O PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO NO PROCESSO CIVIL
Oscar Valente Cardoso
O art. 1º do CPC deixa claro que o processo civil no Brasil, especialmente a partir da Constituição de 1988, é um direito constitucional aplicado: “O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código”. O dispositivo prevê, em síntese, que todas as normas processuais cíveis (ou seja, não penais) do país devem observar as normas constitucionais.
Apesar de ser evidente a desnecessidade de uma lei iniciar com um artigo prevendo que “esta lei observa a Constituição”, há uma força simbólica relevante no dispositivo, que explica em uma frase curta todo o modelo processual iniciado pelo CPC/2015 a partir de sua entrada em vigor.
Este princípio da supremacia da Constituição a situa no topo do ordenamento jurídico, razão pela qual todos os demais atos normativos devem ser compatíveis com as normas constitucionais, que não podem ser alteradas por meio de leis, exigindo-se um processo diferenciado de emenda. Da mesma forma, nenhum ato inferior pode subsistir validamente se for incompatível com as normas da Constituição.
Consequentemente, mesmo não havendo previsão constitucional expressa, em um sistema rígido deve ser exercido o controle de conformidade da legislação infraconstitucional com a Constituição, tendo em vista a necessidade de compatibilidade vertical daquela em relação a esta.
Em resumo, por ser o primeiro dos principais Códigos a ser integralmente apresentado e aprovado na vigência da Constituição de 1988, o CPC ressalta em seu dispositivo inicial que a Constituição é o fundamento de validade, interpretação e aplicação de todo o ordenamento jurídico brasileiro, o que compreende as normas processuais. Apesar de ser dispensável que toda lei brasileira faça menção ao cumprimento da Constituição, trata-se de um reforço argumentativo. Não se pode esquecer que, ainda que resolva conflitos eminentemente privados, o Direito Processual Civil é um ramo do Direito Público e que, como afirmado acima, trata-se de direito constitucional aplicado.
Desse modo, o Código é organizado a partir da Constituição e as normas processuais devem ser interpretadas e aplicadas de acordo com as normas constitucionais. Por isso, a principal base de interpretação do CPC é a Constituição e o Código é o fundamento normativo para a aplicação das normas processuais de acordo com a Constituição, bem como para afastar as normas infraconstitucionais que estiverem em desacordo com ela.
Contudo, isso não significa que o CPC se limite a reproduzir as normas da Constituição. Apesar de isso ocorrer em alguns casos (como, por exemplo, do art. 11 do CPC com o art. 93, IX, CF), o Código vai além e fornece um conteúdo mínimo para as normas fundamentais, que devem ser interpretadas não apenas pela leitura dos arts. 1º a 12, mas também de suas consequências diretas previstas em todo o restante do texto. Em outras palavras, o art. 1º do CPC determina que, os arts. 2º a 1.072 (e toda a legislação processual cível do país) são princípios e regras de Direito Público e constituem direitos constitucionais aplicados.
O art. 1º do CPC traz outra consequência importante: ao atribuir um conteúdo mínimo às normas constitucionais, modifica-se a competência para a sua interpretação e aplicação. Ao mesmo tempo em que declara que as normas processuais derivam diretamente da Constituição (constitucionalização do processo), explicita o seu conteúdo e especifica de que forma elas devem ser aplicadas e os efeitos que produzirão. Em consequência, essa infraconstitucionalização do conteúdo das normas constitucionais processuais retira a competência uniformizadora da Corte Constitucional (STF) e a transfere para uma Corte Superior (STJ), que passa a ser a guardiã integral da legislação processual no país, com a importante atribuição de definir, na prática, de que forma será interpretado e aplicado o conteúdo mínimo das normas fundamentais do processo.
Com isso, o dispositivo legal busca corrigir um problema de negativa de prestação jurisdicional: (a) de um lado, o STF desenvolveu o entendimento de que a alegação de violação a princípios constitucionais do processo constitui ofensa reflexa à Constituição, por exigir a análise de normas infraconstitucionais (apesar de tais princípios, até o CPC/2015, não serem em regra delimitados ou explicitados por elas), razão pela qual não conhece os recursos extraordinários interpostos com base em tais princípios (nesse sentido: STF, RE 614886 AgR/AM, 1ª Turma, rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 07/05/2018, DJe 16/05/2018; STF, ARE 1046977 AgR-ED/RJ, 2ª Turma, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 23/03/2018, DJe 06/04/2018); ainda, no julgamento do Tema nº 660, o STF afastou a existência de repercussão geral com fundamento na ofensa reflexa à Constituição decorrente da alegada violação dos princípios do contraditório, da ampla defesa, dos limites da coisa julgada e do devido processo legal (STF, ARE 748371 RG/MT, Plenário virtual, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 06/06/2013, DJe 31/07/2013); (b) por sua vez, o STJ costumeiramente não conhecia os recursos especiais interpostos com fundamento nos princípios constitucionais do processo, por se tratar de matéria que deve ser apreciada pelo STF (nesse sentido: STJ, AgInt no AREsp 1161700/SP, 2ª Turma, rel. Min. Francisco Falcão, j. 17/04/2018, DJe 23/04/2018; STJ, AgInt no REsp 1678991/SC, 1ª Turma, rel. Min. Sérgio Kukina, j. 28/11/2017, DJe 05/12/2017); (c) em uma posição intermediária, o STJ entende ser competente para apreciar a divergência sobre a interpretação e aplicação de normas infraconstitucionais que, apesar de diretamente derivadas, não se limitam a reproduzir a norma constitucional (STJ, EREsp 547653/RJ, Corte Especial, rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 15/12/2010, DJe 29/03/2011).
A partir do CPC/2015, além da possibilidade de conversão de recurso especial em extraordinário (e vice-versa), de acordo com os arts. 1.032 e 1.033, o art. 1º produz, como principal consequência, a possibilidade de as normas fundamentais serem tuteladas por meio de recurso especial ao STJ e, consequentemente, consolida o Superior Tribunal de Justiça como a Corte competente para uniformizar a hermenêutica do Direito Processual Civil, inclusive na delimitação do conteúdo mínimo conferido por lei infraconstitucional aos princípios constitucionais do processo.