O REGIME JURÍDICO E A FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO DE LAJE
José Eduardo Melhen
Leonardo Estevam De Assis Zanini
INTRODUÇÃO
O Direito, por se tratar de um objeto cultural que traduz a realidade de um grupo em determinada época, vive em constante mutação para que atenda, perfeitamente, aos anseios da sociedade.
Nesse sentido, a propriedade contemporânea se tornou plural, fugindo da antiga ligação visceral que mantinha com o Código Civil para se expressar de diversas maneiras no texto (ou a partir do texto) da Constituição Federal. Além de abandonar o caráter individualista de outrora, a propriedade atualmente rompe com o conceito clássico da tangibilidade ou de acessão ao solo.
Nessa pluralização, o fato social da laje constitui um modelo de propriedade no mínimo peculiar, desvinculado do solo e sem qualquer atribuição de fração ideal (como ocorre no condomínio edilício). Ademais, em um País populoso (mais de 213 milhões de habitantes) (IBGE, 2021) e com desigualdades regionais, sociais e econômicas, a questão habitacional sempre se mostrou preocupante.
O direito real de laje é um instituto tipicamente brasileiro que pode constituir, dessa forma, profícuo instrumento de inclusão social urbana, de implementação do direito de moradia previsto no art. 6º da Constituição Federal e de acesso à propriedade.
De fato, a partir da explosão demográfica dos centros urbanos, muitas famílias procuraram soluções à margem da lei para resolver a questão fundiária, bem como a questão da moradia no âmbito urbano, instalando-se verdadeiras cidades ilegais (Lima, 2009, p. 3). Dentro desse cenário, um dos grandes problemas resultantes do adensamento urbano é a questão do déficit habitacional, resultando disso o processo de favelização, especialmente pela insuficiência de recursos para adquirir um imóvel individual e regularizado.
O presente artigo propõe, então, a discussão da laje, fato social presente no âmbito das comunidades populares, fruto da desenfreada urbanização brasileira, que criava muitos problemas jurídicos, até então não solucionados pelo ordenamento jurídico, mas acolhidos por um regramento paralelo. Assim sendo, considerando a discussão do fato social da laje e sua regulamentação pelo sistema jurídico brasileiro, propõe-se um estudo no qual a metodologia utilizada é descritiva e dedutiva, baseada fundamentalmente na investigação bibliográfica e legislativa.
1 O FATO SOCIAL DA LAJE
Com a concentração urbana e o processo histórico de exclusão, os habitantes das favelas passaram a utilizar os espaços das lajes de coberturas como unidade autônoma. O fato social da laje, prática secular em nosso País, diverge, assim, da definição técnica da laje na engenharia civil.
Transmutação conceitual semelhante ocorreu, por coincidência, com o direito real de superfície, conforme informa José Guilherme Braga Teixeira:
A superfície, como direito real, não se confunde com o sentido etimológico do vocábulo que lhe deu a denominação, indicativo da face superior de uma coisa corpórea e composto da preposição super e do substantivo facies, ambos latinos. Esse sentido, que é o da linguagem comum, corresponde ao da geometria, no qual se entende a superfície como a parte exterior dos corpos, a extensão considerada com duas dimensões: largura e comprimento. O sentido de superfície como direito real implica, além do comprimento e da largura, a altura, pois é exatamente acima do solo que crescem as plantações e se erigem as construções. (1993, p. 54-55)
A laje “[…] existe há muito tempo no plano da informalidade, é fruto da urbanização brasileira à margem dos padrões estabelecidos pela ordem jurídica, particularmente recorrente no âmbito das comunidades populares” (Zanini, 2020, p. 393).
Situações vitais e existenciais que levam as pessoas a buscar um abrigo seguro e exclusivo para si e para sua família contribuíram para que surgisse esse fato social (Ferraz, 2018, p. 17).
Como observa Cláudia Franco Corrêa (2019, p. 306):
Do significado técnico, adotado na engenharia e arquitetura, para os saberes locais em favelas, temos uma diferença que se complementa. Em tais localidades houve a apropriação do termo, empregando-se o termo laje para designar o espaço aéreo superior dos imóveis, mesmo que não haja a presença material de qualquer construção. Portanto, vender uma laje não significa a existência de qualquer construção sobre a laje fisicamente considerada. Muito comumente o que ocorre é a negociação do espaço aéreo delimitado nas dimensões de largura e comprimento do imóvel situado sob a laje. Trata-se da utilização do termo pelos moradores em favelas que se dele apropriam para resolver seus problemas, tendo em vista que, devido a pequenas extensões dos lotes habitacionais a utilização do concreto armado permitiu a única expansão viável: a vertical. Por isso é comum, ao passarmos por determinadas favelas, depararmos com o seguinte anúncio:
“vende-se uma laje”.
Do ponto de vista físico, a laje é um meio para superar, dentro da criatividade típica dos brasileiros (Amarante, 2012, p. 2), a impossibilidade de expansão horizontal das construções em tais áreas, não restando uma alternativa aos seus moradores senão verticalizar novas construções para garantir o acesso à moradia.
Em pesquisa feita nos anos 1970 na comunidade de Jacarezinho (Rio de Janeiro/RJ), o sociólogo português Boaventura Sousa Santos verificou a existência de um direito local, à margem e sem qualquer respaldo no direito oficial, utilizado para a resolução de questões locais, especialmente porque o Estado era visto como um inimigo potencial (Santos, 2002, p. 87-90; Magalhães, 2013, p. 25).
Títulos de propriedade sem validade perante o direito positivo eram reconhecidos perante a comunidade representada pela associação de moradores, a qual exercia função judiciária e registral (Ferraz, 2018, p. 36). É o chamado “direito de Pasárgada”, nome escolhido para manter em sigilo o local onde o estudo foi desenvolvido, e que, de maneira propositada, era uma alusão à utopia de Manuel Bandeira (2013, p. 99-100), cuja verdadeira identidade foi mantida em segredo até 2005.
Na favela do Jacarezinho, Boaventura Sousa Santos descobriu um direito alternativo e local, que convivia paralelamente (e muitas vezes contrariamente) ao direito oficial (Konzen, 2006, p. 173).
Esse “direito”, uma resposta da sociedade à passividade e à indiferença do Estado em não regular demandas sociais (Amarante, 2012, p. 21), valia apenas no território da favela e suas estruturas administrativa (especialmente registral), jurídica (exceto para questões criminais) e legislativa se operavam por meio das associações locais (Magalhães, 2013, p. 26; Santos, 2019, p. 42).
A dicotomia direito do morro (direito construído no meio social) versus direito do asfalto (direito legislado) demonstra o cenário de crise da concepção monista, que preconiza ser o Estado a única fonte criadora do Direito.
Fala-se, então, em pluralismo jurídico quando se admite que existam outros atores sociais e instituições como fontes jurídicas. Assim:
Existe uma situação de pluralismo jurídico sempre que no mesmo espaço geopolítico vigoram (oficialmente ou não) mais de uma ordem jurídica.
Esta pluralidade normativa pode ter uma fundamentação econômica, rácica, profissional ou outra; pode corresponder a um período de ruptura social como, por exemplo, um período de transformação revolucionária; ou pode ainda resultar, como no caso de Pasárgada, da conformação específica do conflito de classes numa área determinada da reprodução social – neste caso, a habitação. (Santos, 2002, p. 87-88)
O direito de laje nasceu, assim, da necessidade de desenvolver um diálogo entre o “direito de Pasárgada” e o “direito do asfalto”, especialmente porque as consequências decorrentes dessa situação fática ultrapassam os limites da favela com a possibilidade de encontrar óbices legais, a exemplo do princípio da taxatividade dos direitos reais, regra de natureza cogente, que não pode ser afastada por acordo entre as partes (Zanini, 2020, p. 16).
Como adverte Patrícia André de Camargo Ferraz (2018, p. 36), o não reconhecimento oficial do direito de laje representa um verdadeiro efeito colateral de fortalecimento de poderes paralelos ao Estado, como o do tráfico de drogas. Ricardo Lira (2002, p. 151) adverte, nesse sentido, que há uma norma imposta por traficantes na favela da Rocinha impondo que […] “sobre a segunda laje não haja qualquer obstáculo que possa obstruir a fuga deles”. Daí, pois, a necessidade de regulamentação legal (oficial) do instituto para mitigar, além de poderes paralelos, outras possíveis incertezas.
Partindo das premissas de que o Direito nasce do fato e ao fato se destina (Reale, 2001, p. 188) e de que, quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignorando o Direito (segundo teria afirmado o jurista francês Georges Ripert), conclui-se que o fato vem, há tempos, se vingando do Direito.
A laje, enquanto direito do morro, representa uma verdadeira forma de resistência social, na medida em que “[…] surgiu como uma manifestação contrária ao mercado imobiliário, principalmente da sociedade brasileira de baixo poder aquisitivo, que não possui mínimas condições de adquirir um imóvel formal” (Andrade, 2020, p. 172). É, portanto, “[…] o triunfo do costume contra legem” (Lôbo, 2019, p. 371).
De fato, é prática comum, em área favelizadas, que membros de uma família, pelos mais diversos motivos (desejo de proximidade, solidariedade, rateio de despesas, etc.), autorizem, entre si, a edificação de uma moradia sobreposta em imóvel já existente. Essa situação (lajearia) é popularmente conhecida pela alcunha de “puxadinho”.
Situação interessante sobre a utilização desse tipo de edificações verticalizadas é o caso daquele que, pretendendo levantar recursos financeiros (para, por exemplo, reformar a construção térrea ou qualquer outro motivo), efetua a “venda” (em verdade, uma permissão onerosa) da laje para terceiros.
É recorrente, também, a compra e a venda de laje inexistente, que se dá:
[…] quando o futuro morador do terreno de superfície vende a sua laje sem que sua casa esteja pronta, ou sem, sequer, que sua laje esteja construída.
Nesses casos o vendedor usa o dinheiro da venda da laje para construir ou dar acabamento à sua futura moradia. (Corrêa, 2015, p. 638)
Havia, nessas situações, uma total precariedade, pois, até o ano de 2016, inexistia qualquer regulamentação legal da matéria. Essas irregularidades, em grande parte dos casos, se estendiam também às construções-base, que sequer possuíam titulação de propriedade. Essa situação gerava uma tensão entre uma questão de ordem fática (sobreposição de unidades imobiliárias de possuidores distintos) e outra de ordem jurídica (a regra superficies solo cedit e a acessoriedade das unidades imobiliárias em relação ao terreno) (Lago, 2017).
Tudo isso gerava medo e instabilidade social, uma vez que, com o decorrer do tempo, a construção em questão se aprimorava, restando “a insegurança de não haver o registro próprio como um direito para o titular do direito sobre a laje, e sobre esta incerteza seguiam as partes, através de brigas de famílias, divórcios, tentativas de transmissões a terceiros, locações” (Farias; El Debs; Dias, 2020, p. 28).
Ante o secular desprezo do Poder Público a essa situação, tais problemas eram resolvidos à margem da lei pelos habitantes locais, por meio de regulamentações de fato, sem força jurídica, lavradas em associações de moradores ali constituídas.
A despeito da prática desses arranjos comunitários, prevalecia a situação fática de posse, sem qualquer efeito jurídico fora do âmbito da comunidade, um capital verdadeiro morto (Soto, 2001), uma mera expectativa de direito, um nada jurídico, um círculo vicioso de exclusão.
Por conseguinte, havia a necessidade de se criar “um instrumento capaz de se adequar à realidade, de fácil compreensão popular e com plasticidade suficiente para se amoldar às diversas situações que as ocupações irregulares apresentavam” (Ferraz, 2018, p. 18).
2 A REGULAMENTAÇÃO DA LAJE NO DIREITO BRASILEIRO
O fato da laje mereceu atenção do legislador no ano de 2016, com a edição da Medida Provisória nº 759/2016, posteriormente convertida, com diversas alterações, na Lei nº 13.465/2017 e regulamentada pelo Decreto nº 9.310/2018, para inserir a laje no rol de direito reais do art. 1.225 do Código Civil.
A normatização do fato da laje viabiliza a regularização de milhares de imóveis por todo o País, dando aos indivíduos segurança jurídica e estabilidade nas transmissões inter vivos ou mortis causa, contribuindo, dessa forma, para a pacificação social (Farias; Rosenvald, 2020, p. 685).
Conceitua-se o direito de laje como:
[…] a nova lâmina de propriedade criada através da cessão, onerosa ou gratuita, da superfície superior ou inferior de uma construção (seja ela sobre o solo ou já em laje) por parte do proprietário (ou lajeário) da mesma, para que o titular do novo direito possa manter unidade autônoma da edificação original. (Farias, El Debs, Dias, 2020, p. 30)
[…] possibilidade de criação de unidade imobiliária autônoma, com matrícula própria, para a superfície superior ou inferior da construção-base, sem atribuição de fração ideal de terreno ao titular ou participação proporcional em áreas já edificadas. (Couto, 2020, p. 14)
Como bem observado por Eduardo Cesar Silveira Marchi (2018, p. 11), o direito de laje é a maior inovação legislativa brasileira no campo dos direitos reais nos últimos cem anos. Entretanto, o autor ressalva que se trata, em verdade, de uma “reintrodução” do instituto no ordenamento jurídico brasileiro, pois as Ordenações Filipinas reconheciam, indiretamente, “[…] a possibilidade de separação horizontal da propriedade de uma casa entre ‘sobrado’ (1º andar) e o ‘sótão’ (pavimento subterrâneo ou térreo).”, sendo que o “sobrado” (Marchi, 2018, p. 15) significava “sobrado de laje”, em total coincidência com o atual instituto jurídico.
A Lei de Regularização Fundiária ultrapassou a Medida Provisória nº 759 ao ampliar a constituição da laje tanto de forma ascendente quanto descendente em relação à construção original, não importando se se trata de construção sobre o solo ou construção que já se fez em laje (art. 1.510-A do Código Civil; Farias; Rosenvald; 2020, p. 684).
A configuração jurídica da laje é, como adverte Marchi (2019, p. 12-13), ao mesmo tempo simples e complexa. Simples, porque constitui a divisão da propriedade imobiliária em planos horizontais (andares), quer no plano aéreo, quer no subsolo; complexa, porque na divisão horizontal as leis da física não se coadunam bem com as exigências do direito (apoio, acessibilidade, natureza do espaço aéreo e do subsolo). É neste contexto que a laje surge como uma revolução no direito privado brasileiro, não apenas no que diz respeito à população menos favorecida (no caso da regularização fundiária de favelas), mas também no tocante a outros negócios do ponto de vista econômico.
Em relação à denominação, em que pese ao termo “laje” não se revestir de tecnicismo (Farias; El Debs, Dias, 2020, p. 36; Marchi, 2019, p. 11; Melo, 2019, p. 389; Oliveira, 2017, p. 5; Zanini, 2020, p. 393), parece que a intenção da lei foi respeitar a origem do instituto, cuja normatização se deu para conceder roupagem jurídica aos arranjos praticados em comunidades populares para acesso à moradia (Corrêa; Menezes, 2016, p. 180). Assim sendo, a legislação denomina o instituto de forma que as pessoas comuns possam compreender com clareza e objetividade esse novo direito real (Farias; Rosenvald, 2020, p. 686).
Com respeito às opiniões divergentes, parece que as críticas à nomenclatura “laje” trazem implicitamente uma carga negativa, herança histórica de todo processo que culminou na criação dos aglomerados subnormais e na busca por essa alternativa de moradia.
Cumpre a observação de Milton Santos (2012, p. 75), no sentido de que:
[…] em uma fase de transição, as estruturas vindas do passado, ainda que parcialmente renovadas, tenderão a continuar reproduzindo o todo tal como era na fase precedente. Todavia, se cada estrutura conhece seu próprio ritmo de mudança, a estrutura do espaço é a instância social de mais lenta metamorfose e adaptação. Por isso, ela poderá continuar, por muito tempo, a reproduzir o todo anterior, a situação que se deseja eliminar.
A opção pela terminologia “laje”, assim, parece deveras acertada (Farias; El Debs, Dias, 2020, p. 35), especialmente porque observa o princípio da operabilidade, norma de regência do Código Civil, que pode (e deve) nortear todo o ordenamento jurídico brasileiro, por instrumentalizar a efetividade do Direito (Farias; Rosenvald, 2017, p. 60).
Seguindo tal espírito, o item 113 da Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 759/2016 diz que a norma foi criada para atender […] “ao propósito de adequação do Direito à realidade brasileira”.
Muito se discutia anteriormente à conversão da referida norma na Lei nº 13.465/2017, sobre a natureza jurídica da laje. Havia quem considerava que o direito de laje era um direito real sobre coisa própria, enquanto outros entendiam que se tratava de um direito real sobre coisa alheia.
Atualmente, essa discussão parece ter perdido a razão de ser, pois, a partir da redação definitiva do art. 1.510-A do Código Civil, tem-se que a laje é um direito real sobre coisa própria: “O proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo”.
No mesmo sentido, o § 9º do art. 176 da Lei de Registros Públicos, também alterada pela Lei nº 13.465/2017, que dispõe:
Art. 176. O Livro nº 2 – Registro Geral – será destinado, à matrícula dos imóveis e ao registro ou averbação dos atos relacionados no art. 167 e não atribuídos ao Livro nº 3.
[…]
9º A instituição do direito real de laje ocorrerá por meio da abertura de uma matrícula própria no registro de imóveis e por meio da averbação desse fato na matrícula da construção-base e nas matrículas de lajes anteriores, com remissão recíproca. (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017).
A laje é uma categoria nova de direito real sobre coisa própria, uma vez que constitui unidade distinta da construção-base, inclusive com acesso autônomo (§ 7º do art. 58 do Decreto nº 9.310/18), gerando matrícula própria no Registro Imobiliário.
Nessa linha, a laje não se estabelece “como um mix de propriedade comum e propriedade autônoma ou individual. Há uma propriedade individual com reflexos específicos sobre certas áreas, que servem a todo o conjunto, que terão manutenção custeada por todos os envolvidos” (lajeários e proprietários) (Farias; El Debs, Dias, 2020, p. 42).
Considerando a realidade plural das propriedades:
[…] o direito real de laje é uma espécie de direito real de propriedade sobre um espaço tridimensional que se expande a partir da laje de uma construção-base em direção ascendente ou a partir do solo dessa construção em direção subterrânea. Esse espaço tridimensional formará um poliedro, geralmente um paralelepípedo ou um cubo. A figura geométrica dependerá da formatação da sua base de partida e também dos limites impostos no ato de instituição desse direito real e das regras urbanísticas. Teoricamente, esse espaço poderá corresponder a um poliedro em forma de pirâmide ou de cone, se isso for imposto no ato de instituição ou em regras urbanísticas.
Esse espaço pode ser suspenso no ar quando o direito real for instituído sobre a laje do prédio existente no terreno ou pode ser subterrâneo quando o direito real for instituído no subsolo.
Enfim, o direito de laje é um direito real de propriedade e faculta ao seu titular todos os poderes inerentes à propriedade (usar, gozar e dispor), conforme art. 1.510-A, § 3º, do Código Civil.
Ele terá, inclusive, uma matrícula própria no Registro de Imóveis, pois, conforme o princípio registral da unitariedade ou unicidade matricial, a cada imóvel deve corresponder apenas uma matrícula. Se o direito real de laje fosse um direito real sobre coisa alheia, ele – por esse princípio registral – não poderia gerar uma matrícula própria. (Oliveira, 2017, p. 6)
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2020, p. 695) afirmam que a tridimensionalidade do direito real de laje supera o sentido apenas geométrico:
[…] porque calcada (i) em um desentranhamento da obviedade de vinculação ao solo, (ii) porque nascida dos mais diretos e gritantes anseios sociais, e (iii) porque possibilita um reconceber das titularidades muito além da dicotomia propriedade-limitação.
Aliás, a propriedade tridimensional no aspecto geométrico já havia sido reconhecida pelos condomínios edilícios, agora, alcança-se a real propriedade em três dimensões, apresentando-se como novo direito real sobre coisa própria […]. (Farias; Rosenvald, 2020, p. 695)
Tem-se um novo modelo de propriedade dotado de autonomia e de perenidade (Couto, 2020, p. 17), desvinculado da máxima romana superfícies solo cedit (Candido, 2019, p. 187) e que constitui um desafio aos dogmas tradicionais do Direito Civil, haja vista que se afasta das categorias jurídicas anteriormente disciplinadas (Farias; Rosenvald, 2020, p. 692; Oliveira, 2017, p. 7).
A intuição do direito real de laje compreende dois requisitos: a) a existência de uma construção-base, a teor da leitura do art. 1.510-A do Código Civil; e b) a autonomia funcional da laje (Couto, 2020, p. 34).
A primeira exigência demanda que a construção-base esteja regularmente averbada na matrícula do imóvel, pois ela é o meio de prova hábil a demonstrar a existência regular da edificação.
Questão polêmica levantada por Eduardo Cesar Silveira Marchi
(2019, p. 121-122) é a da desnecessidade de existência de uma construção-base para edificação da laje:
Ora, se o proprietário da construção-base é também o dono do solo, estaria ele – por hipótese – impedido, já antes de erigir a construção-base, de alienar a própria superfície, sem qualquer edificação?
[…]
Não parece, pois, de modo algum razoável impedir o proprietário do solo, desprovido de capital para edificação da construção-base, de transferir ao adquirente da superfície a possibilidade desse último, ele mesmo e não o dono do solo, com seus próprios meios, levantar a construção.
[…] parece-nos que a própria pré-existência de uma construção-base, como parece exigir a lei, não se mostraria, a rigor imprescindível, nem tampouco em termos físicos, ou seja, no âmbito da técnica da engenharia civil: imagine-se o caso, ainda que incomum, no qual a superfície ou laje superior se encontre apoiada não na construção-base, mas em duas construções contíguas ou vizinhas, pertencentes a outros donos ou ao próprio adquirente. Tal possiblidade, na técnica construtiva, é facilmente executável.
Nada impediria, assim, por consequência, nessa hipotética situação, que o dono remanescente da construção-base pudesse demoli-la, restando o terreno sem qualquer edificação em contato com o solo, ou mesmo querendo, depois, reconstruir uma nova “construção-base” – tudo se realizando sem afetar a superfície superior já transferida (que não se apoiava na “construção-base”).
Dentro da ideia de que a laje seria um novo modelo de propriedade, de caráter tridimensional, a hipótese levantada pelo autor se mostra plenamente viável e, também, se apresentaria bastante útil tanto ao proprietário do imóvel quanto ao lajeário.
No que toca à autonomia funcional, é preciso à tramitação legal dos três instrumentos que cuidaram do direito real de laje.
Em um primeiro momento, a Medida Provisória nº 759/2016 determinava expressamente a exigência de autonomia funcional e acesso independente. Entretanto, tais exigências não foram reproduzidas por ocasião da conversão do texto da MP na Lei nº 13.465/2017. Posteriormente, a regulamentação da Lei de Regularização Fundiária, por meio do Decreto nº 9.310/2018, restabeleceu apenas a exigência de acesso independente (art. 58, § 7º), nos seguintes termos: “A constituição do direito real de laje na superfície superior ou inferior da construção-base, como unidade imobiliária autônoma, somente poderá ser admitida quando as unidades imobiliárias tiverem acessos independentes”.
Parece que houve uma falta de comunicação entre o espírito e a letra da norma. Tanto a autonomia funcional quanto o acesso independente são exigências que guardam perfeita razoabilidade e proporcionalidade com o espírito de autonomia que cerca o direito real de laje. As dissonâncias apontadas entre a medida provisória, a lei e o decreto devem, portanto, ser conjugadas dentro dos aspectos fáticos e funcionais da laje, persistindo, nesse sentido, as exigências apontadas, pois “não há maior representação de independência que não seja por meio do acesso independente” (Andrade, 2020, p. 259).
A laje é instituto com peculiaridades que permitem dizer que é tipicamente brasileiro, com formatação praticamente inédita, dentro do perfil geométrico de uma propriedade tridimensional. Há institutos análogos, mas que não se confundem com a laje, senão vejamos.
A superfície consiste no “direito real de construir ou plantar em terreno alheio, por prazo determinado; a propriedade da construção ou da plantação pertencente, em caráter resolúvel, ao superficiário (propriedade superficiária) distinta da propriedade do solo” (Teixeira, 1993, p. 57).
O direito real de superfície é um instituto jurídico praticamente sem utilização no Brasil. A sua instituição representa uma forma de onerar a propriedade de um terreno com um direito real limitado (Zanini, 2016, p. 72 e 79).
Na Alemanha, o direito real de superfície (Erbbaurecht) teve ampla utilização nas demandas por moradia das classes sociais menos favorecidas, possibilitando a redução de custos decorrente da desnecessidade de compra de terrenos para construir (Zanini, 2016, p. 75).
A sobrelevação é uma espécie de superfície em segundo grau, onde o solo pertence a uma pessoa, a superfície a outra pessoa e a sobrelevação a um terceiro. É, como adverte Mello (2020, p. 76), a concessão de uma coisa que já é superficiária (concessão derivada de uma propriedade superficiária). Também não se confunde com a laje, novo direito cuja autonomia e extensão é mais ampla (Zanini, 2020, p. 393).
Apesar de o direito de sobrelevação ser muito utilizado em países europeus (Itália, Espanha, Portugal, Suíça, etc.), a realidade brasileira é diversa, não parecendo que esse modelo seja utilizado nesses países para solucionar o déficit habitacional, como ocorre no Brasil (Melo, 2019, p. 393-394).
Por essa razão, não parece adequado simplesmente importar modelos jurídicos aplicados em outra realidade social, cuja eficácia interna será bastante duvidosa (Corrêa, 2012, p. 237).
Igualmente, a laje não se confunde com o condomínio edilício, pois cria uma relação mais complexa e densa entre a propriedade exclusiva e a propriedade comum (Farias; Rosenvald, 2020, p. 687).
Por derradeiro, o condomínio urbano simples diz respeito à propriedade horizontal em casas e cômodos (art. 69 da Lei nº 13.465/2017). É a popular “casa dos fundos”, instituo que também não se equipara à laje.
3 PERSPECTIVAS DO DIREITO REAL DE LAJE
Tinha razão Eça de Queirós (2012, p. 121) quando afirmou que “a eterna repetição das coisas é a eterna repetição dos males”. Se admitirmos que a propriedade seja uma mentalidade (Grossi, 2006, p. 31), perceberá que a Lei de Regularização Fundiária só terá o condão de mudar o cenário dos aglomerados subnormais urbanos se houver um novo olhar sobre a questão subjacente à elaboração da norma. Em outras palavras, deve haver uma mentalidade prospectiva e otimista.
De toda sorte, o Direito brasileiro já avançou bastante ao reconhecer e positivar uma questão que se encontrava jogada debaixo do tapete há mais de cem anos. A positivação da laje, por tudo o que se falou, é uma questão que, se bem trabalhada, poderá alterar o estado de coisas das favelas brasileiras.
Milton Santos (2012, p. 74) foi emblemático ao afirmar que até agora o espaço foi utilizado, em quase toda parte, com veículo do capital e instrumento da desigualdade social, mas uma função diametralmente oposta poderá ser-lhe encontrada. Acreditamos, aliás, ser impossível chegar a uma sociedade mais igualitária sem reformular a organização do seu espaço. […] A mudança da estrutura espacial apresenta-se, pois, como um imperativo.
O objetivo a perseguir poderá ser resumido em duas grandes linhas de ação. Em primeiro lugar, será preciso dar a todos os homens o direito a um emprego e uma acessibilidade igual a todos os bens e serviços considerados essenciais. Em segundo lugar […] precisa-se, igualmente, de uma política de ordenamento do espaço. Sua preocupação essencial deverá ser a eliminação das injunções que se criaram por meio de uma organização capitalista do espaço regional e urbano e que contribui para agravar ou perpetuar a separação dos homens em classes sociais.
É preciso, portanto, romper esse círculo vicioso. A ausência de ações públicas para reverter essa situação tornará letra morta à positivação do direito real de laje. O mesmo Estado que permitiu a criação da favela tem o dever de nela adentrar para transformá-la em uma cidade formal, extirpando dali todo estigma de segregação e a dominação de instituições paralelas, como as milícias e o tráfico de drogas.
Como observa Denis Lerrer Rosenfield (2008, p. 81): “A tarefa estatal deveria consistir em fazer valer o direito de propriedade em seu sentido pleno nesses lugares em que as normas propriamente estatais não regem”.
Em locais onde o ordenamento estatal não tem eficácia, o direito real de laje não fará diferença, pois as regras urbanísticas, edilícias e de posturas são, de fato, ditadas por esses grupos paralelos que regulam o acesso à moradia. Por esse motivo, a real finalidade da instalação das Unidades de Polícia Pacificadora nas comunidades não é erradicar, por completo, o tráfico de drogas (o que seria impossível), mas recuperar a área do domínio paralelo (Castro, 2011, p. 257).
Quanto à eficácia da laje, algumas críticas foram apontadas quanto à exigência de regularidade formal da construção-base onde se edificou a laje. Em crítica à Lei de Regularização Fundiária, Correia, Moura e Motta (2019, p. 133) afirmam que a Reurb viabilizou a constituição da laje somente sobre propriedades formais. Caso em que não havendo a propriedade formal, será impossível de reconhecer o direito de laje. Mais uma vez problemática das políticas de regularização fundiária no país, é crer que a moradia se resolve com a titulação de propriedade. A própria Constituição já deixa claro que não coaduna mais com esta visão. Condicionar a laje à pré-existência de uma propriedade é excluir do seu alcance seu próprio nascedouro (favelas e comunidades) marcado pela informalidade. […] A Reurb criou um “direito de laje dos ricos” onde somente quem tem a titulação do imóvel poderá instituir o direito real”.
No mesmo sentido, Austréia Magalhães Candido (2019, p. 187-188) menciona que mais uma vez, como fruto de nossa cultura política, os inúmeros conflitos relativos à crise habitacional foram julgados passíveis de resolução por meio de uma canetada, resultando na criação de institutos jurídicos desprovidos de conexão com a realidade.
O direito de laje representa esta visão limitada, uma vez que tem como pressuposto a regularidade da ocupação do edifício-base. Optou o legislador por uma regularização fundiária em sentido inverso, de cima para baixo, sem se atentar aos verdadeiros problemas que afetam a população das áreas que almejava alcançar.
Ainda, Cláudia Franco Corrêa (2019, p. 310) aponta que “é justamente aí que reside a dificuldade de aplicabilidade do direito de laje da lei aos casos encontrados na realidade das favelas”.
Não obstante a questão apontada pelos mencionados doutrinadores parece que a mesma poderá ser superada por meio da aplicação do Enunciado nº 627 do CJF, o qual dispõe que “o direito real de laje é passível de usucapião”.
A jurisprudência também já sinaliza reconhecer a possibilidade de usucapião da laje, tendo ocorrido, em 14 de julho de 2017, decisão pioneira nesse sentido no Juízo de Direito da 26ª Vara Cível da Comarca de Recife/PE (Brasil, 2017).
Considerando-se que em boa parte das favelas a construção-base se encontra irregular, melhor seria alterar o texto do Código Civil para regulamentar as situações de posse da laje, conforme sugestão de Marco Aurélio Bezerra de Melo e Claudia Franco Corrêa (Melo 2019, p. 394-395).
Outra questão que poderia comprometer a eficácia social do direito real de laje é a determinação contida no art. 1.510-B do Código Civil:
É expressamente vedado ao titular da laje prejudicar com obras novas ou com falta de reparação a segurança, a linha arquitetônica ou o arranjo estético do edifício, observadas as posturas previstas em legislação local. (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017).
A respeito, Cláudia Franco Corrêa (2019, p. 310-311) diz que o […] dilema estaria no fato de a lei pormenorizar formalidades inexistentes em favelas. Complexidades burocráticas que não ecoam em “comunidades”, como o exercício do direito de preferência quando o titular de uma laje quiser aliená-la.
[…]
Ainda, merece destaque o disposto no art. 1.510-B do Código Civil, introduzido pela Lei nº 13.465 de 2017 no que se refere à vedação de que a nova edificação prejudique com obras novas “a linha arquitetônica ou o arranjo estético do edifício”. Trata-se de vedação em descompasso com a realidade das comunidades nas quais o direito de laje é exercido na sua essência.
Discorda-se de tal opinião na medida em que o cumprimento da lei não pode representar um “dilema”. Ora, se o que se busca, com a Lei de Regularização Fundiária, é inserir a favela no âmbito da formalidade, reconhecendo que o local é uma cidade com movimento próprio, nada mais óbvio que impor a adequação dela à lei.
Sem regras de posturas e outras exigências legais, o estado de coisas não irá se alterar. A favela continuará a ser uma “comunidade”, um mundo à parte, um local sem regras, onde prevalece a informalidade. Ao pensar dessa forma, o direito da laje será letra morta, prevalecendo apenas o fato da laje.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A dinâmica da urbanização brasileira ocorreu de maneira desordenada, onde o crescimento da população foi inversamente proporcional ao acesso à moradia digna. Criou-se, dessa forma, um quadro perverso de exclusão social que culminou no surgimento das favelas.
Essas comunidades, totalmente precárias e despidas de políticas públicas adequadas, possuem ordens jurídicas paralelas, a fim atender a demandas que, via de regra, deveria ser de competência estatal. Os seus habitantes permanecem, assim, submetidos a poderes locais que suprem os de um Estado omisso que não os alcança por completo, criando uma espécie de “meio cidadão”.
Nesse sentido, vários arranjos são criados, dentro da informalidade, para suprir a questão do direto fundamental à moradia. Nas mazelas habitacionais urbanas, a lógica espacial demanda a verticalização de moradias.
No asfalto, erguem-se prédios; no morro, constroem-se lajes.
Com o agravamento contínuo do processo de favelização, veio à tona a questão fundiária, como forma de resgate da dignidade de seus habitantes e, também, em atendimento aos preceitos legais e constitucionais que dispunham sobre políticas públicas voltadas à função social da propriedade e à função social da cidade.
A laje, na forma como foi regulada, não encontra precedentes em outros países e, nesse sentido, é uma realidade tipicamente brasileira, com características próprias que não permitem analogia com o direito alienígena.
Após um silêncio histórico de muitas décadas, a laje foi objeto de positivação no final do ano de 2016, decorrendo disso questões ligadas à adequação e à efetividade da norma em face da realidade social dos aglomerados subnormais.
Tudo indica que o direito real de laje é um instituto prospectivo. A matéria de fundo, que culminou na normatização da laje, é secular e a sua informalidade é praticamente cultural, razão pela qual não é possível imaginar que em um curto espaço haja uma solução para a questão fundiária das favelas.
É preciso, porém, mudar a mentalidade e abandonar o pessimismo quanto ao tema, afastando os receios e encarando os fatos com coragem. As cidades nunca serão perfeitas porque constitui, em última análise, um retrato social de seus habitantes, que não são perfeitos. Apesar disso, cumpre a tarefa de sempre buscar melhorá-las.
A favela é um problema que não se restringe ao seu âmbito territorial e aos seus habitantes. É um problema de toda a sociedade, a qual deverá ser protagonista desse assunto, pois, do contrário, pagará um preço caro se as coisas permanecerem inalteradas.
Quanto à normatização da laje, apesar de haver várias críticas relacionadas à opção do legislador em priorizar a titulação da posse e não o acesso à moradia digna, essa parece ter sido uma escolha acertada. Nos países que garantem o acesso à propriedade aos seus cidadãos impera o verdadeiro espírito do Estado de Direito e a sociedade apresenta crescimento econômico e padrão de vida digno aos seus habitantes.
Por conseguinte, a regularização fundiária das favelas possibilitará que a precariedade da posse, que constitui um capital morto, seja substituída pela propriedade, dando visibilidade ao que era invisível, de modo a eliminar a dicotomia histórica entre morro e asfalto.
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