O RECURSO DE APELAÇÃO E O SISTEMA DE PRECLUSÃO
Camila Victorazzi Martta
No dia 19 de maio do corrente ano (2022) aconteceu o evento “Elas no Processo e os Recursos”, organizado pelo coletivo Elas no Processo, com o apoio da Escola da Advocacia Geral da União, do Projeto Quartas Excepcionais e do GEPROC, totalmente on-line, gratuito e contou com mais de quatrocentas inscrições. Em quatro painéis, foram abordados temas basilares, envolvendo os recursos ordinários e meios de impugnação às decisões judiciais; recursos e tecnologias; recursos e precedentes e recursos aos tribunais superiores.
Tive a honra e a alegria de participar do primeiro painel, ocasião em que abordei, de forma sintética, o recurso de apelação e o sistema de preclusão no nosso ordenamento processual civil. Como o tema é amplo e de grande debate na doutrina, surgiu a ideia de complementar a fala a partir deste ensaio, mencionando alguns acórdãos que motivaram a explanação do tema.
A preclusão é um fenômeno que ocorre dentro do processo, ou seja, no próprio procedimento, que, relativamente às partes, limita a sua atividade processual, em razão da faculdade de agir, frente a determinado ato ou decisão, impugnável ou não. A inércia da parte, a depender do tipo de matéria objeto da decisão judicial, pode lhe causar prejuízos em razão da preclusão temporal.
Um diferencial da preclusão frente a outros institutos (por exemplo, a coisa julgada) é que ocorre no próprio processo, mais de uma vez até, enquanto a coisa julgada opera efeitos que se estendem no mundo jurídico e em outros processos. Nota-se, entretanto, que tais institutos, ao fim e ao cabo, possuem a mesma finalidade, qual seja, a de proporcionar a segurança jurídica às relações processuais.
Deve-se pontuar que a preclusão limita o agir das partes no processo, impondo ordem e celeridade ao procedimento, sobretudo para buscar êxito à duração razoável do processo[1]. Concorda-se com a doutrina de Teresa Arruda Alvim no sentido de que a preclusão é a espinha dorsal do processo, no que concerne ao seu andamento, pois é o instituto por meio do qual, no processo, superam-se os estágios procedimentais, e não deixa de ser também um instrumento propulsionador da dinâmica processual[2].
Fredie Didier Jr define preclusão como a perda de uma situação jurídica ativa processual: seja a perda de poder processual das partes, seja a perda de um poder do juiz[3].
O processo é uma marcha para frente[4]. São atos processuais sucessivos, ordenados e destinados ao fim que é a prestação jurisdicional por meio da sentença. Nesse sentido, a preclusão é extremamente pertinente, porque, de certa maneira, concretiza, no desenvolvimento da marcha processual, a efetividade da prestação jurisdicional. Da mesma forma, concede aos sujeitos do processo a segurança jurídica necessária no sentido de que os atos não impugnados no momento oportuno não poderão mais ser discutidos no processo. Dito de outra forma serve a preclusão para inviabilizar a eternalização da lide e a sua completa desordem[5]. No mesmo sentido, a doutrina de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira:
Se o processo não obedecesse a uma ordem determinada, cada ato devendo ser praticado a seu devido tempo e lugar, fácil entender que o litígio desembocaria numa disputa desordenada, sem limites ou garantias para as partes, prevalecendo ou podendo prevalecer a arbitrariedade e a parcialidade do órgão judicial ou a chicana do adversário. Não se trata, porém, apenas de ordenar, mas também de disciplinar o poder do juiz e, nessa perspectiva, o formalismo processual atua como garantia de liberdade contra o arbítrio dos órgãos que exercem o poder do Estado[6].
É possível afirmar também que a preclusão está diretamente relacionada, na maioria das vezes, às decisões judiciais. Sabe-se, todavia, que há momentos processuais em que, por exemplo, o autor deve expor os fatos e fundamentos acerca da causa de pedir e pedido. Com o intuito de equilibrar o processo, é na contestação que o réu exerce o direito de refutar os fatos e o direito do autor, como exemplo o chamamento de terceiros ao processo se faz nesta ocasião, sob pena de preclusão. Outros eventos processuais também servem para exemplificar: a indicação de assistente técnico, apresentação de rol de testemunhas, inversão de ônus de prova, reconhecimento de prescrição ou decadência. Se não o fizer, precluso estará qualquer debate acerca da matéria. Com efeito, observa-se que a preclusão se opera em diversos momentos processuais, seja pelos atos das partes ou do ato do próprio juízo, por meio das decisões judiciais. Por via reflexa, conclui-se que não há processo sem preclusão[7].
Quanto às espécies, a preclusão pode ser temporal, quando ocorrer em razão da passagem da oportunidade processual em que deveria ter sido praticado o ato[8]. Nitidamente é possível exemplificar a partir da perda de um prazo peremptório. A preclusão pode ser lógica quando em razão da prática anterior de um ato incompatível, com o exercício da faculdade/poder processual[9], a exemplo, o pedido de produção de prova de um fato já confessado; ou indicar determinado bem à penhora e requerer a invalidação da constrição. Por último, a preclusão pode ser consumativa, nesse caso, ocorre quando já se praticou o ato processual pretendido, não sendo possível repeti-lo, melhora-lo ou corrigi-lo[10], como por exemplo o protocolo adiantado, antes do prazo fatal, da contestação ou de razões e contrarrazões recursais, não podendo a parte “arrumar” nos dias restantes ao final do prazo.
É bastante comum ouvir que matérias de ordem pública não precluem e podem ser arguidas em qualquer momento do processo e grau de jurisdição. Todavia, alerta-se que esse jargão está incompleto. Seria mais completo e melhor dito que a matéria de ordem pública pode ser arguida em qualquer fase processual e grau de jurisdição, desde que já não tenha sido objeto de decisão. Aí sim, o raciocínio estaria completo. Se nunca fora objeto de decisão em nenhuma fase processual ou grau de jurisdição, a matéria de ordem pública que deveria ter sido examinada pode ser arguida a qualquer momento.
De acordo com o artigo 1.009, § 1º do CPC, todas as situações não enumeradas no artigo 1.015 do CPC, ou seja, não podem ser objeto de recurso de agravo de instrumento, terão a preclusão diferida para o momento das preliminares de razões ou contrarrazões de apelo. Serão, portanto, matérias de preliminares de mérito do recurso de apelação e precluirão, se não forem arguidas.
E se for matéria de ordem pública? Faz-se o mesmo raciocínio. Se não for objeto de agravo de instrumento, necessariamente deverá ser arguida como preliminar nas razões ou contrarrazões de apelo. Mesmo sendo matéria de ordem pública, deverá ser observado esse mesmo raciocínio.
Note-se que, didaticamente, é possível comparar a preclusão com um farol de luz amarela intermitente, em que cada decisão judicial proferida no iter procedimental altera sua intensidade, justamente para alertar as partes que algo precisa ser feito. Nesse sentido, havendo decisão judicial sobre qualquer matéria, seja de ordem pública ou de ordem privada, a parte deverá atentar para o recurso pertinente cabível, sob pena de haver a preclusão. Caso contrário, a funcionalidade da preclusão fica prejudicada.
Foi possível identificar em alguns julgados de tribunais de justiça o manejo de recurso de apelação pretendendo a revisão de matéria de ordem pública decidida em primeira instância, sem o recurso pertinente no momento oportuno.
Do Tribunal de Justiça do Paraná, conforme apontado na ementa de julgamento de apelação cível número 0026150-53.2017.8.16.0017[11], houve o pedido de reexame de matéria envolvendo inversão de ônus de prova, matéria típica do artigo 1.015, inciso XI do CPC, que poderia ter sido objeto de agravo de instrumento, mas que não o foi. Logo, mesmo sendo uma questão de ordem pública, observa-se a ocorrência da preclusão.
Dito de outra forma, a estabilização própria às matérias que não são objeto de agravo de instrumento não se concretizou neste caso, porque a parte poderia ter manejado o recurso pertinente, mas não o fez.
Outro exemplo vem do Tribunal de Justiça mineiro, também em sede de julgamento de apelação cível número 1.0024.14.344830-6/001[12] em que foi possível identificar que a parte se absteve de recorrer da decisão que indeferiu a integração de litisconsórcio ao processo, para arguir como fundamento de cerceamento de defesa em sede de apelo, sem êxito, portanto em razão da preclusão, mesmo sendo matéria de ordem pública.
Do Tribunal de Justiça gaúcho ilustra-se com o julgamento da apelação cível número 5001699-97.2015.8.21.0019,[13] em que ainda foi possível identificar a ressalva feita pela julgadora acerca da operabilidade da preclusão ante a inércia da parte mesmo sendo matéria de ordem pública, corroborando com a ideia do presente ensaio.
Por último, obviamente sem esgotar a matéria, mas apenas para não tornar cansativa a leitura, o último caso vem do Tribunal de Justiça catarinense com o julgamento da apelação cível número 0313983-04.2015.8.24.0008[14] com a mesma temática, vindo ao encontro dos demais já relatados.
Ressalva-se, apenas, no tocante ao tipo de preclusão. Embora os dois últimos julgados a denominam de preclusão consumativa, entende-se, salvo melhor juízo, em se tratando de inércia da parte, ou seja, quando simplesmente deixou de praticar o ato de interpor o recurso pertinente no momento oportuno, a preclusão que se opera é a temporal, no mesmo sentido da doutrina de Teresa Arruda Alvim[15].
Conclui-se o presente texto com o intuito de alertar sobre a importância e a atenção que os advogados devem ter com o instituto da preclusão, mesmo em sede de matéria de ordem pública, pois, havendo qualquer decisão no processo, é preciso identificar primeiro se é possível interposição de agravo de instrumento, seja por fundamento no artigo 1.015 do CPC, ou em razão da urgência, conforme precedente do STJ. Se não se encaixar em nenhuma das hipóteses anteriores, necessariamente deverá ser objeto de preliminares de razões ou contrarrazões de apelação. Caso contrário, a preclusão irá incidir, a fim de cumprir sua missão dentro do processo.
[1] ALVES, Luciana D. Beltrão. SILVEIRA, Bruna Braga da. Breves Considerações acerca das recorribilidades das decisões interlocutórias no CPC/15: Preclusão, agravo de instrumento e apelação. In CORTEZ, Renata. FREITAS, Rosalina. DOURADO, Sabrina (Coord.). Temas Relevantes de Direito Processual Civil: Elas Escrevem. Recife: Armador, 2016. p.303-319.
[2] ALVIM, Teresa Arruda. Os Agravos no CPC de 2015. 5.ed. Curitiba: Editora Direito Contemporâneo, 2021. p. 382.
[3] DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol.1. 22 ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 530.
[4] Idem.
[5] RUBIN, Fernando. A Redução da técnica preclusiva no novo CPC: balanço de retrocessos e avanços no período 2010-2015. In RUBIN, Fernando. REICHELT, Luis Alberto. (org). Grandes Temas do Novo Código de Processo Civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 90.
[6] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O Formalismo-valorativo no confronto com o formalismo excessivo. In Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. n. 137, p. 8.
[7] DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol.1. 22 ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 531.
[8] ALVIM, Teresa Arruda. Os Agravos no CPC de 2015. 5.ed. Curitiba: Editora Direito Contemporâneo, 2021. p. 386.
[9] DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol.1. 22 ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 534.
[10] Idem. p.537.
[11] APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. INSCRIÇÃO INDEVIDA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. RECURSO INTERPOSTO PELO DEMANDADO. INSURGÊNCIA QUANTO À INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. MATÉRIA DECIDIDA NO SANEAMENTO, SEM RECURSO OPORTUNO. PRECLUSÃO. NÃO CONHECIMENTO.AUSÊNCIA DE PROVAS DA EXIGIBILIDADE DO DÉBITO. ÔNUS DO REQUERIDO DE COMPROVAR FATO IMPEDITIVO, MODIFICATIVO OU EXTINTIVO DO DIREITO DA AUTORA QUE NÃO RESTOU SATISFEITO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO DEMANDADO. INSCRIÇÃO INDEVIDA DO NOME DA REQUERENTE EM CADASTRO RESTRITIVO DE CRÉDITO. DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO. DANO MORAL “IN RE IPSA”. “QUANTUM” INDENIZATÓRIO. PLEITO DE REDUÇÃO. NÃO ACOLHIMENTO. VALOR FIXADO DE ACORDO COM AS PARTICULARIDADES DO CASO CONCRETO.HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS FIXADOS SOBRE O VALOR DA CONDENAÇÃO. ART. 85, §2º, DO CPC/2015. IMPOSSIBILIDADE, NO CASO, DE ADOTAR O CRITÉRIO DE APRECIAÇÃO EQUITATIVA. PREQUESTIONAMENTO. DESNECESSIDADE DE MENÇÃO EXPRESSA A DISPOSITIVOS LEGAIS SE AS QUESTÕES FORAM DEVIDAMENTE ANALISADAS. SENTENÇA MANTIDA. FIXAÇÃO DE HONORÁRIOS RECURSAIS.APELAÇÃO CÍVEL PARCIALMENTE CONHECIDA E, NA EXTENSÃO, DESPROVIDA. (TJPR – 10ª C.Cível – 0026150-53.2017.8.16.0017 – Maringá – Rel.: DESEMBARGADOR GUILHERME FREIRE DE BARROS TEIXEIRA – J. 15.05.2021).
[12] APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS – PEDIDO DE DENUNCIAÇÃO À LIDE EXTEMPORÂNEO – PRECLUSÃO – INDEFERIMENTO – AUSÊNCIA DE RECURSO – CERCEAMENTO DE DEFESA NÃO CONFIGURADO – RECURSO DESPROVIDO. Não há que se falar em cerceamento de defesa quando a parte ré requer a denunciação à lide de forma extemporânea, dando ensejo ao seu indeferimento e tal decisão resta irrecorrida. Recurso desprovido. (TJMG – Apelação Cível 1.0024.14.344830-6/001, Relator(a): Des.(a) Amorim Siqueira, 9ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 12/11/2019, publicação da súmula em 27/11/2019).
[13] PELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. ILEGITIMIDADE PASSIVA REJEITADA. A ILEGITIMIDADE ‘AD CAUSAM’ TRATA-SE DE MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA, PASSÍVEL DE ANÁLISE A QUALQUER TEMPO E EM QUALQUER GRAU DE JURISDIÇÃO. NO ENTANTO, SE DECIDIDA EM DESPACHO SANEADOR ESTÁ SUJEITA A RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. CASO NÃO IMPUGNADA NO PRAZO LEGAL, OPERA-SE A PRECLUSÃO CONSUMATIVA (ART. 507 DO CPC). PRECEDENTES DO STJ E DESTA CORTE. APELAÇÃO NÃO CONHECIDA. Apelação Cível, Nº 50016999720158210019, Décima Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ana Beatriz Iser, Julgado em: 14-04-2021).
[14] AÇÃO DE COBRANÇA. SEGURO DE VIDA EM GRUPO. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA. INSURGÊNCIA DA RÉ. REITERADA A TESE DE ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. PREJUDICIAL ANALISADA EM DECISÃO INTERLOCUTÓRIA IRRECORRIDA. PRECLUSÃO CONSUMATIVA. EXEGESE DO ART. 507 DO CPC. IMPOSSIBILIDADE DE REDISCUSSÃO, AINDA QUE SE TRATE DE MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E DESTA CORTE. NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO. “Ainda que se trate de questão de ordem pública, a existência de decisão anterior a respeito da legitimidade da parte impede nova apreciação do tema, ante a ocorrência da preclusão consumativa.”(STJ, AgInt no AREsp 1185653/RJ, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/04/2018, DJe 13/04/2018). (…). (TJSC, Apelação n. 0313983-04.2015.8.24.0008, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Haidée Denise Grin, Sétima Câmara de Direito Civil, j. 15-04-2021).
[15] ALVIM, Teresa Arruda. Os Agravos no CPC de 2015. 5.ed. Curitiba: Editora Direito Contemporâneo, 2021. p. 386.