09.2013).

[32] “Art. 54-C. Sem prejuízo do disposto no art. 46, no fornecimento de crédito, previamente à contratação, o fornecedor ou o intermediário devem, entre outras condutas: I – esclarecer, aconselhar e advertir adequadamente o consumidor sobre a natureza e a modalidade do crédito oferecido, assim como sobre as consequências genéricas e específicas do inadimplemento; II – avaliar de forma responsável e leal as condições do consumidor de pagar a dívida contratada, mediante solicitação da documentação necessária e das informações disponíveis em bancos de dados de proteção ao crédito, observado o disposto neste Código e na legislação sobre proteção de dados; III – informar a identidade do agente financiador e entregar ao consumidor, ao garante e a outros coobrigados uma cópia do contrato de crédito. § 1º A prova do cumprimento dos deveres previstos neste Código incumbe ao fornecedor e ao intermediário do crédito. § 2º O descumprimento de qualquer dos deveres previstos no caput deste artigo, no art. 52 e no art. 54-B, acarreta a inexigibilidade ou a redução dos juros, encargos, ou qualquer acréscimo ao principal, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e da indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor.”

[33] Esta questão foi bem analisada por MARTINS DE LIMA, Mikael. Op. cit.

[34] Nesse sentido, discorre a magistrada Clarissa Costa de Lima, comentando uma sentença de sua autoria: “Esse dever de informar compreende não somente aquelas informações ou dados de caráter objetivo como a taxa anual e mensal de juros, número de parcelas, data dos reembolsos, como também abrange aquelas de caráter subjetivo que estão ligadas à avaliação da capacidade de reembolso do consumidor. (…) Incumbe ao profissional prevenir o consumidor de um endividamento excessivo e, igualmente, tem origem no princípio da boa-fé objetiva” (MARQUES, Claudia Lima. Op. cit.).

[35] Acerca do tema, Cristiano Heineck Schmitt comenta uma sentença em que constou na fundamentação: “A instituição, munida com os meios de propagandas típicos da sociedade de consumo, atua como vício no produto e na prestação do serviço, levando o cidadão a incidir em erro, pela simulação caracterizada no contrato. (…) Assim, deve-se declarar o autor carecedor da ação, por atuar sem interesse processual, bem como a impossibilidade jurídica do pedido, justamente porque não agiu com o cuidado mínimo exigido para a garantia do crédito concedido, deixando de examinar a capacidade de pagamento e endividamento do contratante e assumindo o prejuízo por sua conta e risco, pelo que deve se resolver a relação contratual” (SCHMITT, Cristiano Heineck. Inexigibilidade de dívida derivada de concessão de crédito causadora de superendividamento de consumidor de baixa renda. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: RT, ano 21, n. 84, out./dez. 2012).

[36] “Art. 6º Quando o cliente ordenar a realização de operações nas situações previstas nos incisos I a III do art. 5º, as pessoas referidas no art. 1º devem, antes da primeira operação com a categoria de valor mobiliário:

I – alertar o cliente acerca da ausência ou desatualização de perfil ou da sua inadequação, com a indicação das causas da divergência; e

II – obter declaração expressa do cliente de que está ciente da ausência, desatualização ou inadequação de perfil.”

[37] “A insolvência civil na prática é inexistente, sendo esquecida no ordenamento jurídico brasileiro, até mesmo porque o procedimento leva muitos anos e gera a impossibilidade do insolvente administrar plenamente seu patrimônio, impedindo que pratique atos da vida cotidiana.” (SCHMIDT NETO, André Perin. Op. cit.)

[38] “Nossa insolvência é apenas uma execução coletiva, sem atentar para os fatos da vida do consumidor desfavorecido, para o julgamento especial que permita tratamento diferenciado quando o superendividamento se dever a uma atitude de boa ou má-fé.” (LOPES, José Reinaldo de Lima. Op. cit.)

[39] “Como os ativos disponíveis da maioria das pessoas físicas devedoras têm pouco valor, os regimes de insolvência existentes mais comumente exigem alguma contribuição das receitas futuras dos devedores em troca dos benefícios oferecidos pelo sistema (geralmente um perdão de dívida não paga). Seja qual for a forma e a extensão do alívio oferecido, a maioria dos sistemas que tratam da insolvência de pessoas físicas vislumbram um earned start, em vez de um simples fresh start sem nenhuma contribuição ou esforço esperado dos devedores. (…) Mesmo se os planos de pagamento não sejam especialmente efetivos de um ponto de vista financeiro, há uma percepção de que os planos servem importantes finalidades morais e educacionais.” (SOARES, Ardyllis Alves. Ob. cit.)

[40] “Na insolvência de pessoas físicas, a participação do credor não assume o importante papel que ele normalmente tem na insolvência comercial. Dado o fato de que nos procedimentos de insolvência de pessoas físicas valores muito baixos estão usualmente disponíveis, frequentemente os credores exercem nenhum ou pequeno papel no procedimento. Uma importante diferença especificamente com a insolvência comercial é que, na insolvência de pessoas físicas, credores podem se opor ao perdão das dívidas, mas a decisão sobre a exoneração e a confirmação de um plano de pagamento fica sob a autoridade das Cortes ou outros órgãos judiciais.” (SOARES, Ardyllis Alves. Op. cit.)

[41] “É necessário encontrar um equilíbrio entre fixar grandes objetivos e objetivos atingíveis. A experiência em muitos países indica que planos que são mais longos do que três anos produzem mais falhas que sucesso. Esperar que os devedores vivam mais que três anos apenas com o mínimo de subsistência pode não ser realista.” (SOARES, Ardyllis Alves. Op. cit.)

[42] Apresentação da Serasa no Senado. Audiência pública 19.02.2013. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=122748&tp=1>. Acesso em: 13 out. 2014.

[43] MARQUES, Claudia Lima. Op. cit.