O QUE É E COMO FUNCIONA O INSTRUMENTO DE TOMADA DE DECISÃO APOIADA
Thiago Helton
A tomada de decisão apoiada é um instrumento de proteção jurídica criado por lei para assegurar às pessoas com deficiência maior segurança e autonomia com o apoio que for necessário para a prática de determinados atos de sua vida civil.
Muitos operadores do direito ainda não fazem a mínima ideia do que seja ou de como funciona a tomada de decisão apoiada.
Trata-se de um instituto recém criado na legislação brasileira, mas que já se apresenta como um diferencial de solução jurídica para aqueles colegas advogados mais ousados – sobretudo para os profissionais que militam no Direito de Família e atuam com Direitos das Pessoas com Deficiência.
São raras as doutrinas que tratam do tema, sendo certo que o próprio Poder Judiciário ainda está começando amadurecer a aplicação da tomada de decisão apoiada.
Por isso, fiquem atentos a cada linha deste artigo! Nele, explico em detalhes tudo que os colegas advogados, operadores do direito e sociedade interessada precisam aprender sobre esse tema tão nobre e que traz importantes repercussões na vida das pessoas com deficiência.
O que é a tomada de decisão apoiada?
A tomada de decisão apoiada é um instrumento criado por lei no Brasil para ajudar a cumprir os ideais de máxima autonomia e independência da pessoa com deficiência. Por meio dela, é garantida ao indivíduo nessa qualidade a proteção jurídica necessária para a prática dos atos negociais e patrimoniais, sem restringir a sua capacidade civil.
A ideia aqui é simples, meus caros leitores: viabilizar o protagonismo da pessoa com deficiência na tomada de suas decisões, permitindo que possa receber apoio de pessoas da sua elevada confiança para confirmar ou validar determinados atos.
Imagine só um jovem com síndrome de down, que tenha recebido todos os cuidados e estímulos necessários para ter uma vida adulta independente. Ele pode perfeitamente ser bem resolvido e manifestar sua própria vontade. Mas, pode ser que necessite de algum apoio para interpretar cláusulas contratuais e celebrar determinados negócios.
Eis que surge a tomada de decisão apoiada como solução. Mais branda do que a curatela, por exemplo, garante a segurança jurídica necessária tanto para a pessoa com deficiência, quanto para o terceiro que celebra negócios com ela.
Surgimento da tomada de decisão apoiada
Inicialmente, para falar sobre a tomada de decisão apoiada, é necessário um contexto da legislação. O Brasil aprovou, por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo. Os documentos foram assinados em Nova York, em 30 de março de 2007.
O referido Tratado Internacional de Direitos Humanos passou a produzir efeitos no plano interno por meio do Decreto 6.949/2009, com força normativa constitucional, por inteligência do art. 5º, §3º da CR/1988. O propósito passou a ser de promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente.
Nesse sentido, o artigo 12 do referido diploma nos apresenta a razão de existência do instituto da tomada de decisão apoiada. Vale a pena reproduzir na íntegra para que vocês entendam a verdadeira essência dessa importante ferramenta.
Reconhecimento igual perante a lei
Artigo 12 do Decreto 6.949/2009:
“1. Os Estados Partes reafirmam que as pessoas com deficiência têm o direito de ser reconhecidas em qualquer lugar como pessoas perante a lei.
Os Estados Partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida.
Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal.
Os Estados Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa.
Os Estados Partes, sujeitos ao disposto neste Artigo, tomarão todas as medidas apropriadas e efetivas para assegurar às pessoas com deficiência o igual direito de possuir ou herdar bens, de controlar as próprias finanças e de ter igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, e assegurarão que as pessoas com deficiência não sejam arbitrariamente destituídas de seus bens.”
Mudanças na “teoria das capacidades”
A fim de implementar esses comandos de força constitucional, a Lei 13.146/2015 – Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) – modificou a chamada “teoria das capacidades” em nossa legislação civil.
Desse modo, com a entrada em vigor da LBI passa a prevalecer no direito brasileiro a regra de que nenhum tipo de deficiência afasta a capacidade civil das pessoas – nem mesmo a deficiência mental ou intelectual.
Entretanto, como toda regra comporta exceções, poderá haver situações em que a pessoa com deficiência venha necessitar de alguma assistência ou apoio para a prática de determinados atos da vida civil, com segurança e autonomia.
É aí que se apresentam duas importantes soluções jurídicas para o exercício da capacidade legal das pessoas com deficiência: a curatela e a tomada de decisão apoiada.
Diferença entre tutela, curatela e tomada de decisão apoiada
Para garantir que ninguém vai fazer confusão, antes de prosseguir com nosso estudo é necessário pontuar aqui a diferença entre esses três institutos: tutela, curatela e tomada de decisão apoiada.
A tutela e a curatela são institutos autônomos, mas com uma finalidade comum. Ambas são utilizadas para propiciar a representação legal e a administração de sujeitos incapazes de praticar atos jurídicos.
A rigor, a tutela visa a representação legal das pessoas menores de 18 anos, cujos pais tenham sido declarados ausentes, falecido ou tenham perdido o poder familiar.
Por outro lado, a curatela visa proteger a pessoa maior que, em virtude de alguma incapacidade ou circunstância específica, esteja impossibilitada de manifestar a sua própria vontade, com vistas a resguardar, sobretudo, sua vida negocial e patrimonial.
Já a tomada de decisão apoiada é uma solução nova, inspirada no direito italiano, em que o protagonismo será sempre da pessoa com deficiência. Aqui, deve prevalecer a sua vontade sem a necessidade de que um terceiro decida por ela.
Procedimento judicial de tomada de decisão apoiada
A Lei 13.146/2015 (LBI), introduziu o art. 1.783-A no nosso Código Civil, consagrando o instituto da tomada de decisão e seu rito especial.
“Art. 1783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.”
Na prática, trata-se de um procedimento judicial no qual a própria pessoa com deficiência irá indicar dois apoiadores de sua confiança para que esses possam lhe auxiliar, fornecendo o apoio que for necessário para determinados atos de sua vida civil.
Legitimidade ativa para requerer
O art. 1783-A, §1º, do CC, deixa claro que a pessoa com deficiência e seus apoiadores deverão figurar como autores do procedimento especial de tomada de decisão apoiada. Diferente do que acontece, por exemplo, na curatela, em que a pessoa curatelada figura no polo passivo da lide.
Por esta razão, a tomada de decisão apoiada pode ser enquadrada entre os chamados ritos de jurisdição voluntária. Isso porque não haverá réu ou pretensão resistida.
Importante destacar que o vínculo de confiança entre apoiado e apoiadores é requisito indispensável. Isso se aplica tanto para os aspectos formais da medida quanto para sua efetividade na prática.
A rigor, a tomada de decisão apoiada se apresenta como solução jurídica para pessoas com deficiência mental ou intelectual. Mas, já existem precedentes judiciais no sentido de estender tal medida para outros tipos de deficiência em que a pessoa demonstrar a necessidade de um apoiador.
Por exemplo, no caso de pessoas com impedimentos graves de ordem física ou sensorial, que queiram eleger apoiadores para a auxiliar na prática de determinados atos jurídicos.
Termo de tomada de decisão apoiada
A petição inicial do processo de tomada de decisão apoiada nada mais é do que a apresentação de um termo que conste: os limites do apoio, os compromissos assumidos pelos apoiadores e o prazo de vigência da medida, com o pedido de homologação judicial.
Antes de se pronunciar sobre a homologação do termo de tomada de decisão apoiada, o juiz ouvirá uma equipe multidisciplinar, o representante do Ministério Público, o próprio apoiado e os apoiadores indicados.
Na prática, essas oitivas servem para duas coisas:
Aferir a relação de confiança entre apoiado e apoiadores e;
Verificar se os limites do apoio apresentados em juízo estão coerentes com o grau mínimo de discernimento do apoiado para a prática dos atos ali especificados.
Vale destacar que a lei não prevê a realização de perícia médica no procedimento de tomada de decisão apoiada. Mas, isso não quer dizer que o juiz possa determinar a sua realização de ofício em alguns casos.
O termo de tomada de decisão apoiada terá prazo de validade pré-definido. Contudo, poderá se encerrar a qualquer tempo por vontade da pessoa com deficiência, bem como poderá ser renovado, prevalecendo a vontade e autonomia do autor.
Efeitos da tomada de decisão apoiada perante terceiros
A decisão tomada por pessoa apoiada terá validade e efeitos sobre terceiros, sem restrições, desde que esteja inserida nos limites do termo de apoio homologado pelo Poder Judiciário.
Nesse sentido, terceiro com quem a pessoa apoiada mantenha relação negocial pode solicitar que os apoiadores assinem em conjunto com a pessoa com deficiência para garantir maior segurança jurídica aos negócios celebrados.
Embora a vontade do apoiado deva prevalecer, a depender dos limites estabelecidos no termo de tomada de decisão apoiada, a não observância da participação dos apoiadores pode implicar na anulação ou invalidade de eventuais negócios jurídicos praticados com a pessoa com deficiência em questão.
Por isso, gosto de dizer que a tomada de decisão apoiada é um mecanismo de proteção jurídica para o cidadão com deficiência.
Repercussões gerais entre apoiado e apoiadores
Caso o negócio jurídico a ser celebrado pela pessoa com deficiência possa trazer risco ou prejuízo relevante, em algum momento, poderá haver conflito ou divergência de opiniões entre apoiado e apoiadores.
Esse tipo de situação poderá ser levada para apreciação do juiz que homologou o termo de tomada de decisão apoiada, que ouvirá o Ministério Público e decidirá sobre a questão.
Por outro lado, se o apoiador agir com negligência, exercer pressão indevida ou não adimplir com as obrigações assumidas, poderá a pessoa apoiada ou qualquer pessoa apresentar denúncia ao Ministério Público ou ao juiz.
Se procedente a denúncia, o juiz destituirá o apoiador e nomeará outra pessoa para prestação de apoio, sendo garantido o direito da pessoa com deficiência de ser ouvida sempre que houver interesse.
Dependendo dos limites do apoio estabelecido, os apoiadores poderão ter de prestar contas, aplicando, no que for cabível, as regras da prestação de contas na curatela.
Vale destacar ainda que, o apoiador pode solicitar em juízo a exclusão de sua participação do processo de tomada de decisão apoiada, sendo seu desligamento condicionado à manifestação do juiz sobre a matéria.
O papel do advogado na tomada de decisão apoiada
Em se tratando de direitos das pessoas com deficiência eu sou até suspeito para falar, na qualidade de estudioso e amante do tema em mais uma década de militância. Contudo, eu não poderia deixar de registrar neste artigo a importância do advogado no procedimento de tomada de decisão apoiada.
Por se tratar de um tema novo, as pessoas com deficiência e famílias ainda desconhecem essa medida. Deste modo, quando procuram ajuda profissional de um advogado, os clientes normalmente chegam com a ideia de uma possível ação de interdição ou curatela.
Cabe ao advogado ouvir atentamente e fazer a análise fática de todo o contexto biopsicossocial que envolve aquela pessoa com deficiência e sua família.
Para tanto, o advogado não pode se limitar a dar uma olhadinha no laudo médico para definir qual a medida a ser adotada. Faz-se necessário considerar os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo, os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais, a limitação no desempenho de atividades e a restrição de participação social que a pessoa com deficiência possa enfrentar.
Com tais informações, o advogado poderá definir se o caso realmente é de tomada de decisão apoiada, ou se o caso demanda maior blindagem jurídica como na hipótese de curatela.
Em suma, cabe ao advogado, por meios de dados e evidências, identificar a melhor solução jurídica ao caso concreto. Se tratando da tomada de decisão apoiada, o profissional deverá ter a cautela técnica para definir minuciosamente os limites do apoio e a observância de todos os requisitos legais para a minuta do termo que será submetido à homologação judicial.