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O NOVO CPC E O PROCESSO ADMINISTRATIVO: ONDE OS TEMAS SE ENTRELAÇAM?

O NOVO CPC E O PROCESSO ADMINISTRATIVO: ONDE OS TEMAS SE ENTRELAÇAM? 

Luiz Henrique Antunes Alochio

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 O Novo CPC e o “Processo Administrativo“. 3 Órgãos de Julgamento Administrativo e a Devida Atenção à Fundamentação de Decisões; 3.1 Para Além do Processo Administrativo. O Reflexo na Própria Produção dos Atos Administrativos. 4 Conclusões. Referências.

1 Introdução          

Aprovado no Senado Federal em 17 de dezembro, o novo Código de Processo Civil tem levantado, já há algum tempo, calorosos e profundos debates. Já foi dito que os Magistrados consideram o novo CPC mais favorável aos advogados; e para os advogados a nova lei seria mais favorável aos Magistrados. Enfim, em termos de descontentamento estamos diante do novo repetindo o clássico; como diria Cazuza, “vejo o futuro repetir o passado, num museu de grandes novidades“. Sobre quem tem razão nas reclamações cabe recordar as notas introdutórias de Hans Kelsen à sua Teoria Pura do Direito:

Os fascistas declaram-na [a teoria pura] liberalismo democrático, os democratas liberais ou os sociais-democratas consideram-na um posto avançado do fascismo. Do lado comunista é desclassificada como ideologia de um estatismo capitalista, do lado capitalista-nacionalista é desqualificada, já como bolchevismo crasso, já como anarquismo velado. O seu esp frito [sic] é – asseguram muitos – aparentado com o da escolástica católica; ao passo que outros crêem reconhecer nela as características distintivas de uma teoria protestante do Estado e do Direito. E não falta também quem a pretenda estigmatizar com a marca de ateísta. Em suma, não há qualquer orientação política de que a Teoria Pura do Direito não se tenha ainda tornado suspeita.” [1]

Em síntese, sempre haverá quem aprove e quem desaprove qualquer produção humana. Vamo-nos acostumando às reclamações, pois não interessa a boa intenção na produção de um texto normativo. Despregado de seus autores ou emissários o enunciado está agora à disposição de uma comunidade de intérpretes. Muitos verão virtudes, avanços, visões mais democráticas, ou coisas do gênero; outros perceberão vícios, incompletudes, incongruências, plurissignificados, e assim por diante. Nesta toada, precisamos olhar os vícios e as virtudes da nova lei, de uma forma holística, em particular buscando uma melhor interpretação [2] do texto dentro do espírito da nova legislação, ou daquele sentimento que inspirou sua elaboração.

2 O Novo CPC e o “Processo Administrativo”       

Especialmente interessante para quem atua nas áreas de Direito Público, e que a muitos parece estar escapando, é a previsão do novo CPC quanto à sua aplicação supletiva e subsidiária, aos processos eleitorais, trabalhistas e também aos administrativos:

Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.”

Bom lembrar que Fazzalari [3] já aludia a um campo do Direito Processual geral que é, segundo o emérito processualista, obviamente mais amplo que o estudo dos processos jurisdicionais civis. Esses outros processos, na visão de Fazzalari [4], “(…) podem e (…) devem ser adotados como parte geral do nosso ensinamento (…), sobretudo porque é preciso não deixar perder de vista (…) a unidade do ordenamento“. Apesar de os processos jurisdicionais (em particular os processos civis) serem os arquétipos do “processo“, o autor diz que esquemas processuais podem realizar atividades diversas daquela jurisdicional. Novamente cabe o socorro a Fazzalari:

Come avvertito in principio, occorre anche far cenno dei processi attraverso i quali si realizzano altre funzioni fondamentali dello Stato, e che mettono capo a provvedimenti di organi statuali diversi dal giudice: ci riferiamo ai processi legislativi ed a quelli amminisitrativi.” [5]

No caso dos “processos administrativos“, esses podem existir a partir da própria Administração, como parcela de atos de controle administrativo, visando exercitar os próprios provimentos da entidade estatal. Fazzalari [6] denomina, como processualista que é, a posição da Administração, nesses casos, como sendo ativa, “(…) isto é, a fim de providenciar, pela primeira vez, a proteção de um interesse confiado à Administração Pública (…)”. Cabe distinguir, na visão do multicitado Processualista, aqueles casos de processos administrativos movidos pelos cidadãos que se considerem ilegitimamente lesados por atos da Administração [7]. Há que se falar em contraditório, em recursos e em direito de defesa. Como exemplo da “posição ativa” da Administração, Fazzalari [8] traz-nos o caso de “concessões” em que a deflagração do processo ocorre a partir da Administração. Nos demais casos, os exemplos são abundantes, como as defesas em multas e autuações fiscais de toda espécie.

Portanto, nada de anormal, ainda que seja um tema de pouco aprofundamento, a aproximação das regras gerais de processo civil àqueles processos denominados de “administrativos“.

3 Órgãos de Julgamento Administrativo e a Devida Atenção à Fundamentação de Decisões   

Os órgãos públicos ocupados de atuação em processos administrativos devem estar atentos ao novo CPC. Vamos além: mesmo os órgãos praticantes de atos administrativos capazes de deflagrar um processo administrativo devem se amoldar ao novo CPC.

Pode parecer estranho, mas nada além de um singelíssimo exemplo nos trará a confirmação das assertivas anteriores. Vejamos o caso das decisões de processos administrativos que, não raramente, se socorrem de fórmulas simplistas, de uso de “cláusulas abertas” ou “conceitos indeterminados“. O uso de fundamentos ao estilo “feriu o interesse público“, é de uma vazies impressionante, quando não se identifica claramente qual o interesse violado e como se deu tal violação in concreto; todavia, fórmulas semânticas dessa espécie são repetidas aos borbotões. Não passam de uma busca deveras comum de violação de direito de defesa, pois permite uma decisão genérica, desfocada do caso concreto. Muitas decisões não passam de simplória repetição de texto de outras decisões, ou referências esparsas a “princípios” sem a menor identificação dos elementos específicos da situação sob julgamento.

Salutar recordar que a técnica dos conceitos indeterminados não fora empregada, em seu nascimento, para ampliar poderes da administração, mas para controle judicial da noção de discricionariedade. O Prof. Cassagne, emérito jurista da Universidade de Buenos Aires, refere que “[l]a técnica de los conceptos jurídicos indeterminados, que se se afirma en la Alemania de la posguerra, viene a limitar la doctrina de la discricionalidad, como ámbito exento del control judicial[9]. Ao contrário da tradição administrativa brasileira, que usa dos conceitos indeterminados como forma de decidir administrativamente com maior discrição, a técnica em sua gênese tendia a “permitir el juzgamiento pleno de ciertas decisiones administrativas que consistían en aplicar conceptos definidos genericamente por el ordenamento positivo tales como ‘oferta más conveniente’, ‘enfermedad contagiosa’, etcétera[10].

Ocorre que o novo CPC traz dispositivo específico sobre o dever de fundamentação das sentenças. Para estar fundamentada uma decisão judicial não pode:

I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;      

II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;                         

III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;           

IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;                              

V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; 

VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.”

Parece-nos uma regra geral, capaz de trazer reflexos não apenas no processo judicial, mas igualmente no processo administrativo. Inclusive, não é demasiado referir, talvez o processo administrativo seja o que mais necessite de avanços democráticos ainda no país, sendo tal regra extremamente benfazeja.

Olhando a Lei de Processo Administrativo – Lei nº 9.784 – em nenhum momento se verifica alguma regra específica que possa conflitar com as regras gerais acima transcritas que se encontram no novo CPC. Há o dever de motivação (art. 2º, caput); a exigência de referência dos elementos probatórios na motivação (art. 38, § 1º); a exigência de motivação (art. 50); devendo ser explícita, clara e congruente (art. 50, § 1º); e podem ser usadas reproduções de fundamentos em casos reiterados, desde que não se prejudique direito ou garantias das partes (art. 5º, § 2º).

3.1 Para Além do Processo Administrativo. O Reflexo na Própria Produção dos Atos Administrativos     

É possível investigar ainda mais longe, a respeito de hipotéticos reflexos do novo CPC – ainda que indiretos – na própria fase de produção dos atos administrativos. Afinal, os julgamentos futuros destes atos administrativos – seja em processo judicial ou administrativo – dependerão essencialmente da motivação esposada pelo agente público produtor do ato original. Vejamos que o ato administrativo estará vinculado, para efeito de sua validade, à motivação dada pelo agente. Não se opera, no caso, o mihi factum, dabo tibi ius. O julgador não poderá inovar em motivos.

A vinculação do ato administrativo à motivação primeva que lhe fora deferida em sua produção, pelo agente do Estado competente, tem regra própria – ou princípio próprio -, qual seja o Princípio da Vinculação da Validade do Ato à sua Motivação, também conhecido como teoria dos motivos determinantes. Sobre o tema Justen Filho esclarece que a “teoria dos motivos determinantes estabelece que o agente administrativo se vincula à motivação adotada, de modo que se presume que o motivo indicado foi o único a justificar a decisão adota[11]. Refere Justen Filho uma questão que aparentemente infirma a pretensão deste texto:

Essa teoria deve ser reputada como ultrapassada, não se prestando mais ao controle da validade dos atos administrativo. (…)     

Pode evidenciar-se a existência de motivos ocultos ou disfarçados. Mas não há impedimento a que a Administração Pública evidencie, posteriormente, que o ato se fundou em outros motivos, que justificavam adequadamente a decisão adotada. A equivocada indicação do motivo é uma falha, mas o grave reside na ausência de atuação ordenada a satisfazer as necessidades coletivas, com observância de um procedimento democrático.”  [12]

Pois bem, a parte final é esclarecedora, quando exige a “observância de um procedimento democrático“. Neste sentido a lição de Justen Filho deve ser lida de forma a se enquadrar na exigência de um procedimento democrático, signo que o próprio autor inseriu em seu texto. Neste proceder, a teoria dos motivos determinantes continua em plena aplicação. A extensão é que é mitigada. Explicamos:

  1. a) O motivo dado para a prática do ato administrativo ainda vincula a validade do ato;
  1. b) Se o motivo dado for considerado inexistente (por exemplo) o ato está nulo;
  1. c) Todavia, se o julgador detectar um hipotético novo motivo, não poderá substituir o agente original, devendo:

c.1) decretar a nulidade do ato, cujo motivo vinculante fora considerado inexistente; e

c.2) baixar os autos ao agente original para, investigando o hipotético novo motivo, analisar a prática de ato administrativo novo, capaz, como refere Justen Filho, de “satisfazer as necessidades coletivas, com observância de um procedimento democrático“.

d) Cabendo ao agente original a prática de ato novo, se verificar in concreto a ocorrência do hipotético novo motivo apontado na decisão administrativa que julgou o ato original, abrir-se-á ao administrado a possibilidade de ampla defesa e contraditório na forma da Lei de Processo Administrativo respectivo.

Se o futuro julgador pudesse mudar a motivação ou aderir motivos novos, seria o mesmo que violar direito de defesa na fase administrativa. Inclusive o Superior Tribunal de Justiça já se posicionou em sentido semelhante:

ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. ANISTIADO POLÍTICO. PARCELAS RETROATIVAS. PAGAMENTO. OMISSÃO. PREJUDICIALIDADE EXTERNA. NECESSIDADE DE SUSPENSÃO DO WRIT. MATÉRIA PREJUDICADA. DECADÊNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. TEORIA DOS MOTIVOS DETERMINANTES. MODIFICAÇÃO A POSTERIORI DA MOTIVAÇÃO DO ATO OMISSIVO IMPUGNADO. IMPOSSIBILIDADE. JUROS MORATÓRIOS E CORREÇÃO MONETÁRIA. INCIDÊNCIA. PRECEDENTES. SEGURANÇA CONCEDIDA.

(…)

  1. ‘Pela Teoria dos Motivos Determinantes, a validade do ato administrativo está vinculada à existência e à veracidade dos motivos apontados como fundamentos para a sua adoção, a sujeitar o ente público aos seus termos’ (AgRg no REsp 670.453/RJ, Rel. Min. Celso Limongi, Des. Conv. do TJSP, 6ª T., DJe 08.03.2010). (…)
  2. Afastado o único motivo apontado pela Administração Pública para se recusar a cumprir in totum a Portaria/MJ nº 1.445, de 01.08.05, mostra-se inviável o exame de um segundo motivo determinante deduzido apenas nas informações prestadas pela autoridade impetrada – ausência de disponibilidade orçamentária específica – sob pena de violação aos princípios da ampla defesa e do contraditório. Isso porque tal motivo não foi deduzido pela Administração no ofício anteriormente encaminhado aos impetrantes, de sorte que estes não tinham interesse em produzir qualquer espécie de prova pré-constituída sobre esse novo fundamento, o que não poderia ser realizado após a apresentação das informações, tendo em vista a impossibilidade de dilação probatória.

(…).” (MS 19.374/DF, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 1ª S., j. 25.09.2013, DJe 02.10.2013)

Do exposto, cabe conjeturar que, pela impossibilidade de supressão da fase do processo administrativo descaberia a aplicação, por analogia ou mesmo supletivamente do seguinte dispositivo do novo CPC:

O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.”

Afinal, mesmo que o juiz ou a autoridade de decisão administrativa queiram “dar à parte a oportunidade de se manifestar“, ter-se-ia a supressão das fases iniciais do processo administrativo onde, por exemplo, caberia a produção de provas, e outras situações peculiares à defesa e ao contraditório.

4 Conclusões        

Com o novo CPC trazendo regras claras e objetivas sobre a forma de fundamentação das decisões, provavelmente a questão do processo administrativo – e da própria produção dos atos administrativos – poderá mudar. Especialmente para que recebam sopros mais democráticos. Por fim, é de se aguardar que os órgãos públicos se adéquem à nova realidade, também em seus processos administrativos.

Não apenas com relação à fundamentação das decisões, mas em todas as situações nas quais a legislação processual civil possa trazer efeitos subsidiários ao processo administrativo.

Referências                                   

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. MS 19.374/DF, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 1ª S, j. 25.09.2013, DJe 02.10.2013. Acesso em: 24 dez. 2014.

CASSAGNE, Juan Carlos. Derecho administrativo. 7. ed. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2002. Tomo I.

FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Campinas: Bookseller, 2006.

______. Istituizioni di diritto processuale. 7. ed. Padova: CEDAM, 1994.

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 264.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. VIII. Disponível em: <http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/HansKelsenTeoria.pdf>.

[1] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. 3ª tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. VIII. Disponível em: <http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/HansKelsenTeoria.pdf>.

[2] A noção de “melhor interpretação” já é um anseio, em si mesmo, arbitrário, pois a “melhor interpretação” tende a ser sempre aquela que “melhor socorre os meus interesses”.

[3] FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Campinas: Bookseller, 2006.

[4] FAZZALARI, 2006, p. 105.

[5] FAZZALARI, Elio. Istituizioni di diritto processuale. 7. ed. Padova: CEDAM, 1994. p. 613. “Como advertido, no início, é preciso também fazer menção aos processos através dos quais são realizadas as outras funções básicas do Estado, e que as medidas são provimentos de órgãos do Estado que não o juiz: estamos a nos referir a processos legislativos e àqueles administrativos” (tradução nossa).

[6] FAZZALARI, 2006, p. 711.

[7] FAZZALARI, 2006, p. 712.

[8] FAZZALARI, 2006, p. 725.

[9] CASSAGNE, Juan Carlos. Derecho administrativo. 7. ed. Buenos Aires; Abeledo Perrot, 2002. Tomo I. p. 236.

[10] CASSAGNE, 2002, p. 236.

[11] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 264.

[12] JUSTEN FILHO, 2005, p. 264.