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Doutrina

O REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS E A INOCORRÊNCIA DE COMUNICAÇÃO DOS PROVENTOS DO TRABALHO PESSOAL DO CÔNJUGE: A NECESSIDADE DE NOVOS PARÂMETROS HERMENÊUTICOS

O REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS E A INOCORRÊNCIA DE COMUNICAÇÃO DOS PROVENTOS DO TRABALHO PESSOAL DO CÔNJUGE: A NECESSIDADE DE NOVOS PARÂMETROS HERMENÊUTICOS

O REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS E A INOCORRÊNCIA DE COMUNICAÇÃO DOS PROVENTOS DO TRABALHO PESSOAL DO CÔNJUGE: A NECESSIDADE DE NOVOS PARÂMETROS HERMENÊUTICOS

Leandro Barbosa

 

O Poder Constituinte Originário considerou a família como uma instituição que é a base da sociedade, devendo receber especial proteção do Estado, conforme a inteligência da norma jurídica do art. 226 da Constituição Federal de 1988. Em face de tal disposição, a Lei n.º 10.406/2002 (Código Civil) buscou regulamentar os mais diversos aspectos que são atinentes à família visando a permitir que ela cumpra com a função social e sobretudo constitucional de promover a edificação da dignidade humana de seus membros, além de atenuar os possíveis litígios e problemas que possam surgir em tal seara.

Conquanto a família seja constituída por um complexo acervo de relações e vínculos afetivos que lhe caracteriza por pura essência – e que, sem dúvidas, é seu aspecto vital do ponto de vista do paradigma pós-oitocentista –, torna-se de imprescindível importância para a convivência digna dos membros da família a presença de uma base patrimonial mínima que assegure condições para satisfazer as necessidades básicas da vida cotidiana, justificando a grande preocupação do legislador infraconstitucional em disciplinar, por meio do Código Civil, uma série de regime de bens a fim de permitir uma maior possibilidade de escolha por parte dos nubentes no que tange ao substrato patrimonial do matrimônio.

No geral, seja no casamento, seja na união estável, se porventura não for pactuado um regime específico de bens – ou se nula ou ineficaz a convenção –, irá vigorar o regime de comunhão parcial, na dicção do art. 1.640 da Lei n.º 10.406/2002. Aliás, é de conhecimento público e notório que a maioria dos casais constitui matrimônio sem a prévia estipulação de pacto antenupcial, de modo que o referido regime não só constitui a regra pelo Código Civil de 2002 como também costuma ser o mais escolhido na prática pelos brasileiros.

Segundo o regramento estabelecido pelo regime de comunhão parcial de bens, nos termos do art. 1.658 do aludido diploma, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal na constância do casamento. Ou seja, via de regra, aqueles bens que forem adquiridos durante a vigência do matrimônio irão integrar o patrimônio comum de ambos consortes, enquanto os outros bens que existiam previamente à celebração do casamento continuarão a fazer parte do acervo particular dos nubentes, de forma que, num eventual divórcio que venha a ocorrer, estes não serão objeto da partilha posteriormente efetuada.

A experiência cotidiana revela que é de praxe que os principais proventos responsáveis pela subsistência familiar sejam fruto do trabalho ou da aposentadoria de ambos os cônjuges, ou mesmo de apenas um deles – enquanto o outro cônjuge ou companheiro, em tais situações, costuma ficar encarregado pelas tarefas domésticas e pelo cuidado dos filhos. Inclusive, ainda que tanto o marido quanto a esposa trabalhem, é comum que não haja uma rígida separação entre seus patrimônios, haja vista que, com o passar dos anos, eles passam a compartilhar não apenas uma vida em conjunto, mas, sobretudo, um patrimônio cuja administração deve ser exercida visando a satisfazer os interesses de pelo menos duas pessoas.

Ocorre que, pela literalidade dos incisos VI e VII do art. 1.659 do Código Civil[1], os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge, além das pensões, aposentadorias e afins, são, a rigor, do ponto de vista léxico, valores excluídos da comunhão, levando o intérprete ao entendimento inicial de que tais quantias integram apenas a esfera particular daquele que efetivamente trabalha, ou ainda, que percebe o benefício da aposentadoria, e não os aquestos propriamente ditos, como ocorre pela dinâmica hodierna da comunhão parcial.

Por consequência do raciocínio que foi desenvolvido acima, é possível verificar que a extinção da sociedade conjugal por meio da separação (ou do divórcio, para aqueles que defendem que o instituto da separação judicial não existe mais no ordenamento jurídico) ou do falecimento de um dos consortes faria com que os salários, pensões e semelhantes, que foram percebidos durante a vigência do matrimônio, não integrassem a meação do outro consorte – e vice-versa, embora, por óbvio, isso não impeça que sejam convencionados eventuais alimentos em favor da ex-esposa ou do ex-marido.

A sistemática pretendida pelo legislador traduz a ideia de que os frutos oriundos do trabalho pessoal dos cônjuges, por serem resultantes, via de regra, do esforço exclusivo de cada um deles, não devem integrar o patrimônio do casal, haja vista que seria, em certa medida e sob tal ótica, injusto que um dos consortes se beneficiasse pelo labor do outro – não obstante, na prática, os casais possam, em comum acordo, dividir os ganhos visando a melhor administrar as despesas da família e mesmo suas necessidades particulares.

A grande e real problemática envolvida é que, conforme explicado acima, a maioria dos proventos necessários para a subsistência da família dimanam do trabalho e, em muitos casos, apenas um dos nubentes de fato exerce o labor, ao passo que o outro não desempenha nenhuma atividade remunerada. Ou seja, caso o principal mantenedor venha a falecer – ou mesmo decida se divorciar –, a totalidade das quantias que foram percebidas a título de salário durante o período do casamento – e que compõem, por vezes, a integralidade do patrimônio usado para o sustento – não integrará a meação do outro consorte, tendo em vista que o inciso VI do art. 1.659 do Código Civil parece ter excluído tais valores da comunhão.

Quando se trata do falecimento, ainda é possível que o cônjuge supérstite possa se valer das regras do Direito Sucessório e do droit de saisine para fins de herdar parte dos referidos valores em concorrência com os descendentes ou ascendentes, se, ao tempo da morte, não havia separação. Por consequência, ainda que em menor quantum que aquele que existiria na meação, a viúva ou o viúvo poderão receber parte dos proventos salariais do de cujus. Já na hipótese do divórcio, não haveria um desfecho semelhante, sendo que tal caso apresenta circunstâncias mais sensíveis que precisam ser analisadas.

Basta pensar numa hipotética – e, aliás, corriqueira – situação em que o marido é o responsável pelo trabalho remunerado, enquanto a esposa apenas cuida das atividades domésticas e dos filhos. Ora, se porventura o aludido casal, após, suponha-se, dez anos de casamento, vier a se divorciar, e os únicos valores existentes durante o matrimônio forem advindos do labor do marido, é possível perceber que a esposa, além de provavelmente perder a moradia, não levará consigo nenhum tipo de proveito material relevante que tenha se originado ao longo desses dez anos de convivência. Trata-se de uma hipótese em que se torna nítida a enorme vulnerabilidade daquele consorte que, embora tenha desempenhado um papel fundamental para a estruturação da família, não exercia nenhuma atividade remunerada, nem possuiria condições de prover o sustento próprio tão abruptamente.

É em razão de situações análogas a esta que tanto a doutrina quanto a jurisprudência começaram a adotar novos parâmetros hermenêuticos para interpretar a regra do inciso VI do art. 1.659 do Código Civil, haja vista que, pela sistemática proposta pelo legislador, o regime de comunhão parcial de bens converter-se-ia, na prática cotidiana, numa espécie de separação convencional nos casos em nenhum ou poucos bens foram adquiridos durante a vigência do casamento, de modo que, além de desvirtuar o regime da comunhão parcial, ainda concorreria para aumentar e agravar a vulnerabilidade do cônjuge que nunca exerceu nenhum tipo de atividade remunerada, seja subordinada, seja autônoma.

Através de um raciocínio via reductio ad absurdum, se de fato os salários e proventos afins não se comunicassem para fins de constituição do acervo patrimonial comum, então os bens materiais e imateriais adquiridos com tais valores também não integrariam os aquestos em razão do fenômeno da sub-rogação objetiva[2]. Entretanto, tal consequência extremada da literalidade do inciso VI do art. 1.659 do Códex não coaduna com a mentalidade da jurisprudência, nem tampouco com a natureza do regime de bens em análise – até mesmo porque, se assim o fosse, seria extremamente difícil ocorrer alguma partilha após o divórcio, ou verificar a existência de meação após o falecimento do outro consorte.

Sobre o tema, o Ministro Ruy Rosado Aguiar do Superior Tribunal de Justiça traçou algumas considerações importantes no REsp 421.801/RS, caminhando para o entendimento de que, na verdade, os salários e proventos percebidos durante a vigência do matrimônio – assim como os eventuais bens adquiridos por meio destes – comunicam-se entre os cônjuges quando se trata de regime de comunhão parcial de bens, e que a regra do inciso VI do art. 1.659 do Código Civil deve ser interpretada no sentido de que  tais valores apenas deixam de formar o patrimônio comum após o término da sociedade conjugal, pois, do contrário, ocorreriam os já mencionados absurdos, como destacou o Ministro em seu voto:

(…) na grande maioria dos casais brasileiros, os bens se resumem na renda mensal familiar ganha pelos cônjuges, do seu trabalho ou indústria. Se retirados tais frutos da comunhão, esse regime praticamente desaparece, e não acredito que tal fosse o propósito perseguido pela lei, nem corresponde à consciência média da nossa sociedade, onde se tem que a renda do salário é para o sustento da família e para investir nas suas necessidades, tais como a aquisição de casa própria, de automóvel, etc. Se houver a separação, esses bens serão apenas daquele que trabalha.

A própria sistemática do Código Civil permite inferir que a interpretação adequada é a de que os salários, a princípio, comunicam-se entre os consortes, pois: “o art. 1.659, VI, deve ser interpretado em consonância com o art. 1.660, V.” (DINIZ, 2010, p. 171). A regra do inciso V do art. 1.660[3], aliás, é um bom ponto de partida para a realização do processo hermenêutico aludido, porquanto permite incluir a percepção salarial dentro do padrão legal que caracteriza a formação dos aquestos no regime de comunhão parcial de bens.

Sob a égide da despatrimonialização e da constitucionalização das relações jurídico-privadas, há de se salientar que o sentido de contribuição para constituição de um patrimônio comum não deve estar adstrito ao cunho pecuniário, pois todo o vínculo afetivo que se desenvolve no âmbito familiar não só serve de base como também impulsiona indiretamente os ganhos da família e não pode ser desconsiderado em prol de um raciocínio quantitativo do patrimônio, de modo que é possível verificar que deve ocorrer uma presunção absoluta de esforço patrimonial solidário ainda que, efetivamente, apenas um dos consortes exercessem atividade remunerada:

O  regime de comunicação patrimonial presume a concorrência dos cônjuges em desenvolver um esforço matrimonial solidário, que empreendem para levar à frente os propósitos do casamento e a viabilizar a aquisição dos bens e das riquezas necessárias para a subsistência e conforto da família constituída. Essa presunção não admite prova em contrário, e pouco importa tenha um dos cônjuges vertido uma contribuição econômica e o outro se dedicado às tarefas da casa e dos filhos. (MADALENO, 2017, p. 283).

No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo já ratificou o entendimento de que essa presunção é jure et de jure, isto é, não admite prova em contrário mesmo que o outro consorte pudesse demonstrar que foi o único responsável por prover o sustento da família em sentido financeiro e patrimonial:

APELAÇÃO. RECURSO. REDISTRIBUIÇÃO PELA RESOLUÇÃO OE Nº 737/2016 E PORTARIA Nº 02/2017 DO TJSP. PARTILHA DE BENS. PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA AFASTADA. PARTILHA. CASAMENTO CONTRAÍDO SOB O REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. PRESUNÇÃO ABSOLUTA DE ESFORÇO COMUM. RELEVÂNCIA DA CONTRIBUIÇÃO IMATERIAL PARA A FORMAÇÃO DO ACERVO PATRIMONIAL. PRECEDENTES.

O fato de o marido ter adquirido bens antes do casamento não elimina o direito de a mulher incluir na comunhão as parcelas pagas, durante ele, a título de financiamento. O contrato do veículo foi firmado em nome da mãe do requerido. Prova estritamente documental. Sentença reformada em parte. RECURSO DESPROVIDO.” (TJ-SP 40013235220138260604 SP 4001323-52.2013.8.26.0604, Relator: Beretta da Silveira, Data de Julgamento: 15/03/2018, 31ª Câmara Extraordinária de Direito Privado, Data de Publicação: 16/03/2018)

O Superior Tribunal de Justiça também já apresentou, em algum de seus julgados, raciocínios semelhantes no sentido de que a regra do inciso VI do art. 1.659 do Código Civil deve ser interpretada com certo temperamento, pois, a rigor, se percebidos os salários durante a vigência do matrimônio, eles se comunicam e formam o patrimônio comum do casal, e tal dinâmica só não ocorre – e seria esta a inteligência do dispositivo, segundo grande parte dos precedentes da Corte Superior – após o término da sociedade conjugal, como assentou o Ministro Luís Felipe Salomão em seu voto no REsp n.º 1143642/SP:

RECURSO ESPECIAL Nº 1.143.642 – SP (2009/0107388-8) RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO RECORRENTE : THEREZA LUSACE ADVOGADO : CÉLIA MARIA ANDERAOS E OUTRO (S) RECORRIDO : IRACEMA CAMPILONGO KONO E OUTRO ADVOGADO : WELLENGTON CARLOS DE CAMPOS E OUTRO (S) PROCESSO CIVIL. PARTILHA. COMUNICABILIDADE DOS SALDOS BANCÁRIOS ADVINDOS DE VERBA TRABALHISTA E APOSENTADORIA. INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 1.658 E 1.659, VI, DO CC E ART. 5º DA LEI N. 9.278/1996.

No regime de comunhão parcial ou universal de bens, o direito ao recebimento dos proventos não se comunica ao fim do casamento, mas, ao serem tais verbas percebidas por um dos cônjuges na constância do matrimônio, transmudam-se em bem comum, mesmo que não tenham sido utilizadas na aquisição de qualquer bem móvel ou imóvel (arts. 1.658 e 1.659, VI, do Código Civil).

O mesmo raciocínio é aplicado à situação em que o fato gerador dos proventos e a sua reclamação judicial ocorrem durante a vigência do vínculo conjugal, independentemente do momento em que efetivamente percebidos, tornando-se, assim, suscetíveis de partilha. Tal entendimento decorre da ideia de frutos percipiendos, vale dizer, aqueles que deveriam ter sido colhidos, mas não o foram. Precedentes.

Na hipótese, os saldos bancários originam-se de economias advindas de salários e aposentadoria do falecido, sendo imprescindível que o montante apurado seja partilhado com a companheira no tocante ao período de vigência do vínculo conjugal.

Reconsideração da decisão de fl. 357, tornando-a sem efeito, em juízo de retratação.

Recurso especial provido.”

(STJ – REsp: 1143642 SP 2009/0107388-8, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMAO, DJ 17/04/2015)

No mesmo seguinte foi a ratio decidendi empregada pela Corte Superior nos seguintes julgados que envolve o debate sobre a partilha de valores de natureza trabalhista quando estes foram percebidos durante a vigência do casamento, e, em ambos casos, foram proferidos acórdãos no sentido de que tais quantias integram o patrimônio comum para fins de partilha, não obstante a inteligência do inciso VI do art. 1.659 do Código Civil pareça dizer o inverso:

AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO (ART. 544 DO CPC) – SEPARAÇÃO LITIGIOSA – REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS – PARTILHA – COMUNICABILIDADE DOS IMÓVEIS – SÚMULA N. 7 DO STJ – VERBAS TRABALHISTAS SURGIDAS NA CONSTÂNCIA DO CASAMENTO – DIREITO À MEAÇÃO – PRECEDENTES DO STJ – RECURSO DO CÔNJUGE VARÃO, AUTOR DA AÇÃO, DESPROVIDO.

[…]

A indenização trabalhista correspondente a direitos adquiridos na constância do casamento integra o acervo patrimonial partilhável. Precedentes.

[…]

Agravo regimental desprovido.” (AgRg no AREsp 1152⁄DF, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 07⁄05⁄2013, DJe 13⁄05⁄2013)

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. REGIME DE BENS DO CASAMENTO. COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. CRÉDITOS TRABALHISTAS ORIGINADOS NA CONSTÂNCIA DO CASAMENTO. COMUNICABILIDADE.

A jurisprudência da Terceira Turma é firme no sentido de que integra a comunhão a indenização trabalhista correspondente a direitos adquiridos na constância do casamento.

AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.”

(AgRg no REsp 1250046⁄SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 06⁄11⁄2012, DJe 13⁄11⁄2012)

Para além dos aludidos precedentes, um dos julgados mais brilhantes e memoráveis sobre o tema contou com a relatoria da Ministra Nancy Andrighi, oportunidade na qual o Superior Tribunal de Justiça ressaltou que a feitura de uma interpretação literal do inciso VI do art. 1.659 do Código Civil contrariaria a natureza jurídica do regime de comunhão parcial de bens, aviltando não somente os aspectos patrimoniais da família, mas, sobretudo, a subsistência do cônjuge supérstite – ou mesmo do divorciado – nas ocasiões em que este não exercia nenhum tipo de trabalho que lhe permitisse algum poder aquisitivo, como é possível perceber pela leitura da ementa do referido precedente:

DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. DIVÓRCIO DIRETO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. MULTA PREVISTA NO ART. 538, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPC, AFASTADA. PARTILHA DE BENS. CRÉDITO RESULTANTE DE EXECUÇÃO. AUSÊNCIA DE INTERESSE RECURSAL. EVENTUAIS CRÉDITOS DECORRENTES DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS PROPOSTA POR UM DOS CÔNJUGES EM FACE DE TERCEIRO. INCOMUNICABILIDADE. CRÉDITOS TRABALHISTAS. COMUNICABILIDADE. FIXAÇÃO DOS ALIMENTOS. RAZOABILIDADE NA FIXAÇÃO. COMPROVAÇÃO DA NECESSIDADE DE QUEM OS PLEITEIA E DA POSSIBILIDADE DE QUEM OS PRESTA.

[…]

– A tônica sob a qual se erige o regime matrimonial da comunhão parcial de bens, de que entram no patrimônio do casal os acréscimos advindos da vida em comum, por constituírem frutos da estreita colaboração que se estabelece entre marido e mulher, encontra sua essência definida no art. 1.660, incs. IV e V, do CC⁄02.

– A interpretação harmônica dos arts. 1.659, inc. VI, e 1.660, inc. V, do CC⁄02, permite concluir que, os valores obtidos por qualquer um dos cônjuges, a título de retribuição pelo trabalho que desenvolvem, integram o patrimônio do casal tão logo percebidos. Isto é, tratando-se de percepção de salário, este ingressa mensalmente no patrimônio comum, prestigiando-se, dessa forma, o esforço comum.

– “É difícil precisar o momento exato em que os valores deixam de ser proventos do trabalho e passam a ser bens comuns, volatizados para atender às necessidades do lar conjugal.”

– Por tudo isso, o entendimento que melhor se coaduna com a essência do regime da comunhão parcial de bens, no que se refere aos direitos trabalhistas perseguidos por um dos cônjuges em ação judicial, é aquele que estabelece sua comunicabilidade, desde o momento em que pleiteados. Assim o é porque o “fato gerador” de tais créditos ocorre no momento em que se dá o desrespeito, pelo empregador, aos direitos do empregado, fazendo surgir uma pretensão resistida.

– Sob esse contexto, se os acréscimos laborais tivessem sido pagos à época em que nascidos os respectivos direitos, não haveria dúvida acerca da sua comunicação entre os cônjuges, não se justificando tratamento desigual apenas por uma questão temporal imposta pelos trâmites legais a que está sujeito um processo perante o Poder Judiciário.

– Para que o ganho salarial insira-se no monte-partível é necessário, portanto, que o cônjuge tenha exercido determinada atividade laborativa e adquirido direito de retribuição pelo trabalho desenvolvido, na constância do casamento. Se um dos cônjuges efetivamente a exerceu e, pleiteando os direitos dela decorrentes, não lhe foram reconhecidas as vantagens daí advindas, tendo que buscar a via judicial, a sentença que as reconhece é declaratória, fazendo retroagir, seus efeitos, à época em que proposta a ação. O direito, por conseguinte, já lhe pertencia, ou seja, já havia ingressado na esfera de seu patrimônio, e, portanto, integrado os bens comuns do casal.

[…]

– No que se refere aos alimentos arbitrados em favor da recorrente, ao analisar a prova e definir como ocorreram os fatos, que se tornam imutáveis nesta sede especial, constou do acórdão a conclusão, pautada no binômio necessidades da alimentanda e possibilidades do alimentante, bem como esquadrinhando residual capacidade para o trabalho da recorrente, que o percentual de 25{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} sobre os proventos auferidos pelo recorrido junto ao INSS coaduna-se com a realidade social vivenciada pelas partes, de modo que não merece reparo, nesse aspecto, o julgado. Recurso especial parcialmente provido.”

(REsp 1024169⁄RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13⁄04⁄2010, DJe 28⁄04⁄2010)

No entanto, é importante salientar que, apesar de existirem inúmeros julgados no sentido de que os salários, benefícios oriundos de aposentadoria, e proventos afins, quando percebidos durante a vigência do matrimônio, comunicam-se no regime de comunhão parcial de bens para a formação do patrimônio comum, há outros Tribunais de Justiça que possuem um entendimento mais atrelado à literalidade do Código Civil, de modo que não existe ainda uma jurisprudência harmônica e pacífica sobre o tema, haja vista que alguns acórdãos são proferidos no sentido de reconhecer as verbas salariais como parte integrante dos aquestos, enquanto outros, ao revés, afastam valores de tal jaez durante o momento da partilha.

De toda sorte, enquanto não advém um posicionamento definitivo sobre o tema, é de suma importância que os operadores do direito busquem consagrar no caso concreto a proteção que o Poder Constituinte Originário outorgou para as famílias – sobretudo naquelas hipóteses em que o término do casamento, seja pela morte, seja pelo divórcio, é marcado pelo fato de que apenas um dos cônjuges era responsável por prover o sustento financeiro do núcleo familiar, de modo que a jurisprudência deve atenuar as consequências nefastas que podem recair sobre a esfera do cônjuge mais vulnerável e que não desempenhava trabalho remunerado à época.

A interpretação que mais coaduna com a dignidade humana, por conseguinte, é aquela que reconhece a comunicação das verbas salariais e proventos de semelhante natureza para fins da formação do patrimônio comum do casal, muito embora isso não signifique que se deva prescindir da análise de cada caso concreto, haja vista que é de suma importância que o julgador examine a problemática sob a ótica do princípio da afetividade, de modo a averiguar, com base nas circunstâncias existentes, se o cônjuge ou companheiro contribuiu de alguma forma – mesmo que não seja em termos financeiros – para a edificação do núcleo familiar, pois, em tais casos, principalmente ao se constatar empiricamente que grande parte do acervo da família é constituído por valores oriundos do trabalho, não pareceria razoável afastar o consorte da partilha de bens e quantias que, ao fim e ao cabo, contaram com algum tipo de contribuição direta ou indireta de sua parte.

 

Referências Bibliográficas

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: volume 5. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

MADALENO, Rolf. Manual de Direito de Família. Forense, 2017.

PELUSO, Cezar. Código Civil Comentado. 14ª ed. São Paulo: Manole, 2020.

 

 

[1] Art. 1.659. Excluem-se da comunhão:

(…)

VI – os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge;

VII – as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes

[2] No mesmo sentido: “A previsão da exclusão dos proventos do trabalho de cada cônjuge, indicada no inciso VI, produz situação que se antagoniza com a própria essência do regime. Ora, se os rendimentos do trabalho não se comunicam, os bens sub-rogados desses rendimentos também não se comunicam, conforme o inciso II, e, por conseguinte, praticamente nada se comunica nesse regime, no entendimento de que a grande maioria dos cônjuges vive dos rendimentos do seu trabalho. A comunhão parcial de bens tem em vista comunicar todos os bens adquiridos durante o casamento a título oneroso, sendo que aqueles adquiridos com frutos do trabalho contêm essa onerosidade aquisitiva.” (PELUSO, 2020, p. 1.885).

[3] Art. 1.660. Entram na comunhão:

(…)

V – os frutos dos bens comuns, ou dos particulares de cada cônjuge, percebidos na constância do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão.