O ROL TAXATIVO DAS CAUSAS LEGAIS DE DESERDAÇÃO E INDIGNIDADE SOB A PERSPECTIVA DO ABUSO DO DIREITO: UMA ABORDAGEM PROPOSITIVA DO TEMA
Patrícia Fontanella
Renata Raupp Gomes
1 Introdução
O presente estudo tem por escopo construir uma solução jurídica capaz de equacionar dois problemas aparentemente inconciliáveis: o anacronismo da legislação no tocante às causas de deserdação e indignidade, normalmente entendidas como taxativas e tratadas a partir da tradicional interpretação restritiva e os casos concretos que, embora não previstos em lei, desafiam toda a lógica do ordenamento e dos valores que o embasam.
A questão ganha um adicional relevo quando examinada sob a óptica dos herdeiros necessários, na medida em que a autonomia do titular do patrimônio se restringe à metade do seu acervo, exceto nas hipóteses em que o sucessor pode ser alijado de sua legítima[1] pela deserdação ordenada expressamente no testamento do autor da herança. Ainda, no que tange à exclusão por indignidade, mister registrar que o herdeiro necessário somente será afastado da totalidade da herança (caso não haja deserdação ordenada em testamento) se houver cometido alguma das condutas expressa e previamente descritas pela legislação civil.
Muito se tem dito e escrito acerca da obsolescência da legítima no direito sucessório brasileiro, havendo quem defenda a sua restrição à hipótese exclusiva de descendentes incapazes, ou mesmo sua completa extinção em prol do pleno exercício da autonomia privada. Alinha-se, também, ao argumento de maior liberdade do titular do patrimônio, o fato de que a legítima, como um privilégio conferido a certos herdeiros, parte da premissa de afeto e solidariedade nem sempre verificados nos casos concretos, em total discrepância com a abstração legal.
Sem embargo desse movimento que, aliás, parece ser crescente na sociedade, a reflexão aqui proposta segue caminho diverso, na medida em que a sua relevância parte do pressuposto da manutenção da reserva legal em favor dos herdeiros entre nós denominados de necessários ou legitimários, preocupando-se, todavia, com a reformulação das hipóteses de deserdação e indignidade e, enquanto isso não ocorre, propondo um novo olhar hermenêutico à questão.
Importante que se diga, já de início, que tanto os herdeiros necessários como os facultativos (parentes colaterais) possuem vocação hereditária e organizam-se em ordem de preferência e exclusão, a partir de premissas de afeto, solidariedade e, por que não dizer, de reciprocidade. Sob essa perspectiva, então, deve-se atrelar os direitos desses sucessores, especialmente os legitimários, aos pressupostos deveres correlatos, dentre eles o de apresentar postura ética para com a pessoa sucedida e seus familiares.
Nesse contexto, a abordagem tem por objetivo primevo o estudo das hipóteses de exclusão de sucessores da participação hereditária em razão de procedimento tido por indigno ou apto a ensejar a deserdação e, por derradeiro, a construção de uma alternativa jurídica uniformizadora da jurisprudência na matéria.
Vale dizer, preliminarmente, que a conduta do beneficiado com a sucessão do autor da herança deve refletir um determinado paradigma de comportamento social, pautado pela honestidade, confiança, lealdade e fidelidade em suas relações jurídicas, interpretando as regras erigidas em resposta às espécies tipificadas de modo a evitar que herdeiro ou legatário de comportamento desleal ou ofensivo para com o sucedido (ou seus parentes) siga premiado com a transmissão sucessória.
Embora as hipóteses legais de deserdação e indignidade apresentem feição de pena civil a embasar os institutos – punindo a conduta incompatível com o benefício recebido ou com o direito assegurado – recebem tratamentos distintos, tornando lacunosa a matéria e, não raro, contraditória a sua aplicação aos casos concretos.
Corrobora esse grave problema, o fato de que tradicionalmente os institutos têm merecido interpretação, além de restritiva, estanque, entendendo-se tratar cada um deles de penalidade diversa, independente e com enumeração exaustiva, justamente por seu caráter punitivo.
Confira-se, a propósito da assertiva, o quadro comparativo a seguir exposto.
DESERDAÇÃO – arts. 1961 (remete ao 1.814), 1962, 1963:
INDIGNIDADE – art. 1814:
I – ofensa física;
I – que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;
II – injúria grave;
II – que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;
III – relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto; (ou a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou o da neta)
III – que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.
IV – desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade (ou desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade)
No direito brasileiro existe contestação na doutrina acerca da taxatividade do elenco de causas de indignidade e deserdação. O presente artigo propõe o abuso do direito, previsto no art. 187 do Código Civil, como válvula de escape do sistema jurídico para o afastamento da posição jurídica de herdeiro em casos não expressos na legislação que violem a boa-fé objetiva e que se desdobram em dois subprincípios que a concretizam: o da tutela da confiança e o da primazia da materialidade subjacente e que encontram enquadramento nos grupos típicos de atuações abusivas: venire contra factum proprium, suppressio e surrectio, tu quoque, inalegalibilidades formais e o desequilíbrio no exercício.
2 Deserdação e indignidade sob o viés jurisprudencial: do rol taxativo à necessidade de uma nova abordagem jurídica
A deserdação, como se sabe, remete à privação de herdeiro necessário da sucessão, ordenada por testamento pelo autor da herança e fundada em uma das causas legais enumeradas no Código Civil, do artigo 1.961 ao artigo 1.963.[2]
Em voz praticamente uníssona[3], doutrina e jurisprudência afirmam a taxatividade das condutas que permitem a deserdação ou a indignidade, em razão da natureza de pena que as informa. Pelo mesmo motivo, adota-se como regra geral uma interpretação restritiva aos casos concretos, temendo aplicar punição em hipótese não expressa e anteriormente prevista na lei. No entanto, basta um passar de olhos na enumeração dos artigos 1961 a 1963 para constatar-se o grande hiato entre o tratamento legal da deserdação e a vida real.
Tome-se, por exemplo, as eufemísticas relações ilícitas entre o ascendente com cônjuge ou companheiro do descendente e vice-versa. Melhor seria dar encaminhamento genérico à hipótese, equiparando-a a outras tantas espécies de deslealdade ou desrespeito tão ou mais graves para com o autor da herança, de modo ensejar a deserdação sempre que desatendida a necessária ideia de reciprocidade no afeto (ainda que presumido pela lei), na solidariedade e na eticidade que deve amparar a sucessão, sobretudo a decorrente de relações tão íntimas de parentesco. Neste particular, observam Chaves e Rosenvald (2015, p. 143) a incongruência de punir-se o parente em linha reta pela relação ilícita com o parceiro ou parceira do autor da herança, deixando-se de prescrever a deserdação do cônjuge ou companheiro que traiu a confiança do falecido, envolvendo-se em relação de conteúdo romântico ou sexual com seu descendente ou ascendente.
Pior, após uma simples leitura das causas de indignidade, instituto que, como se disse antes, guarda com a deserdação a mesma raiz finalística e a mesma natureza de pena, exsurge a falta de coerência e de consistência do ordenamento na abordagem do tema.
Sob essa óptica, merece menção específica o desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade (inciso IV do artigo 1.963).
Evidente que o filho ou neto com grave enfermidade mental que tenha sido desamparado por ascendente não poderá fazer testamento deserdando-o, justamente por faltar-lhe capacidade para tanto. Note-se que, nesse caso, aberta a sucessão do filho ou neto enfermo mental (que não possuía capacidade para fazer testamento ordenando a deserdação) os próximos parentes na ordem sucessória não poderão excluir o ascendente que o abandonou por indignidade, na medida em que tal conduta não encontra paralelo no rol dito taxativo do art. 1.814 do CCB.
Ainda sobre a deserdação de ascendente pelo descendente, importa registrar que o simples abandono já deveria autorizar a medida, uma vez que a dependência econômica, moral e psicológica dos filhos enquanto menores é absolutamente presumida e de responsabilidade dos pais. Tanto é assim que há diversos precedentes da Corte Superior que responsabilizam os pais que abandonam afetivamente os filhos, sob o argumento de que cometem ato antijurídico grave ao negligenciá-los, pois por mais que não possam ser obrigados a amar o são a cuidar.
Interessante que o pai que abandona afetivamente o filho durante toda a sua vida pode, segundo a prescrição do atual artigo 1.963 do CCB, vir a sucedê-lo, ao passo que não há autorização expressa para esse descendente deserdar o seu ascendente, mesmo que provada a antijuricidade de sua conduta a partir do total abandono moral.
Mais: imagine-se um pai que abandona o filho gravemente enfermo ao nascer aos cuidados exclusivos da mãe e dos avós maternos. Ao falecer a mãe, o filho herda quantia significativa, permanecendo sob os cuidados dos avós. Em razão de sua enfermidade física, falece na sequência, ainda menor, absolutamente incapaz. Por mais que haja causa legal para a deserdação desse pai, por óbvio o filho falece sem deixar testamento, de modo que seu pai, como ascendente mais próximo, sucede sozinho. Na espécie, não obstante tenha o pai cometido ato que teoricamente autorizaria sua deserdação, os avós maternos encontrarão enorme dificuldade de afastá-lo da sucessão do neto por indignidade por não existir perfeita simetria entre os institutos, perpetrando-se indiscutível injustiça tanto do ponto de vista legal como moral.[4]
Reitere-se o que se disse antes também em relação ao ascendente abandonado pelo descendente em alienação mental ou grave enfermidade (inc. IV do art. 1.962 CCB), porquanto impossível fazer testamento o deserdando na primeira hipótese e improvável na segunda, por encontrar-se combalido fisicamente.
A despeito disso, o filho que abandona o pai em enfermidade mental ou física não sofrerá, segundo a regra do art. 1.814 do CCB, a pena de exclusão por indignidade, por mais que a própria mãe ou seus irmãos venham a promover a demanda, pois não constante da enumeração legal que respalda a mencionado medida.
Vale questionar se o mero abandono afetivo do ascendente, mesmo que saudável, mas em idade avançada, não configuraria causa que contraria a pressuposta afetividade e solidariedade familiar, circunstância a reclamar uma necessária reformulação das hipóteses legais de deserdação. Crê-se que sim. Mas enquanto isso não acontece, defende-se, nesse ínterim, uma interpretação dos institutos mais coerente, mais preocupada em concretizar valores constitucionais fundamentais como a dignidade, a solidariedade e a responsabilidade familiar. Afinal, a pessoa idosa, pela especial fragilidade no crepúsculo da vida merece tratamento diferenciado, tal qual é dado a crianças e adolescentes, ainda que pelo motivo inverso.
Por fim, menciona-se que apesar da inclusão dos cônjuges (e quiçá dos companheiros, tendo em conta a recente decisão do STF que os equipara quanto ao tratamento sucessório) no rol dos herdeiros necessários do art. 1.845 do Código Civil de 2002, há evidente lacuna quanto à prerrogativa de deserdação dessa classe de sucessores legitimários, inexistindo previsão específica para os casos em que um cônjuge (ou companheiro) pode deserdar o outro.
Nesse sentido, tem-se a previsão genérica no art. 1.961 de que “os herdeiros necessários podem ser privados de sua legítima, ou deserdados, em todos os casos em que podem ser excluídos da sucessão” (remetendo ao art. 1.814), seguindo-se, na sequência, as prescrições específicas de quando o ascendente pode deserdar o descendente (art. 1.962) e vice-versa (Art. 1.963).
Ao se interpretar restritivamente os dispositivos, entendendo-os como numerus clausus, pode-se chegar ao absurdo de admitir que a ofensa física ou a injúria grave cometida por um cônjuge contra o outro não assegure ao ofendido o direito de deserdar seu algoz por falta de previsão própria e ausência de paralelo na enumeração das causas de indignidade.
Há doutrinadores que apontam ser a manutenção da sociedade conjugal em casos de abuso físico ou mental, por exemplo, a prova cabal de não cabimento da deserdação, por ter havido na espécie o perdão tácito do cônjuge ofendido.
Ora, nada poderia estar mais longe da verdade, pois, plenamente crível que o cônjuge vitimado por violência doméstica, notadamente a psicológica (consistente em ameaças até de morte em uma eventual iniciativa de separação) deixe de promover demanda visando à dissolução da sociedade conjugal, não porque há perdão tácito da conduta empregada pelo outro, mas porque teme retaliação ainda mais violenta caso tome esse rumo.
Segundo Maria Berenice Dias (2011, p.320), contrariando a maior parte da doutrina acerca da enumeração exaustiva e interpretação restritiva dos artigos da deserdação, facultando aos cônjuges ou companheiros a deserdação de seu par exclusivamente nas hipóteses de indignidade (redação do art. 1.961), tal solução não se afigura justa, porque “descabido privar filhos da herança por prática de determinado fato e não ser possível excluir o cônjuge que age de modo igualmente reprovável”.
Exatamente com base nessa preocupação, Chaves e Rosenvald (2015, p. 134) afirmam que pelo argumento da tipicidade finalística seria plenamente viável a deserdação de um cônjuge pelo outro na hipótese de ofensa física, injúria grave ou, ainda, relações sexuais ou afetivas mantidas pelo parceiro com descendente ou ascendente seu, garantindo-se uma interpretação sistêmica, racional, teleológica da norma codificada.
Quanto à exclusão de herdeiro legítimo, necessário ou não, ou de legatário por indignidade, idêntico pressuposto ao da deserdação deve ser aplicado, valendo dizer que deveria ser cabível a exclusão do sucessor que tivesse para com o autor da herança ou testador procedimento contrário à presunção legal de afeto, cuidado, solidariedade e respeito, por uma questão de reciprocidade (merecimento ou, pelo menos, de não desmerecimento).
Registre-se, em tempo, que se tratando de herdeiro testamentário ou de legatário, o afeto não é presumido, mas sim expresso, tanto que contemplado o sucessor no testamento da pessoa que desrespeitou ou feriu.
As causas que autorizam a exclusão de herdeiro ou legatário da sucessão encontram-se previstas e reguladas no artigo 1.814 do atual Código Civil[5], sendo igualmente importantes nesse ponto as críticas feitas em relação à deserdação e a forma como grande parte dos doutrinadores e julgadores têm entendido a matéria, dedicando-a interpretação literal.
Examinando-se a enumeração legal, vê-se que no inciso I do art. 1.814, há a previsão de exclusão por indignidade de herdeiros ou legatários que “houverem sido autores, coautores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente”.
Segundo entendimento doutrinário[6], o homicídio culposo e o preterdoloso não autorizariam a exclusão do sucessor por indignidade, sendo a intencionalidade do agente (dolo) elemento imprescindível à caracterização do tipo legal.
Cristiano Chaves e Nelson Rosenval (2015, p. 115) chegam a exemplificar a hipótese do crime de lesão corporal seguido de morte, afirmando que se não há intenção de matar do agente, mas sim de lesionar, “não parece que possa ser enquadrado o preterdolo como conduta símile ao homicídio”.
Ainda que ressalvem adiante, a depender das particularidades do caso concreto, a possibilidade de enquadrar-se o homicídio preterintencional como causa de indignidade por conta da tipicidade finalística, melhor seria assumir uma interpretação conjugada das regras da deserdação e da indignidade, de modo que, na espécie, facultada estaria a exclusão de sucessor que agredisse fisicamente o autor da herança a ponto de causar-lhe a morte.
Isso porque fere toda a lógica do sistema a perpetração de ofensa física autorizar a deserdação e não a exclusão por indignidade, ainda mais quando de tal agressão resultar na morte do lesado que, obviamente, padece dos ferimentos sem ter podido providenciar testamento para deserdar seu malfeitor. Por mais que tal circunstância pudesse ser enquadrada em crime quanto à honra, consoante dicção do inciso II do art. 1.814 (na modalidade injúria real)[7], por exigir prévia condenação criminal dificulta a exclusão do sucessor, devendo tal direito ser franqueado aos seus herdeiros por meio da ação de exclusão de sucessor por indignidade simplesmente porque figura entre as causas de deserdação. Certo é que tal sucessor não pode ser agraciado com a herança legítima, testamentária ou com o legado, após ter atacado o falecido, sob a pena de grave vilipêndio dos valores constitucionais e sucessórios que se pretende ver realizados na sociedade.[8]
No inciso seguinte, prescreve-se a exclusão de herdeiros ou legatários “que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro”.
Com exceção do primeiro caso – acusação caluniosa – nos demais se entende necessária a prévia condenação criminal para ensejar a exclusão por indignidade, na medida em que o legislador utiliza-se da expressão “crime contra a honra” o que acaba por dificultar na prática o afastamento do sucessor da herança da pessoa falecida.
Note-se que quanto à amplitude no enquadramento de crime contra a honra (calúnia, difamação e injúria), impera a interpretação restritiva, muito embora se deva considerar que a injúria, por exemplo, possui um amplo âmbito de aplicação, podendo ser cometida de forma verbal, escrita, ou até mesmo física. A injúria física tem previsão de pena maior, sobretudo quando o meio utilizado for considerado aviltante, humilhante (conforme redação do § 2º do art. 140 do CPB).
Acredita-se, consequentemente, que uma imensa gama de condutas possa ser enquadrada como crime contra a honra, notadamente sob a rubrica da injúria, desde que a partir de uma intelecção não literal dos dispositivos legais. Crê-se possível, inclusive, enquadrar nessa causa legal a hipótese de violência sexual contra o autor da herança, seu cônjuge ou companheiro[9]. Do contrário, ter-se-ia que admitir como coerente e sistemática a interpretação que agracia com a herança da vítima seu ofensor sexual, não obstante condenado definitivamente na esfera criminal pelo crime.
Parece lógico, portanto, valer-se da condenação penal por crime de estupro, por exemplo, para, no âmbito civil, requerer a exclusão do herdeiro ou legatário por crime cometido contra a honra do autor da herança. Seria preferível, sem dúvida, previsão expressa que respaldasse objetivamente a conduta contra a dignidade sexual do sucedido como causa de indignidade.
Na terceira hipótese de indignidade (inciso III, do art. 1.814) visa-se à proteção da liberdade de disposição patrimonial por parte do autor da herança, de modo a punir com a exclusão da herança o sucessor que, por violência física ou psicológica, ou utilizando-se de meios fraudulentos, tenta obstar a expressão da autonomia privada do testador, impedindo-o de livremente dispor de seus bens por última vontade.
Assim como nas causas anteriores, vê-se tal conduta como desabonadora da participação sucessória de pessoa que sequer respeita as deliberações de última vontade do autor da herança, interessando-lhe tão somente a preservação do patrimônio em causa própria ou interferir em sua destinação de modo a beneficiar-se direta ou indiretamente.
Sem embargo de interessante proposta legislativa que procura redesenhar as hipóteses autorizadoras da exclusão de sucessor por indignidade[10], deve-se priorizar uma alteração legal que se coadune com os preceitos éticos da sociedade, concretize o primado da dignidade humana no direito sucessório e, sobretudo, confira organicidade ao ordenamento por meio do absoluto paralelismo entre as hipóteses de deserdação e indignidade.
É preciso registrar, contudo, que mesmo uma eventual reformulação legislativa na matéria não teria o condão de abarcar todos os casos concretos da vida em seu texto, pois, como bem disse Maria Berenice Dias, “a maldade humana é imprevisível e ilimitada” (2011, p. 306).
Sob essa perspectiva, mesmo que doutrina e jurisprudência demonstrem pequenos e pontuais avanços em prol da superação do dogma da taxatividade das causas legais de indignidade e de deserdação, admitindo aos poucos hermenêutica extensiva ou aplicação analógica aos casos não previstos expressamente[11], falta-lhes o substrato capaz de amalgamar teoria e prática a partir dos valores sociais e jurídicos subjacentes à temática.
Buscando solução ao problema aqui apresentado, percebe-se o quanto a teoria do abuso do direito pode contribuir nessa seara.
Apesar de ser uma teoria costumeiramente não aplicada ao direito sucessório, demonstra-se a melhor alternativa para evitar decisões que contrariem suas próprias premissas, além dos princípios éticos que alicerçam não apenas o ordenamento jurídico, mas as relações interpessoais na sociedade.
Mais importante ainda, a correta aplicação do abuso de direito aos casos de deserdação e indignidade não previstos expressamente em lei pode conferir a coerência e a densidade que os institutos reclamam há muito tempo.
O abuso do direito apresenta-se, nessa ambiência jurídica, como uma teoria de base sólida, capaz de homogeneizar as decisões acerca do tema aqui proposto, além de corrigir a discrepância de tratamento legal da deserdação e da indignidade e seus efeitos deletérios na sociedade.
3 O abuso do direito como válvula de escape do sistema
Com a consagração normativa da teoria do abuso do direito no art. 187 do Código Civil brasileiro de 2002, o tema do abuso do direito ganhou nova perspectiva, em especial, no campo do Direito de Família e Sucessório.
No Brasil, o tema se desloca a partir de fragmentações, e não de sistema, e advém da construção legislativa, doutrinária e jurisprudencial até o final do século XX (COSTA-MARTINS, 2007, p. 507). O Código Civil de 1916 não tratou estruturalmente do exercício jurídico – embora o tenha feito por meio de disposições normativas esparsas – e foi no art. 160, inciso I, que a doutrina encontrou, a partir de uma interpretação a contrario sensu, a possibilidade de aplicação da então novel fórmula francesa do abuso do direito: “não se constituem atos ilícitos: I – os praticados em legítima defesa, ou no exercício regular de um direito reconhecido”. Foi, portanto, de forma “tímida e obscura” (MARTINS, 1997, p. 92) que o ato abusivo passou a ser visto como possibilidade jurídica expressa, cujo fundamento estava centrado na noção de regularidade do exercício.
A partir dessa compreensão, acabou por predominar, na doutrina e na jurisprudência, o critério subjetivo – culpa ou intenção – para aferição do ato abusivo cuja consequência, havendo danos, era a aplicação do art. 159 do Código Civil de 1916: atrelou-se o abuso do direito ao ato ilícito em sua concepção clássica e à responsabilidade civil e abraçou-se a concepção francesa de abuso.
No Código Civil de 2002, a consagração do abuso do direito no art. 187 deu-se de forma muito diferente da realizada pelo legislador de 1916: com a inserção de elementos de concretização sequer referenciados pela jurisprudência até então existente sobre tema, como ensina Martins-Costa (2007, p. 515). O artigo 187 dispõe: “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. É disposição normativa muito semelhante à prevista na legislação portuguesa: o art. 187 reproduz, com poucas diferenças, o art. 334.º do Código Civil português, que prevê no art. 334º do Código Civil: “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito”.
Trata-se de um movimento de transferência jus cultural, que representa verdadeira ruptura da concepção francesa até então abraçada pela doutrina e jurisprudência brasileiras que abre espaço, consequentemente, à recepção da concepção germânica de abuso do direito no Brasil (MARTINS-COSTA, 2008, p. 121). Isso porque o art. 334.º do Código Civil português recebeu influência direta do art. 281 do Código Civil grego que, por sua vez, é produto da doutrina germânica que desenvolveu a ideia de abuso do direito de forma muito diferente da ocorrida no espaço jurídico francês: a partir de grupos de casos de situações tipicamente abusivas, cujo critério para a sua concretização reside na boa-fé objetiva (MENEZES CORDEIRO, 2007, p. 717). Logo, pode-se compreender o abuso do direito a partir de manifestações periféricas de comportamentos abusivos, assentes na boa-fé objetiva e, consequentemente, concebê-lo como o exercício inadmissível de uma posição jurídica.
Sabe-se que a função econômica ou social dos direitos se encontra razoavelmente sedimentada na cultura jurídica brasileira relativamente ao tema, ao contrário dos bons costumes, e ambos os conceitos jurídicos indeterminados se encontram previstos como limites ao exercício jurídico no art. 187 do Código Civil. Contudo, em que pese entendimentos contrários, tais categorias não se prestam a coibir o abuso do direito, ou melhor, o exercício inadmissível de posições jurídicas.
A verificação da finalidade econômica ou social dos direitos obriga o intérprete-aplicador apenas a melhor interpretar as normas que instituem direitos, a fim de verificar de que forma se deve proceder ao exercício: tem-se apenas “[…] uma interpretação melhorada das normas, que dê valor à dimensão axiológica” (MENEZES CORDEIRO, 2008, p. 128). Quando os direitos são concedidos com uma certa função como, por exemplo, poderes funcionais, as normas devem ser respeitadas, sob pena de ilicitude subjetiva (CC, art. 186) e não abuso do direito (CC, art. 187)[12].Por sua vez, a categoria “bons costumes” surge como algo do exterior que exprime a moral social, mas que não prescreve o comportamento a assumir e, ao fixar limites extrínsecos ao exercício de direitos, a sua aplicação configura-se como ausência de direito e não abuso (MENEZES CORDEIRO, 2016, p. 455).
Reside na boa-fé objetiva, portanto, o verdadeiro critério de ordenação do exercício jurídico – categoria que assume um papel fundamental nos comportamentos exigidos pelo sistema – que pode ser apreendido como um limite que surge do interior deste, conforme a lição de António Menezes Cordeiro (2007, p. 881-882). É na observação da atuação do indivíduo que se verificará se há ou não a ilicitude por exercício inadmissível de uma posição jurídica – ou na acepção clássica, abuso do direito – o que faz com que a sua verificação independa da interpretação de cada direito.
A boa-fé objetiva é o critério agregador das diversas hipóteses reconhecidas sob a alçada do instituto e exprime os valores fundamentais do sistema jurídico, conhecidos objetivamente e onde se encontra o seu limite, constituindo-se na mais ampla cláusula geral da ordem jurídica: “[…] traduz, no caso concreto, a projecção dos dados materiais relevantes do sistema, a cuja luz devem ser vistas a confiança e a materialidade da regulação jurídica”(MENEZES CORDEIRO,2007, p. 1299).
A aplicação do art. 187 do Código Civil passa, fundamentalmente, pela doutrina que sistematiza os diferentes casos de exercício jurídico inadmissível e deve inspirar a compreensão contemporânea do abuso do direito. Sob esse olhar, o abuso do direito toma como norte condutas que desconsideram a boa-fé objetiva e que é formado por diversas espécies que possuem peculiaridades e tem em comum a ordenação pela boa-fé. São as figuras parcelares do abuso que se concretizam por meio de dois subprincípios, a saber: a tutela da confiança (venire contra factumproprium, suppressio e surrectioeinalegalibilidades formais) e a primazia da materialidade subjacente (tu quoquee o desequilíbrio no exercício). Esses concretizam-se nos chamados “grupos típicos de atuações abusivas”[13].
A situação de confiança é expressa pela ideia de boa-fé subjetiva. Tanto nas suas manifestações subjetiva e objetiva a boa-fé está ligada à confiança: a boa-fé subjetiva dá o momento essencial da confiança; a boa-fé objetiva (CC, art. 187) confere a base jus positiva necessária na ausência de uma disposição normativa específica que tutele a confiança (MENEZES CORDEIRO,2007, p. 1250). Por sua vez, o princípio da primazia da materialidade subjacente é assim exprimido: existem valores materiais que são assegurados pelo Direito, não bastando apenas arranjos formais, mas sim, a efetivação da substancialidade: “a pessoa que viole uma situação jurídica perturba o equilíbrio material subjacente” (MENEZES CORDEIRO, 2016, p.117). Nesse sentido, da materialidade subjacente decorrem exigências ético-jurídicas que direcionam o comportamento das pessoas no exercício jurídico: a contradição de condutas que não chegam a frustrar a confiança, mas que no conjunto, afrontam perspectivas de coerência valorativa desconsideram a primazia da materialidade subjacente.
Por sua vez, o legislador expressamente admitiu o abuso do direito como ilícito civil e a doutrina abarcou o critério objetivo, que não faz depender da culpa ou da intenção do titular da posição jurídica o reconhecimento do comportamento abusivo, tampouco da existência de dano. A previsão legal do abuso do direito como ato ilícito, em cláusula geral, permite que a solução seja construída pelo intérprete-aplicador sempre em atenção ao caso concreto, de modo que a responsabilidade civil passa a ser apenas uma das possibilidades várias advindas de seu reconhecimento pelo Poder Judiciário.
Mas é certo que o art. 187 do Código Civil deve ser invocado sempre que não existam instrumentos jurídicos próprios que possam resolver o conflito apresentado:
O recurso puro e simples a uma boa-fé despida de quaisquer precisões torna-se, perante essa relação de necessidade, num expediente insatisfatório para a Ciência do Direito e insuficiente para a prática jurídica: não explica as soluções encontradas e não permite, por si, solucionar casos concretos novos. No fundo, a boa-fé funciona, aí, como apoio linguístico para soluções encontradas com base noutros raciocínios – ou na pura afectividade – ou como esquema privilegiado de conseguir amparo numa disposição legal – a que consagra a boa fé para a solução defendida. (MENEZES CORDEIRO, 2011, p. 285)
O recurso às figuras parcelares do abuso do direito – ou melhor, dos tipos de exercício inadmissível de posições jurídicas – deve ocorrer apenas na ausência de solução para a situação apresentada: trata-se de válvula de escape do sistema jurídico.
4 Aplicação do abuso do direito às hipóteses não especificadas em lei: uma saída possível?
O direito de suceder é direito potestativo e configura-se na “situação jurídica paradigmática” do Direito Sucessório (PINHEIRO, 2015, p. 53). Trata-se do exercício do direito à herança a ser concretizado através da manifestação de vontade do herdeiro, que poderá aceitá-la ou afastá-la de seu patrimônio.
De acordo com o Código Civil, possui legitimidade para suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão (CC, art. 1.798), bem assim, no âmbito da sucessão testamentária: I – os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão; II – as pessoas jurídicas; III – as pessoas jurídicas, cuja organização for determinada pelo testador sob a forma de fundação (CC, art. 1.799).
Como visto, o legislador expressamente legitima aos herdeiros e ao Ministério Público (no caso do art. 1.814, inciso I) afastar da sucessão o sucessor que incorreu em uma das ilicitudes descritas no rol do art. 1.814 cujas causas estão ligadas à indignidade, bem assim possibilita ao ofendido deserdar – via testamento – o herdeiro que incorrer nas ilicitudes descritas nos arts. 1.961, 1.962 e 1.963, todos do Código Civil. Trata-se de causas que traduzem uma incapacidade para a sucessão e que decorrem de motivos de ordem ético-jurídica.
Por se tratar de medida sancionatória, o rol apresentado para as situações são taxativas e não comportam interpretação extensiva (embora bastante questionadas pela doutrina contemporânea), já que resultam na exclusão do sucessor que praticou a ilicitude da cadeia sucessória. Contudo, a taxatividade da enumeração prevista nas situações descritas na legislação abre espaço para a discussão acerca da aplicação do art. 187 do Código Civil: pode-se afirmar que o elenco fechado de causas não é capaz de dar resposta a inúmeras situações que podem resultar no direito de suceder em casos de manifesta violação à boa-fé objetiva, sendo que, neste estudo dar-se-á maior ênfase para quando há verdadeira violação da materialidade subjacente concretizada na figura parcelar do abuso do direito – ou de um dos tipos de exercício inadmissível de posições jurídicas – denominado tu quoque.
Do sistema jurídico decorrem exigências ético-jurídicas que direcionam o comportamento das pessoas no exercício jurídico: a contradição de condutas que não chegam a frustrar a confiança, mas, no conjunto, afrontam perspectivas de coerência valorativa, desconsiderando a primazia da materialidade subjacente.
O brocardo latino Tu quoque exprime a máxima “Também tu!”[14], no qual está em jogo o vetor axiológico turpitudinem suam allegans non auditur ou equity must come with clean hands. Sua aplicação requer cautela, mas traduz a ideia segundo a qual uma pessoa que desrespeite uma norma não pode, posteriormente e sem abuso, “- ou prevalecer-se da situação daí decorrente; – ou exercer a posição violada pelo próprio; – ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada” (MENEZES CORDEIRO, 2011, p. 327).
A fórmula tu quoque pode ser utilizada na repressão de situações nas quais uma pessoa, após violar uma norma, pretenda exercer posição jurídica que esta mesma norma lhe assegura. O que está em jogo não é a tutela da confiança, mas outro princípio mediante concretizador da boa-fé: a primazia da materialidade subjacente, de onde se retiram exigências ético-jurídicas segundo as quais deve o comportamento dos envolvidos se pautar. Daí que “a justificação e a medida do tu quoque estão, pois, nas alterações que a violação do primeiro perpetrada tenha provocado no sinalagma” (MENEZES CORDEIRO, 2007, p. 845).
Assim, o exercício das posições jurídicas deve ser realizado de forma a possibilitar concretamente e com a máxima efetividade, os valores maiores do sistema: será contrária à boa-fé qualquer conduta que apenas formalmente concretize o que o Direito determine.
Levando-se em conta que cláusulas gerais apenas podem ser operadas pelo intérprete-aplicador a partir do caso concreto, para ilustrar a aplicação da disposição normativa que contém a base jurídico-positiva do abuso do direito ao Direito Sucessório como válvula de escape do sistema para afastar a posição jurídica de herdeiro e demonstrar a aplicação do instituto e sua aplicação como saída possível na ausência de legislação aplicável ao caso, propomo-nos partir de uma reflexão sobre a decisão exarada no acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina – Apelação Cível n. 2014.084732-2, de Rio do Sul – proferida em 22.10.2015 pela 4ª Câmara Civil, cuja Relatoria foi do Desembargador Jorge Luis da Costa Beber.
4.1. O processo
O processo teve origem em ação declaratória de indignidade, na qual havia a pretensão do avô paterno do de cujus de excluir a genitora do falecido da sucessão deste.
O pedido foi firmado no abandono afetivo perpetrado pela mãe, tendo sido julgado improcedente por não ter sido reconhecida como causa prevista em nenhuma das hipóteses do art. 1.814 do Código Civil. Para o juiz a quo “o abandono afetivo, ainda que reprovável, não é causa de reconhecimento de indignidade em nosso ordenamento jurídico atual, sendo inócuo o argumento de existência de projeto de lei com vistas a tal inclusão, por se tratar de mera expectativa de direito” (fls. 101).
Em segundo grau, o Tribunal confirmou a decisão exarada no sentido de que o art. 1.814 é taxativo e não admite interpretação extensiva, bem assim afastou-se qualquer discussão acerca da existência de pleito amparado em Projeto de Lei (mera expectativa de direito). Nas palavras do Relator, Desembargador Jorge Luis da Costa Beber, “[…] não se encontrando o abandono afetivo entre as suas causas, não há pertinência alguma na comprovação da aludida circunstância para a solução do litígio em foco”.
Na decisão tratou-se ainda da deserdação, entendendo-se não ser possível estender casos de deserdação (exclusivos para afastamento em testamento) a situações passíveis de declaração de indignidade.
4.2. Os fatos
A síntese dos fatos pode ser assim descrita: 1. A mãe abandonou o filho; 2. A criança foi criada pelo pai e pelos avós paternos; 3. O pai faleceu em 15.06.2013; 4. O filho faleceu em 22.12.2013. 4. A herdeira universal do patrimônio herdado pelo neto (que faleceu menor de idade) e que consistia em um imóvel foi a mãe.
4.3. Análise à luz da doutrina do exercício inadmissível de posições jurídicas
O caso em apreço revela-se um exemplo da possibilidade de aplicação da disposição normativa prevista no art. 187 do Código Civil: o “abandono afetivo” devidamente comprovado mostra-se situação plenamente possível de justificar o afastamento da posição jurídica de herdeiro (a). Na ausência de regra específica que afaste o comportamento que viole a primazia da materialidade subjacente, há que se aplicar a proibição do abuso do direito na fórmula tu quoque.
O comportamento da genitora que abandona o filho menor de idade e após o falecimento deste habilita-se como herdeira dos bens por ele deixados revela-se violador das exigências ético-jurídicas mediante as quais deve o comportamento dos envolvidos se pautar.
Trata-se de caso no qual se encontra um aspecto intenso de deslealdade, de aproveitamento e de malícia que subjaz do comportamento em causa e que pode ser traduzido na máxima tu quoque.
A caracterização da ilicitude decorrente do ato abusivo ou melhor, do exercício inadmissível de posições jurídicas, independe da consciência do titular de que este excedeu no modo do exercício de sua posição jurídica, não constituindo a culpa e o dano elementos fundamentais; basta, tão somente, que o comportamento havido possa ser acomodado em quaisquer dos tipos de exercício inadmissível de posições jurídicas apresentados ou em outros que possam vir a ser detectados pela Ciência do Direito, cujas consequências serão apenas verificáveis in concreto.
Como consequência do tu quoque, pode-se ter a restrição do exercício ou até a extinção do direito em causa como forma de reestabelecer o equilíbrio: a nova situação criada altera a configuração da posição jurídica do exercente; no limite, pode ir até à extinção do direito em causa, conforme bem expõe António Menezes Cordeiro (2007, p. 851).
Na situação apresentada, a partir do reconhecimento do “abandono afetivo” perpetrado pela genitora, a solução jurídica a ser alcançada – à luz do paradigma proposto – é a extinção da posição jurídica de sucessora do filho falecido, com o consequente reconhecimento dos avós como legítimos herdeiros do neto falecido.
5 Considerações finais
O tema do rol taxativo das causas legais de deserdação e indignidade tem sido muito discutido na doutrina e na jurisprudência brasileiras e tal celeuma parece longe de terminar. Alterações legislativas importantes e necessárias no Direito Sucessório parecem longe de acontecer, tornando ainda mais urgente a busca de uma saída jurídica capaz de conferir organicidade e coerência ao ordenamento, traduzindo-se em solução compatível aos casos concretos em que há evidente exercício abusivo do direito de suceder.
A abordagem do abuso do direito sob a perspectiva do exercício inadmissível de posições jurídicas por disfuncionalidade ao sistema permite afirmar que existe potencialidade para a aplicação do instituto ao direito de suceder.
O abuso do direito compreendido como uma série de regulações típicas de comportamentos abusivos, aparece como um modelo concreto de comportamentos contrários à boa-fé, possibilitando extrair-se critérios mais seguros para afastar comportamentos em princípio lícitos. Tem-se, assim, o tratamento típico de exercícios inadmissíveis: as posições jurídicas exercidas contra situações de confiança ou contra subjacências materiais protegidas dão ensejo ao reconhecimento de comportamentos típicos abusivos.
Como válvula de escape do sistema jurídico, o abuso do direito positivado no artigo 187 do Código Civil, na figura parcelar do tu quoque, permite afastar a posição jurídica de herdeiro em um regime de capacidade sucessória demasiadamente rígido, permitindo ao intérprete-aplicador a adequação da decisão em atenção às particularidades do caso concreto, através da síntese judicial.
6 Referências
ADJAFRE, Karine Cysne Frota; FONSÊCA, Ana Paula de Menezes Bastos Correia; MARTINS, Helena da Cunha. Indignidade Sucessória e Deserdação: análise das alterações propostas pelo Projeto de Lei n. 867, de 2011, no âmbito da Jurisprudência dos 27 Tribunais de Justiça Brasileiros. Brasília: RED UnB, n. 12, 2016. Disponível em:https://periodicos.unb.br/index.php/redunb/article/view/13516, capturado em 28.02.2020.
CHAVES, Cristiano; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. V. 7. Sucessões. São Paulo: Atlas, 2015.
CORDEIRO, António Menezes. Da boa fé no direito civil. 3. reimpr. Coimbra: Almedina, 2007. Colecção Teses.
CORDEIRO, António Menezes. Litigância de má-fé, abuso do direito de ação e culpa “in agendo”. 3. ed. aumen. e atual. à luz do Código de Processo Civil de 2013. Coimbra: Almedina, 2016.
CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil: parte geral: legitimidade, representação, prescrição, abuso do direito, colisão de direitos, tutela privada e provas. 2 reimpr. da edição de maio/2005. Coimbra: Almedina, 2011. V tomo.
DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015.
MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa-fé. In: DELGADO, Mário Luiz et al (Coords.). Questões controvertidas no novo código civil. Série Grandes Temas de Direito Privado. São Paulo: Método Editora, 2007. p. 505-544. 6 v.
MARTINS, Pedro Baptista. O abuso do direito e o ato ilícito. 3. ed. histórica, com as considerações preliminares à guisa de atualização de José da Silva Pacheco. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de Direito de Família e Sucessões ilustrado. 2 ed. São Paulo: Saraiva,2018.
PINHEIRO, Jorge Duarte. O direito das sucessões contemporâneo. 3 Reimpressão. Lisboa: AAFDL, 2015.
De acordo com Rodrigo da Cunha Pereira, legítima “é a parte da herança que deve ser destinada aos herdeiros necessários. Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança (art. 1.789, CCB). A legítima tem por objetivo proteger o círculo familiar, impedindo que o autor da herança disponha em absoluto de todo o seu patrimônio em vida ou em testamento”. (2018, p. 480). ↑
Art. 1.961. Os herdeiros necessários podem ser privados de sua legítima, ou deserdados, em todos os casos em que podem ser excluídos da sucessão.
Art. 1.962. Além das causas mencionadas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos descendentes por seus ascendentes: I – ofensa física; II – injúria grave; III – relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto; IV – desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade.
Art. 1.963. Além das causas enumeradas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos ascendentes pelos descendentes: I – ofensa física; II – injúria grave; III – relações ilícitas com a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou o da neta; IV – desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade. ↑
Para um aprofundamento no tema, sugere-se a leitura do artigo publicado pela UNB, intitulado Indignidade Sucessória e Deserdação: análise das alterações propostas pelo Projeto de Lei n. 867, de 2011, no âmbito da Jurisprudência dos 27 Tribunais de Justiça Brasileiros. (2016, n. 12). ↑
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INDIGNIDADE. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS INICIAIS. IRRESIGNAÇÃO OFERTADA PELO AUTOR. […] PRETENSÃO DO AUTOR, AVÔ PATERNO DO DE CUJUS, DE EXCLUIR A GENITORA DO FALECIDO DA SUCESSÃO DESTE. PEDIDO LASTREADO NO ABANDONO AFETIVO PERPETRADO PELA MÃE. IMPOSSIBILIDADE. SITUAÇÃO QUE NÃO INTEGRA O ROL PREVISTO NO ART. 1.814 DO CÓDIGO CIVIL. HIPÓTESES TAXATIVAS. IMPOSSIBILIDADE DE INTERPRETAÇÃOEXTENSIVA.DECLARAÇÃO DEINDIGNIDADE QUE, ADEMAIS, NÃO SE CONFUNDE COM AS HIPÓTESES DE DESERDÇÃO[…]. MANUTENÇÃO DA DECISÃO QUE SE IMPÕE. (II) PEDIDO DE CONCESSÃO DOS BENEFÍCIOS DA JUSTIÇA GRATUITA. BENESSE DEFERIDA QUANDO DO RECEBIMENTO DA INICIAL. […]. PROVIMENTO NO PONTO. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. (TJSC, AC n. 2014.084732-2, relator Des. Jorge Luis Costa Beber, julgada em 22.10.2015). ↑
Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários
I – que houverem sido autores, coautores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;
II – que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;
III – que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade. ↑
Chaves e Rosenvald afirmam sobre o tópico: “Por conta de uma compreensão finalística do tipo, que reclama intencionalidade do agente (dolo), estão peremptoriamente afastados os casos de homicídio culposo ou preterdoloso, também chamado de preterintencional”. (2015, p. 115). ↑
O crime de lesão corporal seguida de morte contra o genitor enquadra-se na prática de crime contra a honra, o que dá ensejo à indignidade do autor da conduta. O apelado foi condenado à pena de cinco anos de reclusão pela prática do crime de lesão corporal seguida de morte contra o próprio genitor. Em razão disso, um dos herdeiros pleiteou a exclusão do mesmo da sucessão hereditária por indignidade. O Juízo a quo julgou improcedente a declaração de indignidade sob o argumento de que a lesão corporal seguida de morte, por se tratar de crime preterdoloso, não se amolda à hipótese de exclusão da sucessão, restrita ao homicídio doloso. A Turma, no entanto, entendeu que não seria razoável o recebimento de herança pelo filho que se insurge contra o genitor culminando na sua morte. Por isso, reformou a sentença e enquadrou a ofensa à integridade corporal do genitor em crime contra a honra, no qual está contida a prática de injúria real, causa de exclusão do herdeiro da sucessão. (TJDF, AC n. 826797, julgada em 15.10.2014). ↑
Segue acórdão paradigmático do TJAM, que excluiu herdeira pela prática de crime contra o patrimônio: DIREITO SUCESSÓRIO E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE EXCLUSÃO DE SUCESSÃO (ART. 1.814 DO CC). INDIGNIDADE DA COMPANHEIRA DO DE CUJUS. LATROCÍNIO. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA. 1) Constatado que a ré praticou contra o seu companheiro o crime de latrocínio (roubo qualificado pelo resultado morte), em verdadeira afronta aos princípios de justiça e da moral, cabível a interpretação extensiva da disposição contida no art. 1.814 do CC, para reconhecer a sua indignidade e excluí-la da sucessão, evitando-se que a mesma venha a ser contemplada pelos bens deixados por ele. 2) Recurso provido. (AC n. 0031105- 80.2013.8.03.0001, julgada em 03.03.2015). ↑
Em sentido contrário, afirmam Chaves e Rosenvald: “A outro giro, no entanto, está peremptoriamente afastada a tentativa de enquadramento dos crimes contra a dignidade sexual como delitos contra a honra do autor da herança. Malgrado a forte repulsa moral e social causadas, não há espaço para um paralelo finalístico entre os referidos atos criminógenos, que se baseiam em fundamentos completamente distintos”. (2015, p. 119). ↑
Confira-se, a propósito o PL n. 867/2011, atualmente tramitando na Câmara dos Deputados, cuja redação proposta ao art. 1.814 é a seguinte:
Art. 1.814. Fica impedido de suceder, direta ou indiretamente, por indignidade, aquele que: I – na condição de autor, coautor ou partícipe, tenha praticado ou tentado praticar, dolosamente, qualquer ato que importe em ofensa à vida ou à dignidade sexual do autor da herança ou de seu cônjuge, companheiro ou parente, por consanguinidade ou afinidade, até o segundo grau; II – na condição de autor, coautor ou partícipe, tenha praticado ou tentado praticar, dolosamente, qualquer ato que importe em ofensa à honra, à integridade física, à liberdade ou ao patrimônio do autor da herança; III – sem justa causa, tenha abandonado ou desamparado o autor da herança, especialmente aquele que, tendo conhecimento da paternidade ou maternidade do filho, não a tenha reconhecido voluntariamente durante a menoridade civil; IV – por violência ou qualquer meio fraudulento, inibir ou obstar o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade, furtar, roubar, destruir, ocultar, falsificar ou alterar o testamento ou codicilo do falecido, incorrendo na mesma pena aquele que, mesmo não tendo sido o autor direto ou indireto de qualquer desses atos, fizer uso consciente do documento viciado.
Parágrafo único. Para efeito do disposto nos incisos I e II do caput deste artigo, incluem-se entre os atos suscetíveis de gerar declaração de indignidade quaisquer delitos dos quais tenham resultado a morte ou a restrição à liberdade do autor da herança ou de seu cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão. ↑
Nesse sentido, destaca-se o julgado do STJ: Trata-se de ação ordinária para exclusão de mulher da sucessão de tio, que apresentava problemas mentais por esclerose acentuada, anterior ao consórcio. O casamento restou anulado por vício da vontade do nubente, que também foi interditado a requerimento de uma das recorridas, bem como anulada a doação de apartamento à recorrente. Apesar de o recurso não ser conhecido pela Turma, o Tribunal a quo entendeu que, embora o efeito da coisa julgada em relação às três prestações jurisdicionais citadas reste adstrito ao art. 468 do CPC, os fundamentos contidos naquelas decisões, trazidos como prova documental, comprovam as ações e omissões da prática de maus tratos ao falecido enquanto durou o casamento, daí a previsibilidade do resultado morte. Ressaltou, ainda, que, apesar de o instituto da indignidade não comportar interpretação extensiva, o desamparo à pessoa alienada mentalmente ou com grave enfermidade comprovados (arts. 1.744, V, e 1.745, IV, ambos do CC) redunda em atentado à vida a evidenciar flagrante indignidade, o que leva à exclusão da mulher da sucessão testamentária. REsp n. 334.773-RJ, julgado em 21/5/2002. ↑
Utilizam-se as categorias “ato ilícito” para os casos do art. 186 e “ato abusivo” e “comportamento abusivo” para os casos do art. 187, ambos do Código Civil brasileiro, tão somente para facilitar a explanação das ideias. Embora se constituam realidades distintas no que se refere à sua caracterização, no direito brasileiro o abuso do direito recebeu a qualificação de ato ilícito. ↑
A partir da técnica do grupo de casos típicos utilizada na jurisprudência alemã, as decisões são reunidas em catálogos ou grupos, conforme casos em que foi similiar a ratio decidendi e, uma vez reconduzidas à cláusula geral, as soluções são passíveis de generalização, servindo para resolver outros casos em que se verificam circunstâncias idênticas ou similares: “ter-se-á, pois, progressivamente, a regulação geral (no sentido oposto ao de particular) dos casos, sem que seja necessário traçar, na lei, todas as hipóteses e suas consequências, ocorrendo, por igual, a possibilidade da constante incorporação ao sistema de novos casos (o que se tem referido como ‘ressistematização’)”. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015.p. 171. ↑
“Tu quoque terá sido a exclamação proferida por Júlio Cesar, aquando do seu assassinato, no Senado, dirigindo-se a Bruto e no momento em que se apercebeu de que também ele se encontrava entre os seus assassinos”. (MENEZES CORDEIRO, 2011, p. 327).