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O REGIME DE SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS E A SUCESSÃO HEREDITÁRIA NA JURISPRUDÊNCIA DO STJ

 

O REGIME DE SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS E A SUCESSÃO HEREDITÁRIA NA JURISPRUDÊNCIA DO STJ

Thiago Luís Santos Sombra

No final do ano de 2014, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reascendeu o debate em torno da forma como se realizará a sucessão legítima quando os cônjuges forem casados mediante o regime da separação convencional de bens. A Corte apreciaria, novamente, no Recurso Especial 1.472.945/RJ, Relator o Ministro Villas Bôas Cueva (BRASIL, 2014) [1], os deslindes da aplicação do controverso inciso I do art. 1.829 do Código Civil (BRASIL, 2002), que, em outubro e dezembro de 2009, respectivamente no julgamento dos Recursos Especiais 1.111.095/RJ (BRASIL, 2010), Relator para o acórdão Ministro Fernando Gonçalves, e 992.749/MS, Relatora a Ministra Nancy Andrigui (BRASIL, 2009), havia recebido da Terceira e Quarta Turmas uma interpretação diversa.

Naquela época, a Terceira Turma, mesmo órgão fracionário do aresto em exame, era composta por outros ministros, os quais votaram unanimemente com a relatora, Ministra Nancy Andrigui, no sentido de que o art. 1.829, I, do Código Civil se aplicava também ao regime da separação convencional de bens para impedir a participação do cônjuge sobrevivente.

A despeito da completa reformulação da Terceira Turma em menos de cinco anos, o julgamento do mesmo tema com a adoção do entendimento oposto evidencia um sério problema de método, sistematicidade e perenidade da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça na solução de temas complexos.

O cerne da controvérsia examinada neste artigo, que, por sinal, data da entrada em vigor do Código Civil, circunscreve-se à interpretação do inciso I do art. 1.829, que, em princípio, exclui expressamente apenas os casados pelo regime da comunhão universal, separação obrigatória de bens e comunhão parcial, se não houver bens particulares.

Além de um confronto entre as duas grandes vertentes doutrinárias e jurisprudenciais a respeito do tema, ainda merecerá particular análise a disparidade existente entre aquilo que parte dos autores pretende que seja a interpretação racional [2] do citado preceito normativo do Código Civil de 2002 e, de outro lado, aquilo que decorre da conjugação de critérios normativos capazes de promover a subsunção à norma, sem ultrapassar os parâmetros impostos ao intérprete.

O único ponto de consenso entre doutrina e jurisprudência quanto ao tema situa-se na péssima técnica legislativa utilizada na redação do inciso I do art. 1.829 do Código Civil de 2002, visto que ao longo dos últimos 13 anos nenhum prognóstico definitivo foi construído. Mais do que uma controvérsia de índole estritamente dogmática, a jurisprudência do STJ contempla uma percepção diversa do nível de proteção que se almejou conferir ao cônjuge sobrevivente após o Código Civil de 2002 (CARVALHO, 1995, p. 15; ZARIAS, 2010, p. 63). E exatamente com enfoque neste prisma é que se proporá um confronto dialético de argumentos para dirimir a divergência existente no âmbito do próprio Superior Tribunal de Justiça, que, em tão exíguo lapso temporal, revelou a instabilidade com que tem exercido a missão constitucional de uniformizar a jurisprudência nacional.

Os primeiros aspectos enfrentados pelo Ministro Villas Bôas Cueva foram exatamente a natureza e os limites de conteúdo do pacto antenupcial, ou seja, sob que circunstâncias a autonomia da vontade do casal, ao definir um regime de bens diverso da comunhão parcial, teria o condão de repercutir em período posterior ao término do casamento, por meio da morte.

Em resposta à corrente doutrinária capitaneada por Miguel Reale (2005, p. 230), que sustentava a aplicação do inciso I do art. 1.829 do Código Civil de 2002 também ao regime da separação convencional, enquanto expressão da autonomia privada de um ato jurídico perfeito celebrado em vida, o Ministro-Relator (BRASIL, 2014) destacou que os efeitos do pacto antenupcial seriam restritos à vigência do casamento, de sorte que não afetaria a forma como se realizaria a sucessão.

Em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, intitulado O Cônjuge no Novo Código Civil (2003b), Miguel Reale sustenta o posicionamento de que o cônjuge supérstite, casado sob o regime da separação convencional de bens, não poderia ser considerado herdeiro necessário, em concorrência com os descendentes. Como um dos argumentos, mencionava Reale (2003a, p. 63) que o entendimento contrário implicaria uma assimetria com a disciplina do art. 1.687 do Código Civil e a escolha feita em vida pelo casal.

A autonomia da vontade era a principal força motriz da objeção de Reale, e uma de suas principais preocupações quanto a esta linha de interpretação decorria da possibilidade de que, com a morte de um dos cônjuges casado sob o regime da separação convencional, parte de seu patrimônio se transferisse ao cônjuge supérstite e, posteriormente, aos filhos exclusivos deste ou até a um novo cônjuge. Coincidentemente, o exemplo citado envolvia a mulher como cônjuge sobrevivente e seus filhos unilaterais. Segundo Reale, se esta hipótese fosse admitida, o patrimônio se dispersaria em direção a um tronco que não guardaria qualquer vínculo de parentesco com o de cujus, de maneira que para evitar esta situação melhor seria respeitar a autonomia da vontade externada no pacto antenupcial.

De fato, se trata de hipótese complexa, de difícil equacionamento, que mereceria uma solução de lege ferenda, distante de avaliações preconcebidas, tal como proposto pelo próprio Miguel Reale, mediante a supressão da expressão “obrigatória” do inciso I do art. 1.829. Não obstante a preocupação acerca da comunicação do patrimônio com alguém estranho aos vínculos de parentesco – os herdeiros unilaterais do cônjuge -, o fato é que as razões suscitadas por Reale despertam dúvidas. A rigor, nenhum dado prévio indica que o legislador não pudesse ter feito uma escolha no sentido de primar pela maior proteção patrimonial do cônjuge sobrevivente, tenha ele filhos unilaterais ou não (MILAGRES, 2013, p. 300).

Ocorre, todavia, que, acaso fosse acolhida a proposta de alteração legislativa aventada por Miguel Reale [3], fatalmente se consumaria a deturpação de uma importante premissa do direito das sucessões, a saber, aquela em que quem não é meeiro mereceria ser beneficiado como herdeiro.

Desde o Código Civil de 1916 (BRASIL, 1916), o legislador sempre primou por estabelecer um benefício capaz de compensar a não condição de meeiro do cônjuge sobrevivente (HIRONAKA, 2004, p. 435). Para tanto, basta observar a parte final do inciso I do art. 1.829, no que promove a exclusão do cônjuge supérstite, em caso de inexistência de bens particulares na comunhão parcial, uma vez que, em tal situação, o sobrevivente seria meeiro dos bens comuns.

É imprescindível, pois, que seja observada uma equanimidade de tratamento quanto à coerência interna da sucessão legítima, em caso de bens particulares no regime da comunhão parcial, e aquela sucessão decorrente do regime da separação convencional de bens. A rigor, isto se explica pelo fato de o cônjuge sobrevivente ser meeiro do total de bens deixado pelo de cujus, na primeira e na última hipótese do inciso I do art. 1.829, e, logo, estar devidamente amparado.

Na comunhão universal forma-se um patrimônio único e indiviso do casal, composto de todos os direitos e obrigações adquiridos de forma gratuita ou onerosa, móveis ou imóveis, de modo que cada cônjuge tem direito à metade ideal dos bens. Alguns bens, todavia, podem ser excepcionados e não integrar a comunhão de bens, conforme o art. 1.668 do Código Civil (cláusula de incomunicabilidade). Este estado de comunhão perdura até a dissolução do casamento e tudo o que um deles adquirir antes ou no curso da relação se comunica ao outro.

No regime da comunhão parcial ficam excluídos os bens anteriores ao casamento e comunicam-se aqueles adquiridos de forma onerosa posteriormente. Trata-se de uma efetiva comunhão dos bens adquiridos onerosamente no curso do casamento, de modo que existem os bens do marido, da esposa e os comuns.

Por outro lado, pelo regime da separação legal/obrigatória de bens – na modalidade convencional ou legal/obrigatório -, cada cônjuge conserva em seu patrimônio pessoal os bens que possuía antes de se casar. No regime da separação de bens convencional, cuja escolha dever ser realizada por pacto antenupcial, admite-se que os cônjuges disponham sobre a gradação da comunicação de bens, ao passo que no regime da separação obrigatória, por força do Enunciado nº 377 do Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 1964, p. 377), os bens se comunicam.

Embora o Recurso Especial 992.749/MS, Relatora a Ministra Nancy Andrigui (BRASIL, 2009), houvesse manifestado uma compreensão diversa, o Enunciado nº 270 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (BRASIL, 2003), citado no acórdão do Recurso Especial 1.472.945, Relator o Ministro Villas Bôas Cueva (BRASIL, 2014), já havia enfrentado o tema e ambicionado estabelecer doravante parâmetros razoáveis de interpretação.

Enquanto substrato da linha de raciocínio exposta, não se pode olvidar, tal como bem consignado no voto do Ministro Villas Bôas Cueva (BRASIL, 2014), “a indisfarçável intenção do legislador de proteger o cônjuge supérstite no Código Civil de 2002“, ao elevar o cônjuge à condição de herdeiro necessário (art. 1.845). Não há, a rigor, outra razão pela qual os regimes da comunhão universal e da separação obrigatória foram excluídos da sucessão. A inspiração provém do Codice Civile italiano, que, nos arts. 536, 540 e 542, atribui ao cônjuge sobrevivente a condição de herdeiro necessário, independentemente do regime de bens, com a variação apenas do montante a receber, em conformidade com a qualidade do herdeiro com quem concorre.

Clóvis Beviláqua (1953, p. 59-60) também compartilhava esta preocupação à época do Código Civil de 1916, pois defendia que “o cônjuge supérstite deveria fazer parte das duas primeiras classes de sucessíveis, salvo se, pelo regime do casamento, lhe coubesse levantar a metade do patrimônio da família porque, então, já estaria, economicamente, amparado“. E a preocupação de Clóvis à época decorria exatamente do fato de que, naquele momento histórico do país, a situação patrimonial do cônjuge sobrevivente, se mulher, era temerária (BARBIERI, 2000; MARQUES; MELO, 2008). Embora efetivamente não se identifique uma relação de parentesco entre cônjuges, o clamor por elevar o nível de proteção da esfera patrimonial de cada um deles consubstancia premissa antiga do legislador brasileiro (ZARIAS, 2010, p. 65).

É com base neste anseio antigo, por suposto, que o acórdão da relatoria do Ministro Villas Bôas Cueva promoveu uma pertinente aplicação do inciso I do art. 1.829 do Código Civil.

Em grande medida, a postura dos juízes em negar aplicabilidade ao art. 1.829, I, do CC/02 tem forte relação com as observações de Habermas, pois revela escolhas morais e políticas revestidas de uma tentativa de atribuir a própria e pessoal racionalidade jurídica ao tema.

Referências            

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[1] “RECURSO ESPECIAL. DIREITO DAS SUCESSÕES. INVENTÁRIO E PARTILHA. REGIME DE BENS. SEPARAÇÃO CONVENCIONAL. PACTO ANTENUPCIAL POR ESCRITURA PÚBLICA. CÔNJUGE SOBREVIVENTE. CONCORRÊNCIA NA SUCESSÃO HEREDITÁRIA COM DESCENDENTES. CONDIÇÃO DE HERDEIRO. RECONHECIMENTO. EXEGESE DO ART. 1.829, I, DO CC/02. AVANÇO NO CAMPO SUCESSÓRIO DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL.

  1. O art. 1.829, I, do Código Civil de 2002 confere ao cônjuge casado sob a égide do regime de separação convencional a condição de herdeiro necessário, que concorre com os descendentes do falecido, independentemente do período de duração do casamento, com vistas a garantir-lhe o mínimo necessário para uma sobrevivência digna.
  2. O intuito de plena comunhão de vida entre os cônjuges (art. 1.511 do Código Civil) conduziu o legislador a incluir o cônjuge sobrevivente no rol dos herdeiros necessários (art. 1.845), o que reflete irrefutável avanço do Código Civil de 2002 no campo sucessório, à luz do princípio da vedação ao retrocesso social.
  3. O pacto antenupcial celebrado no regime de separação convencional somente dispõe acerca da incomunicabilidade de bens e o seu modo de administração no curso do casamento, não produzindo efeitos após a morte, por inexistir no ordenamento pátrio previsão de ultratividade do regime patrimonial apta a emprestar eficácia póstuma ao regime matrimonial.
  4. O fato gerador no direito sucessório é a morte de um dos cônjuges, e não, como cediço no direito de família, a vida em comum. As situações, porquanto distintas, não comportam tratamento homogêneo, à luz do princípio da especificidade, motivo pelo qual a intransmissibilidade patrimonial não se perpetua post mortem.
  5. O concurso hereditário na separação convencional impõe-se como norma de ordem pública, sendo nula qualquer convenção em sentido contrário, especialmente porque o referido regime não foi arrolado como exceção à regra da concorrência posta no art. 1.829, I, do Código Civil.
  6. O regime da separação convencional de bens escolhido livremente pelos nubentes à luz do princípio da autonomia de vontade (por meio do pacto antenupcial) não se confunde com o regime da separação legal ou obrigatória de bens, que é imposto de forma cogente pela legislação (art. 1.641 do Código Civil), no qual efetivamente não há concorrência do cônjuge com o descendente.
  7. Aplicação da máxima de hermenêutica de que não pode o intérprete restringir onde a lei não excepcionou, sob pena de violação do dogma da separação dos Poderes (art. 2º da Constituição Federal de 1988).
  8. O novo Código Civil, ao ampliar os direitos do cônjuge sobrevivente, assegurou ao casado pela comunhão parcial cota na herança dos bens particulares, ainda que os únicos deixados pelo falecido, direito que pelas mesmas razões deve ser conferido ao casado pela separação convencional, cujo patrimônio é, inexoravelmente, composto somente por acervo particular.
  1. Recurso especial não provido.” (REsp 1.472.945/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, j. 23.10.2014, DJe 19.11.2014)

[2] Quanto ao ponto, afigura-se essencial compreender, a partir de Habermas, que a compreensão deontológica do direito deve considerar que, “em primeiro lugar, o discurso jurídico não pode mover-se autossuficientemente num universo hermeticamente fechado do direito vigente: precisa manter-se aberto a argumentos de outras procedências, especialmente argumentos pragmáticos, éticos e morais que transparecem no processo de legislação e são enfeixados na pretensão de legitimidade de normas do direito. Em segundo lugar, condições comunicativas da argumentação, que tornam possível uma formação imparcial do juízo” (2003, p. 287).

[3] Influenciado por Reale, o Deputado Federal Max Rosenmann (PMDB/PR) apresentou o PL nº 1.792/07, que almejava excluir o cônjuge sobrevivente da condição de herdeiro necessário, se casado com o falecido no regime de separação de bens, obrigatório ou convencional, mediante supressão da expressão “obrigatória”. O Projeto de Lei, no entanto, foi arquivado. De se observar que, posteriormente, a Deputada Federal Janete Pietá (PT/SP) apresentou o PL nº 1.878/01, com o intuito de promover alteração no inciso I do art. 1.829 do Código Civil, todavia, o objetivo era apenas esclarecer que o cônjuge sobrevivente, em regime de comunhão parcial de bens, concorrerá com os descendentes somente em relação aos bens particulares. Ou seja, nada mencionou a respeito do termo “separação obrigatória”; ao contrário, o repetiu. O PL foi arquivado pelo encerramento da legislatura em 2014.