O NOVO CONCEITO DE DEFICIÊNCIA E A COISA JULGADA NAS AÇÕES DE INCAPACIDADE
Cláudio Roberto Alfredo de Sousa
Flávia Moreira Guimarães Pessoa
Layanna Maria Santiago Andrade
SUMÁRIO: Introdução. 1 A Proteção da Pessoa com Deficiência na Ordem Constitucional. 2 O Conceito de Deficiência à Luz da Ordem Constitucional. 3 A Revisão das Sentenças de Curatela em Face do Novo Quadro Normativo Instaurado pela Lei nº 13.146/2015. Conclusão. Referências Bibliográficas.
Introdução
Em sua evolução, a humanidade alcançou um elevado patamar civilizatório – e isso não faz muito tempo – quando pôde se libertar do determinismo natural darwiniano (a prevalência do mais apto, do mais rápido, do mais forte).
Seja motivado por laços de solidariedade, seja por influência da caritas cristã, ou mesmo por uma superação de falaciosas compreensões nazistóides ou eugênicas, as pessoas com deficiência erigem-se não mais apenas como uma minoria a ser tutelada, mas, sim, como sujeitos dignos de direito, com voz e respaldo para fazer valer esses direitos.
O arcabouço normativo, desaguadouro de fatos sociais e anteparo axiológico, traduz o tratamento jurídico afeito às pessoas com deficiência no mais elevado patamar constitucional, perpassando a Convenção da Pessoa com Deficiência, até a Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência).
É com o fito de abordar a passagem do modelo médico para o modelo social, analisar o conceito de deficiência à luz da matriz de dignidade da Constituição e da legislação de inclusão, o diálogo (ou a falta deste) entre as fontes normativas postas, bem como a práxis jurisprudencial que ora se forma, em relação à nova roupagem da capacidade até o tratamento das sentenças anteactas de interdição já transitadas, que se constrói o foco pontual da abordagem que este artigo procurará empreender.
1 A Proteção da Pessoa com Deficiência na Ordem Constitucional
A sociedade hodierna é essencialmente plural. Neste contexto, a inclusão das pessoas com deficiência não pode mais ser vista apenas como uma meta, mas, sim, como um verdadeiro dever a ser alcançado pela sociedade e pelo Estado. Isso faz com que a atenção a ser dada à pessoa com deficiência não mais seja pautada pelo modelo médico de deficiência, devendo-se, portanto, ser observado em todo o agir o modelo social de deficiência.
A Constituição Federal é o centro do ordenamento jurídico, motivo por que o tratamento de qualquer questão a ser enfrentada deve ser buscado na Carta Magna, sendo que toda solução deverá ser pautada no valor da dignidade humana, verdadeira pedra angular de todo o nosso ordenamento [1].
Ora, colocadas as premissas acima, verifica-se que a Constituição Federal deu um tratamento especial às pessoas com deficiência, prescrevendo, em diversos de seus dispositivos, normas de tutela a tais pessoas, objetivando-se, em última instância, a observância do princípio da igualdade em sua dimensão material.
Dessarte, pode-se citar, dentre outros, alguns exemplos de normas constitucionais que objetivam a preservação de direitos das pessoas com deficiência, a fim de se garantir a sua efetiva inclusão social: o art. 7º, XXXI, prevê a proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência; o art. 23, II, prescreve que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde e da assistência pública, da proteção e da garantia das pessoas portadoras de deficiência; o art. 37, VIII, estabelece que a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão; o art. 206, I, garante a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; o art. 208, III, estabelece o atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; o art. 227, § 2º, prescreve que a lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de transportes de uso coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência.
Neste diapasão, é de se ressaltar que como forma de se incrementar ainda mais a tutela das pessoas com deficiência, o Brasil se tornou signatário da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, tendo-a publicado através do Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, sendo digno de nota que tal Convenção é o único instrumento normativo internacional que fora aprovado com a observância do procedimento previsto no art. 5, § 3º, da Constituição Federal, o que faz, por via de consequência, que tal instrumento normativo tenha o status de norma constitucional.
Pois bem, em decorrência de aludido tratado, é de se ressaltar que a expressão doravante a ser empregada é “pessoa com deficiência“, estando substituídas as expressões no texto constitucional que se reportava às pessoas com deficiência como “pessoas portadoras de deficiência“, eis que tal expressão trazia a ideia de que a pessoa poderia se desfazer da deficiência a qualquer hora, na medida em que seria apenas portadora [2].
No mais, ao se analisar a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, é de se ressaltar, dentre outros, o disposto no seu art. 4.4, o qual estabeleceu, em sede de direitos das pessoas com deficiência, uma pirâmide normativa flexível, regendo-se, portanto, pela lógica do princípio pro homine quanto à aplicação das normas em caso de concorrência destas, algo que já acontece, exempli gratia, no Direito do Trabalho.
Postas essas premissas iniciais, não há como se descurar de que toda análise do ordenamento jurídico brasileiro quanto ao tratamento das questões jurídicas envolvendo as pessoas com deficiência deve estar em consonância com estes paradigmas normativos estipulados na Constituição Federal, devendo a análise sempre se ater também às disposições da Convenção da Pessoa com Deficiência, na medida em que esta última, como já fora dito acima, por ter sido aprovada observando-se o prescrito no art. 5º, § 3º, da Constituição, goza do status de norma constitucional.
Por fim, há de se ressaltar que nesta esteira da evolução legislativa de normas com vistas a resguardar os direitos das pessoas com deficiência, não se pode deixar de fazer menção à Lei nº 13.146/2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, sendo que aludido diploma normativo trouxe mudanças de paradigmas quanto à questão da curatela, daí o porquê deste artigo, tentando-se responder à questão da estabilidade das sentenças que fixaram curatelas e que já se encontravam acobertadas pelo trânsito em julgado quando da entrada em vigor desta Lei, eis que tal questionamento se coloca diante de um quadro de possibilidade de ajuizamento da ação revisional da curatela anteriormente fixada mesmo nas hipóteses em que não tenha havida qualquer alteração fática, pautando sobredita ação revisional, por conseguinte, apenas e tão somente em uma mudança paradigmática do quadro normativo, justamente em face de promulgação desta Lei.
2 O Conceito de Deficiência à Luz da Ordem Constitucional
Neste momento, cabe destacar a necessidade de se fazer uma releitura do conceito de deficiência à luz da Constituição, cujo foco é o ser humano em sua dignidade.
A cumprir tal mister, para além da análise puramente terminológica, na qual o centro é na carga ideológica em torno da denominação que se faz do deficiente, faz-se necessária uma abordagem classificatória acerca do conceito de pessoa deficiente.
É preciso direcionar os esforços para definição de deficiência. Isso tornará possível a distinção dos indivíduos que deverão fazer, ou não, jus ao benefício das cotas para ingresso no mercado de trabalho, por exemplo.
Conceituar remonta aos primórdios e, desde então, configura-se um desafio imposto à espécie Homo sapiens, uma vez que para atingir tal desiderato é necessário o árduo exercício da comparação, de natureza essencialmente imperfeita, variando de acordo com o esforço metodológico desprendido pelo autor.
Por outro lado, em decorrência lógica da alteridade imprescindível, faz-se superar tal altercação e, consequentemente, estabelecer conceitos de acordo com o parâmetro médio da normalidade, no qual, porém, a injustiça intrínseca a tal procedimento só poderá ser superada quando forem levados em consideração os aspectos individuais do caso concreto.
As perguntas feitas, nesse momento, são: O que é pessoa com deficiência? O que é deficiência? O que é normal? O que é patológico?
Diversos autores se posicionam a respeito, alguns de forma mais tradicional, restrita e conservadora, outros, porém, avançam no tema, reconhecendo a complexidade que existe em torno da definição de deficiência.
Assim, apesar da importância teórica das definições clássicas, eles não apresentam solução para a problemática conceitual, por serem por demais genéricas.
Mais apropriados são os comentários de Moarcyr de Oliveira, que amplia consideravelmente a noção de pessoas com deficiência física. Para esse autor (1981, p. 12), “no conteúdo do conceito legal de deficientes, figuram elementos de natureza moral (valorização da pessoa humana), social (sua integração ou reintegração no meio por interesse da coletividade) e econômica (reabilitação para um desempenho produtivo)“.
Ainda nesses termos, diversas doenças, muito embora não aparentes, e, por não se encaixarem no conceito popularmente consolidado de deficiência, terminam sendo desconsideradas, em que pese sua gravidade.
Dessa forma, as pessoas com doenças altamente limitantes acabam não recebendo os devidos tratamentos, médicos nem jurídicos, que são necessários para a erradicação das suas desigualdades.
Consoante assevera Luiz Alberto David Araújo, “o deficiente de audição ou de locomoção é logo notado, enquanto, por exemplo, uma pessoa portadora de deficiência de metabolismo não pode sequer ser identificada” (2001, p. 44). Essa identificação deve ser feita, enfatize-se, através da análise de cada caso concreto.
Logo, embora a deficiência não se confunda com doença, muito menos com incapacidade, deve-se ressaltar a associação entre deficiência e doenças, sendo que estas muitas vezes são secundárias, ou seja, decorrentes da própria deficiência.
Não se pode olvidar também que muitas doenças podem causar redução laborativa, devendo, portanto, ser consideradas deficiências para efeitos do sistema de preenchimento de cotas (ações afirmativas).
De fato, as deficiências podem ser parte ou expressão de uma condição de saúde, mas isso não aponta, necessariamente, para a presença de uma doença.
Feitos tais esclarecimentos, persiste uma altercação de maior relevância prática: como ficam as sentenças com trânsito em julgado anterior à vigência da Lei nº 13.46/2015 que fixaram a interdição para algumas pessoas?
É, portanto, de suma importância a demarcação da deficiência, assim entendida através dos efeitos por ela causados quando associada aos fatores externos (cultural, histórico, econômico, social, etc.).
Trata-se, consequentemente, a deficiência de uma limitação não incapacitante do indivíduo e, sim, da própria sociedade, apresentando-se esta, por conseguinte, deficiente em reinseri-lo de forma plena.
Percebe-se que a definição de deficiência é um exercício a ser enfrentado de acordo com o conjunto das variações e das especialidades de cada civilização, dos espaços e dos tempos. É, inclusive, fundamental para a compreensão do tema, até mesmo, o padrão estético imposto pela sociedade.
A dimensão, a valoração de uma alteração física, é aferida através de múltiplos fatores, revelando-se, pois, a necessidade de amplitude conceitual.
A propósito, a variação doutrinária acerca do conceito de deficiente não se limita ao âmbito jurídico.
Ao fazer referência aos conceitos de patologia e medicina, bem como de saúde e doença, Luís Bogliolo (2011, p. 1) aponta para a importância dos aspectos físicos, psíquicos e sociais na construção do conceito de saúde e conclui pela inexistência de um significado de normalidade.
E, no mesmo sentido, Leovegilo Leal de Moraes (1985, p. 19), em sua obra Medicina Preventiva, discorre sobre os fundamentos da medicina preventiva e, para tanto, enfrenta tal dicotomia, reconhecendo a dificuldade de se estabelecer um limite preciso entre o normal e o patológico, termina por considerar o normal apenas em termos quantitativos.
Apesar da superficialidade dessa conclusão prática, confirma-se a impossibilidade de se estabelecer um conceito de normalidade que consiga abarcar a universalidade de hipóteses da condição humana.
Michel Foucault, em O Nascimento da Clínica (1980), demonstra a passagem da medicina clássica, na qual o foco era a doença abstratamente considerada, para a medicina clínica, em que o indivíduo passa a ser considerado em sua singularidade.
Como consequência desse deslocamento de objetivo da medicina, desenvolve-se a medicina do espaço social, bem como o processo de conscientização da doença como verdadeiro problema político.
Uma das principais obras que trata dessa questão foi escrita por Georges Canguilhem. Em O Normal e o Patológico (2009), o autor busca discutir filosoficamente tais concepções.
Georges Canguilhem sugere a transformação da noção de normal e patológico em diferentes momentos históricos, bem como destaca a incidência do indivíduo no processo de imposição dos limites entre tais acepções dicotômicas.
Desse modo, a singularidade de cada pessoa será determinante para se estabelecer o início da doença. Assim, fortalece-se a ideia de relatividade do normal, do patológico e da deficiência ante a insubsistência de uma cientificidade rígida. Cada deficiência possui uma configuração própria, o que impede a formalização normativa de sua classificação.
Importante ainda mencionar que a constituição funcional de cada ser humano depende, de igual forma, da estrutura ambiental.
Nessa esteira, abandona-se a noção de deficiência atomística. Qualquer diagnóstico não pode prescindir da observação do paciente e da sua interação com a exterioridade.
Conforme abordado no início deste trabalho, cumpre destacar que, na teoria das ciências da saúde, desenvolveram-se dois principais modelos de deficiência: o modelo médico e o modelo social.
O modelo médico, como o próprio nome sugere, reduz a deficiência em seu aspecto biomédico. Em tal modelo, aferem-se as enfermidades, as lesões que atingem o corpo e que causam impedimentos ao ser humano. A causa da deficiência se encontra apenas no organismo humano, ou seja, trata-se de um problema individual (MEDEIROS; DINIZ; SQUINCA, 2006, p. 14).
Por conseguinte, busca-se, por meio dessa abordagem, tão somente, a cura dos indivíduos, através de tratamentos clínicos, cirúrgicos, terapêuticos, ignorando-se o papel das estruturas sociais.
Por outro lado, o modelo social propõe uma ampliação conceitual ao incorporar questões sociais e políticas na definição de deficiência. Deficiente, então, passa a ser a sociedade, por portar barreiras físicas, institucionais e, principalmente, atitudinais, que impossibilitam a todos a conivência digna e humana (HARRIS; ENFIELD, 2003, p. 172).
A campanha do movimento social da deficiência tem por meta a promoção da cidadania e da emancipação desse grupo minoritário.
Por essa razão, a discussão sobre o instituto da proteção jurídica das pessoas com deficiência, em condições de igualdade, assume primordial relevância.
Neste sentido, surge o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146, de julho de 2015), cujo principal objetivo do referido Estatuto é, justamente, adequar-se aos ditames da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da qual o Brasil é signatário, conforme já aduzido, produzindo, destarte, uma plena integração social das pessoas com deficiência.
Assim, o art. 2º da Lei nº 13.146, de julho de 2015, confere uma atualização no conceito de pessoa com deficiência, nos moldes propostos no presente estudo. De igual forma, há uma nítida ampliação da concepção de deficiência, ao adotar o modelo médico-social (biopsicossocial), suprindo a lacuna dos decretos normativos em vigor.
É nessa tônica, inclusive, que o art. 3º do Código Civil passa a prever como única hipótese de incapacidade absoluta os menores de 16 anos, podendo-se citar, ainda, o art. 1.767 do mesmo diploma normativo que versa sobre a curatela, do qual foram retiradas as menções às deficiências e outras expressões similares, em sintonia com os ditames do Estatuto da pessoa com deficiência.
3 A Revisão das Sentenças de Curatela em Face do Novo Quadro Normativo Instaurado pela Lei nº 13.146/2015
Nesta ótica, surge a discussão acerca do tratamento a ser dado às sentenças de interdição com trânsito em julgado na data da entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência, eis que o instituto da interdição no ordenamento jurídico pátrio sofreu profundas alterações com esta Lei, uma vez que tal instrumento normativo restringiu os efeitos da curatela aos aspectos patrimoniais e econômicos, revelando-se, ainda como medida de exceção. Senão vejamos:
“Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.
- 1º Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei.
- 2º É facultado à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada de decisão apoiada.
- 3º A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível.
- 4º Os curadores são obrigados a prestar, anualmente, contas de sua administração ao juiz, apresentando o balanço do respectivo ano.
Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.
- 1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.
- 2º A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado
- 3º No caso de pessoa em situação de institucionalização, ao nomear curador, o juiz deve dar preferência a pessoa que tenha vínculo de natureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado.“
Nesta senda, a interdição deve ser encarada sob uma nova ótica no trato a ser dado à questão nas ações futuras, bem como em relação às ações que já se encontram julgadas, uma vez que, imbuído de uma carga pejorativa, o termo interditado aponta para a figura de um ser totalmente dependente e incapacitado em todas as possibilidades humanas.
É no intuito de evitar a manutenção de tais visões preconceituosas e limitantes que se deve impedir a interdição, ou, ao menos, mitigar-se a sua aplicação nos moldes clássicos.
A cumprir tal mister, torna-se imprescindível que o julgador, ao apreciar a matéria, leve em consideração a autonomia da vontade da pessoa com habilidades especiais, promovendo-se um verdadeiro diálogo de fontes, aparentemente não procedido pelo legislador, entre o Estatuto da Pessoa com Deficiência e o novel Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), que disciplinou o procedimento em seus arts. 747 a 758, sendo que todo esse arcabouço normativo deve sempre ser lido à luz das normas Constitucionais, entre as quais se inserem, por óbvio, as disposições da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
A título de exemplo de como esse diálogo foi desconsiderado pelo legislador, ao se consultar o site do Planalto, especificamente nos arts. 1.768 e 1.769, exempli gratia, estes trazem a redação do caput determinada pela Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), porém, ali também consta tais dispositivos como revogados pela Lei nº 13.105/2015 (Novo Código de Processo Civil), o que se apresenta como uma verdadeira contradição na medida em que o atual Código de Processo Civil fora publicado em março de 2015, tendo entrado em vigor em março de 2016, ao passo que o Estatuto da Pessoa com Deficiência fora publicado em julho de 2015, tendo entrado em vigor em janeiro de 2016.
Portanto, o Estatuto da Pessoa com Deficiência é posterior ao novo Código de Processo Civil em termos de produção legislativa e anterior em termos de vigência, o que faz, por via reflexa, com que tais dispositivos do Código Civil, bem como outros dispositivos de tal Código, ou de outras leis, não possam ter suas disposições normativas determinadas pelo novo CPC/2015 naquilo que contrariar o Estatuto da Pessoa com Deficiência, devendo tais prescrições normativas serem disciplinadas pela Lei nº 13.146/2015, sendo, inclusive, de se cogitar a possível derrogação de preceitos do novo CPC/2015 naquilo que porventura tenha contrariado a mens legis do Estatuto da Pessoa com Deficiência, ainda que tal derrogação tenha se verificado no período de vacância do novo CPC/2015, fenômeno já ocorrido no Brasil à época de promulgação do Código Penal de 1969, o qual fora revogado ainda no seu período de vacatio legis.
Porém, tal temática acerca de possível derrogação de preceitos do novo CPC pela Lei nº 13.146/2015 não será discutida neste artigo, eis que o objetivo do mesmo é outro, versando-se tal aspecto apenas com o intuito de se demonstrar a total falta de diálogo entre as fontes normativas postas, sendo trabalho do operador do direito, portanto, fazer a devida leitura sistêmica destas normas que compõem o arcabouço normativo de proteção das pessoas com deficiência.
Neste diapasão, a demonstrar o novo tratamento que deve ser dado às ações que visam à fixação da curatela, a consubstanciar o aduzido, colaciona-se excerto de recente decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, da lavra do magistrado Mark Clark S. Andrade, nos autos do Processo 0100169-54.2016.8.20.0146:
“(…) A partir da mudança em nosso direito civil da teoria das incapacidades civis, promovida pela Lei nº 13.146/2015, o enquadramento legal da restrição ao curatelado é preconizado pelo inciso II do art. 4º do Código Civil. (…)
No presente caso concreto, as provas colhidas nos autos, que são suficientes ao deslinde da demanda, coadunam-se com as alegações arroladas na peça inicial, deixando claro que o interditando é portador de doença mental.
A incapacidade advinda do quadro clínico retratado pode ser constatada por ocasião da audiência de interrogatório, (…) o que inviabiliza a prática de atos de natureza patrimonial e negocial, nos termos do art. 85 da Lei nº 13.146/2015. (…)
Isto posto, nos termos dos arts. 1.767 e ss. do Código Civil, julgo procedente o pedido para declarar a interdição de (…), declarando-o incapaz de exercer pessoalmente os atos e direitos de natureza patrimonial e negocial, não alcançando o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto, na forma do art. 4º, III, do Código Civil, e do art. 85 da Lei nº 13.146/2015.
Com fundamento no art. 1.775 da Lei Material Civil, nomeio Curadora (…), devendo prestar compromisso na forma do art. 759, I, do Código de Processo Civil e observar as demais prescrições aplicáveis a espécie. (…)“
No mesmo sentido posicionou-se a Corte de Minas Gerais, conforme se afere na seguinte ementa jurisprudencial:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INTERDIÇÃO. CABIMENTO. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. RECONHECIMENTO DA INCAPACIDADE RELATIVA. AMPLIAÇÃO DOS LIMITES DA CURATELA. 1. O indivíduo não pode ser mais considerado absolutamente incapaz, para os atos da vida civil, diante das alterações feitas no Código Civil pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. Lei nº 13.146/2015. 2. A patologia psiquiátrica descrita configura hipótese de incapacidade relativa, não sendo caso de curatela ilimitada (arts. 4º, inciso III, e 1.767, inciso I, do CC, com a redação dada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência). 3. A ampliação dos limites da curatela, para além dos atos patrimoniais e negociais, não é medida extraordinária, mas, sim, real, diante da incapacidade da parte (art. 755, inciso I, do CPC/2015).” (TJMG, APCV 1.0245.13.011494-6/001, Relª Desª Alice Birchal, j. 14.02.2017, DJEMG 21.02.2017)
A busca, portanto, deve ser em torno de granjear o máximo de proteção às pessoas com deficiências, bem como humanizar os procedimentos judiciais envolvendo tais indivíduos, buscando a sua repersonalização, sempre atento para que, a esse pretexto, não se incorra no risco de discriminá-los.
Nesse sentido, há de se questionar, como objetivo específico do presente trabalho, a possibilidade de se proceder à revisão das antigas ações de interdição, cujas sentenças já se encontravam com o trânsito em julgado na data em que entrou em vigor o Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Tal questão se apresenta como pertinente na medida em que se costuma apontar as sentenças de tais ações como sendo sentenças sujeitas à cláusula rebus sic stantibus. Quanto a tais sentenças, não resta nenhuma discussão acerca da possibilidade do ajuizamento de uma ação revisional quando sobrevém uma alteração do quadro fático, do que se depreende, portanto, a possibilidade das ações revisionais em face de tais sentenças.
Porém, o quadro atual é diferente, na medida em que o que aqui se discute é a possibilidade de se aceitar o ajuizamento de ações revisionais em face das sentenças que determinaram a interdição de pessoas com deficiência, cujo trânsito em julgado se deu em data anterior à entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência, sendo que tais ações revisionais teriam como causa de pedir não a alteração fática da situação destas pessoas interditadas, mas, sim, a alteração do arcabouço normativo com a entrada em vigor da Lei nº 13.146/2015, a qual concretiza a Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência e, portanto, a própria Constituição Federal.
Destarte, não obstante tenha permanecido inalterado o quadro clínico e biológico do curatelado, a situação destas pessoas não mais se encaixa no ultrapassado conceito de interditado, como sinônimo de total incapacidade, termo que não encontra mais suporte na atual sociedade e no ordenamento jurídico.
Quando se fala de curatela e a sua correspondente fixação, a primeira questão que se nos apresenta diz respeito à atual nomenclatura desta ação. Permanece o nome da ação como sendo Ação de Interdição, eis que a Seção IX do Capítulo XV do novo CPC ainda traz a nomenclatura de tal demanda como sendo “Da Interdição“, ou, diante do novo quadro normativo, o qual fora instaurado com a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência, teríamos uma nova nomenclatura para tal ação de fixação dos termos da curatela?
Quanto a tal questão, Cristiano Chaves de Farias, Rogério Sanches da Cunha e Ronaldo Batista Pinto (2016, p. 242) afirmam que “é a chamada ação de curatela – e não mais ação de interdição, para garantir o império da filosofia implantada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência“.
Neste sentido, com vistas a se saber da possibilidade do ajuizamento de ação revisional em face das sentenças de fixação de curatela com fundamento apenas e tão somente na alteração normativa promovida pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, é mister que se estabeleça qual o tipo de coisa julgada (se material, ou formal) produzida por este tipo de ação.
Com tal desiderato, inicialmente, mister se faz trazer à baila o fato de que as ações de curatela são sujeitas à jurisdição voluntária, trazendo o CPC/2015 em seu capítulo XV o tratamento dos procedimentos de jurisdição voluntária, sendo que os arts. 719 a 725 tratam das disposições gerais destes procedimentos, disciplinando a interdição (ou melhor, a curatela) nos arts. 747 a 758, prescrevendo, em seus arts. 759 a 763, disposições comuns à tutela e à curatela.
Pois bem, quanto à formação de coisa julgada formal ou material nas ações sujeitas à jurisdição voluntária, duas correntes principais buscam explicar a natureza dos atos praticados em procedimentos deste jaez, as doutrinas administrativista e jurisdicionalista.
Para os adeptos da teoria administrativista, os procedimentos de jurisdição voluntária não são na sua essência característicos da função jurisdicional do Estado, na medida em que não há lide, bem como não há partes, elementos essenciais, segundo esta doutrina, para o exercício típico da função jurisdicional do Estado, o que faz com que as sentenças prolatadas neste tipo de procedimento não se revistam do manto da coisa julgada material:
“Tomem-se como exemplo os procedimentos da apresentação e publicação de testamentos e da interdição dos incapazes, onde os traços da jurisdição voluntária emergem com nitidez.
Em ambos os casos, os requerentes não têm direitos subjetivos a exercitar contra os requeridos, mas visam realizar ato jurídico em juízo que crie ou instale um novo estado jurídico oponível erga omnes, mas sem o efeito da coisa julgada (grifos nosso), pois aquilo que emana tanto do procedimento dos testamentos como da interdição estará sempre passível de discussão em posteriores procedimentos de jurisdição contenciosa ou até mesmo de revisão e modificação em outros procedimentos voluntários.“
Por outro lado, os adeptos da doutrina jurisdicionalista afirmam que os atos praticados em procedimentos de jurisdição voluntária são típicos atos do exercício da função jurisdicional estatal, eis que nestes procedimentos não se pode negar a existência de partes, não em um sentido material (nota justificativa), mas em um sentido processual, sendo que a própria inexistência de lide neste tipo de procedimento não se reveste de um caráter absoluto na medida em que a mesma pode surgir no transcorrer da demanda, motivo por que a lide nestes procedimentos de jurisdição voluntária se caracteriza com a nota da eventualidade, o que faz com que os atos praticados nestes procedimentos sejam atos tipicamente jurisdicionais, tendo as suas sentenças, portanto, potencialidade para produzir a coisa julgada material.
O CPC/2015, ao não prever nenhum dispositivo semelhante ao art. 1.111 do CPC/73, ao que parece acolheu a tese jurisdicionalista, eis que tal visão melhor se coaduna com as doutrinas mais modernas do processo civil, sendo esta a visão do doutrinador Donizete (2015, s.p.), o qual assim se posiciona:
“O novo CPC trilhou o caminho da corrente jurisdicionalista e vitaminou (bombou!) os procedimentos de jurisdição voluntária com a imutabilidade da coisa julgada. A não repetição do texto do art. 1.111 do CPC/73 é proposital. A sentença não poderá ser modificada, o que, obviamente, não impede a propositura de nova demanda, com base em outro fundamento. A corrente administrativista está morta e com cal virgem foi sepultada. Também a jurisdição voluntária é jurisdição – tal como a penicilina, grande descoberta! – com aptidão para formar coisa julgada material e, portanto, passível de ação rescisória.”
Neste passo, estabelecida a premissa de que os procedimentos de jurisdição voluntária produzem coisa julgada material, é preciso chamar a atenção para o fato de que a ação rescisória aventada na passagem acima transcrita, só se faz possível naquelas hipóteses expressamente previstas no art. 966 do CPC, tendo sido produzidas, portanto, em procedimentos em que não foram devidamente observados os pressupostos processuais de validade da relação processual.
Porém, como já ressaltado alhures, a questão que aqui se coloca é diversa, qual seja é possível a revisão da coisa julgada produzida em uma ação de interdição (curatela), cujo trânsito em julgado se deu em data anterior à vigência da Lei nº 13.146/2015, com fundamento apenas e tão somente em alterações promovidas no quadro normativo por esta Lei, sem qualquer alteração no quadro fático, coisa julgada essa produzida em procedimento em que foram observados todos os pressupostos processuais de validade da relação jurídica processual, não havendo de se cogitar, por conseguinte, do ajuizamento de ação rescisória?
A resposta há de ser afirmativa. Ora, ainda que algumas ações de curatela tiveram produção da coisa julgada material anterior à entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência, é de se ressaltar que a coisa julgada visa essencialmente à estabilização das relações sociais, sendo que sua revisão neste momento, ainda que não tenha ocorrido qualquer alteração fática, não porá em risco qualquer relação jurídica preexistente, inexistindo, por consequência, qualquer risco de lesão à segurança jurídica, valor resguardado pelo instituto da coisa julgada material.
No mais, como a coisa julgada produzida neste tipo de ação se protrai no tempo, as mesmas se classificam como sendo sujeitas à cláusula rebus sic stantibus, devendo ser ampliada a hipótese de revisão destas ações de curatela para abarcar também a alteração do quadro normativo trazido pela Lei nº 13.146/2015, ainda mais se considerarmos que tal diploma normativo visa a dar concretização às disposições da Convenção Internacional da Pessoa com Deficiência, norma com status constitucional, conforme já mencionado acima, consagrando-se o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, não se podendo restringir, portanto, a ação revisional das sentenças prolatadas nas ações de curatela apenas às hipóteses de alteração do quadro fático.
Ademais, tal forma de se ler o ordenamento jurídico, concretiza o disposto no art. 4.1, letra a da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, sendo que a missão trazida por este dispositivo, com certeza também se impõe aos atos emanados do Poder Judiciário, pois daquele dispositivo convencional claramente se pode depreender medidas judiciais na expressão “e de qualquer outra natureza“, a qual fora prescrita ao lado das medidas legislativas e administrativas.
No mais, frise-se que existem opiniões no sentido de que não seria necessário o ajuizamento de ação revisional para se adequar às sentenças já transitadas em julgado quando da entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência à nova realidade normativa, fazendo-se necessário, portanto, apenas uma releitura dos termos de curatela a esta nova normatização da matéria, sendo este o posicionamento de Gagliano (2016, s.p.).
Porém, com as devidas vênias, tal entendimento não pode prosperar, entende-se neste trabalho que não apenas o ajuizamento das ações revisionais em face das sentenças de interdição já transitadas em julgado quando da vigência da Lei nº 13.146/2015 se mostra juridicamente possível, bem como se apresentam ditas ações revisionais com a nota da essencialidade, eis que, conforme a doutrina jurisdicionalista da jurisdição voluntária, aludidas sentenças produziram coisa julgada material, as quais fixaram marcos de interdição, sendo que apenas se promovendo uma releitura dos termos de curatela, além de se desconsiderar a coisa julgada material, põe-se em risco a segurança jurídica.
Este risco se apresentaria na medida em que cada pessoa seria o intérprete dos termos de curatela já existentes, os quais se apresentam como sendo uma materialização de uma sentença judicial, bem como essas interpretações poderiam variar de um caso para outro, sendo que, em contrapartida, através de ação revisional, poder-se-á proceder a uma nova perícia, bem como a uma melhor formulação de elementos de convencimento com vistas a ter uma real dimensão da situação particular de cada indivíduo, cumprindo-se, por conseguinte, o desiderato do Estatuto da Pessoa com Deficiência de se colocar um ponto final na limitação automática da autonomia do curatelando, sem se levar em conta as suas características pessoais.
No mais, ainda que não se adote a doutrina jurisdicionalista da jurisdição voluntária, a qual propugna pela formação de coisa julgada material nestes procedimentos, sendo que neste trabalho a linha adotada é a corrente jurisdicionalista da jurisdição voluntária; adotando-se a corrente administrativista, segundo a qual, nestes procedimentos de jurisdição voluntária, não há que se falar em coisa julgada material, ainda assim, é de se reconhecer a necessidade do ajuizamento das ações revisionais, eis que para a corrente administrativista, em um processo de jurisdição voluntária, a função desempenhada pelo Poder Judiciário se caracteriza como uma função administrativa, o que faz com que, por via de consequência, a sentença, neste tipo de procedimento, assemelhe-se, para esta corrente, quanto ao conteúdo, a um ato administrativo, daí o porquê da imperiosidade de um outro ato, revogando-se o anterior, o qual se tornou contrário à ordem jurídica, por contrariedade à nova normatividade, algo similar ao que ocorre com a retirada dos atos administrativos propriamente ditos, especificamente, na modalidade caducidade, conforme os ensinamentos de Mello (2004, p. 409).
Assim, lastreado nos ditames constitucionais, aqui, por óbvio, incluindo-se as disposições da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, consegue-se extrair o espírito de igualdade e justiça, bem como a preocupação ao fiel resguardo da dignidade da pessoa humana, razão por que se defende, seja por iniciativa do próprio indivíduo afetado pela sentença de curatela, ou de instituições, a exemplo da Defensoria Pública e do Ministério Público, a reformulação das interdições/curatelas, sobretudo, naqueles casos em que nitidamente não se levou em consideração a vontade daqueles que possam exprimi-la, fazendo-se com que as curatelas doravante fixadas, bem como aquelas já fixadas anteriormente, possam se adequar à ordem constitucional, respeitando-se a individualidade de cada ser humano, os quais são iguais justamente em suas diferenças, promovendo-se em última instância a dignidade da pessoa humana.
Deficiência, física ou psíquica, não é, definitivamente, sinônimo de incapacidade. Limitação não é inaptidão. Não se pode admitir que os (pré) conceitos do intérprete em torno das pessoas com deficiências restrinjam o espectro de habilidades (sentimental, sexual, intelectual, profissional, artística, etc.) e de liberdades destas pessoas, ex vi, art. 6º do Estatuto em comento.
Com a reformulação da teoria das incapacidades civis, necessário se faz a revisão processual das interdições estabelecidas em dissonância com o modelo humanizante e social que se pretende concretizar com o Estatuto da Pessoa com Deficiência, buscando-se proteger o indivíduo em suas necessidades intrínsecas e ontológicas.
Conclusão
O presente trabalho teve como objetivo demonstrar a evolução do conceito de deficiência na ordem jurídica nacional, culminando com a promulgação da Constituição Federal de 1988, bem como a incorporação ao direito pátrio da Convenção das Nações Unidas das Pessoas com Deficiência, sendo este o único tratado que fora incorporado ao direito brasileiro tendo seguido o disposto no art. 5º, § 3º, da Constituição Federal, apresentando, portanto, o status de emenda constitucional.
Nesta evolução legislativa, chega-se à promulgação da Lei nº 13.146/2015, cuja vigência se deu em janeiro de 2016, sendo que tal Lei teve como missão regulamentar a convenção das Nações Unidas das Pessoas com Deficiência, positivando no ordenamento infraconstitucional toda a filosofia que alicerça hodiernamente o tratamento que deve ser dispensado às pessoas com deficiência, trazendo, como uma das maiores inovações para o direito nacional, a alteração promovida no campo das incapacidades, ao colocar apenas o critério etário como o único definidor da incapacidade absoluta, reconfigurando-se por completo a maneira como se deve proceder doravante com ação de interdição, ou, melhor se adequando à filosofia da nova legislação, ação de curatela.
Como se pôde observar ao longo deste trabalho, esta evolução normativa no trato da pessoa com deficiência tem como pedra angular no ordenamento jurídico brasileiro o princípio da dignidade humana, o qual tem assento constitucional, tendo a partir daí surgido o questionamento deste trabalho: como se tratar as ações de interdição que já estavam como o trânsito em julgado no dia da entrada em vigor da Lei nº 13.146/2015, eis que, segundo a teoria jurisdicionalista da jurisdição voluntária, que fora adotada neste artigo, tal tipo de jurisdição também tem o condão de produzir a coisa julgada material, instituto que também tem proteção constitucional, mais especificamente no art. 5º, XXXVI, da Carta Magna.
Ora, diante do aparente confronto entre a nova legislação que versa acerca das questões das pessoas com deficiência, a Lei nº 13.146/2016 e coisa julgada material produzida no bojo das ações de interdição que já tinham transitado em julgado quando da entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência, sendo que sempre se deve ter em mente que, apesar do status infraconstitucional da Lei nº 13.146/2015, tal normativa tem como missão regulamentar matéria constitucional, qual seja a Convenção das Nações Unidas das Pessoas com Deficiência; optou-se neste trabalho pela conciliação entre as orientações constitucionais, isto é, reconhecendo-se a coisa julgada material das ações de interdição que já se encontravam transitadas em julgado quando da entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência, buscando-se com isso a mantença da segurança jurídica nas relações sociais, elemento sem o qual não há como se pensar em um Estado Democrático de Direito, porém também se reconhecendo a imperiosa necessidade de não se eternizar essa coisa julgada das antigas ações de interdição, devendo ser permitido, portanto, o ajuizamento de ações revisionais a partir da mudança única e exclusivamente normativa, sendo que a partir destas ações revisionais se poderá analisar individualmente a situação de cada qual, respeitando-se a coisa julgada material e adequando a nova sentença à realidade de cada uma dessas pessoas, impedindo-se, por conseguinte, a insegurança jurídica que poderia advir de se deixar a interpretação do novo limite das antigas interdições a cada caso concreto e a partir da visão de cada intérprete.
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[1] “(…) a circunstância de que a dignidade, tal qual consagrado na Constituição Federal de 1988 (especialmente no art. 1, III), ocupa a posição tanto de fundamento e tarefa de nossa República quanto de princípio normativo e, portanto, juridicamente vinculante em permanente diálogo com os direitos fundamentais e a própria legitimidade da ordem constitucional.”
[2] “Assim, a expressão utilizada pela Convenção da ONU sobre Direitos das Pessoas com Deficiência é ‘pessoas com deficiência’. Essa Convenção foi aprovada pelo Congresso Nacional seguindo-se o rito especial do art. 5º, § 3º, e possui, consequentemente, estatuto normativo equivalente à emenda constitucional. Portanto, houve atualização constitucional da denominação para ‘pessoa com deficiência’, que, a partir de 2009, passou a ser o termo utilizado.”