O DIREITO EMPRESARIAL NÃO SE PRESTA A UMA CONSUMERIZAÇÃO
Bertrand Wanderer
SUMÁRIO: 1 Ambiente Institucional. 2 Recurso Especial 1.321.083/PR. 3 Distinção entre Contratos Interempresariais e Contratos Consumeristas. 4 Bibliografia.
1 Ambiente Institucional
Os contratos devem ser considerados no ambiente que os circunda, condicionando-os. Não é possível desgarrar o negócio da realidade em que está inserto (chamada pelos economistas de “ambiente institucional“), tornando-o peça estéril de obrigações desconexas da realidade[1].
Mudanças ocorreram e serviram para influenciar substancialmente o papel do mercado e das relações econômicas. Os acontecimentos históricos, como a Revolução Industrial e a introdução dos ideais capitalistas, o crescimento demográfico, os avanços tecnológicos e a globalização de mercados contribuíram para a ampliação das relações entre os indivíduos e entre países. Essas mudanças são, sem dúvida, responsáveis pelo aumento das operações econômicas.
A vida econômica desdobra-se através de imensa rede de contratos que a ordem jurídica oferece aos sujeitos de direito para que regulem com segurança seus interesses. Todo contrato tem uma função econômica, que é, afinal, sua causa[2]. Desse modo, “todo contrato é a veste jurídica de determinada operação econômica“[3].
O contrato é o instituto jurídico que serviu, e continua servindo, como meio de ligação entre duas áreas do conhecimento humano, sendo, por essa razão, objeto de exame tanto dos economistas quanto dos juristas. Em passagem do livro O Contrato, Enzo Roppo[4] relata que, se as operações econômicas há muito fazem parte da existência da civilização humana, o contrato, instituto posterior, reflete “a progressiva captura das operações econômicas por parte do direito“[5].
Segundo esse autor, a apreensão das relações econômicas pelo direito visa “dar ao complexo das formas de circulação da riqueza um arranjo racional, não casual e não arbitrário“[6]. O que se evidencia de uma análise histórica das operações econômicas é sua crescente interseção com o contrato, tendo ocorrido um aumento da relevância dada pelos sistemas econômicos e ordenamentos jurídicos ao instituto contratual. Isso ocorreu em virtude da “multiplicação e complexidade das operações econômicas, por sua vez determinadas pela crescente expansão das actividades de produção, de troca, de distribuição de serviços” [7].
Orlando Gomes, antevendo as mudanças do instituto contratual – o qual passou a se estender no tempo, em oposição ao modelo clássico de contrato de troca, instantâneo -, já advertia que os estudos jurídicos voltados ao exame do contrato devem ser realizados com o auxílio de outros ramos da ciência, notadamente a sociologia, a política e a economia, demonstrando o “abandono da posição manualística assumida nos compêndios e cursos adotados nas escolas de ensino jurídico” [8].
Esta nova concepção do direito dos contratos implica uma leitura jamais feita no mundo dos negócios jurídicos. Legislação, doutrina e jurisprudência movem-se para aperfeiçoar os limites da justa distribuição dos direitos e obrigações entre as partes. Nesta perspectiva, os contratos foram inseridos em um processo de reestruturação do seu equilíbrio econômico, o que leva à busca do estabelecimento de uma equivalência prestacional que assegura aos interessados, intrínsecos e extrínsecos ao contrato, uma proteção objetiva da confiança e da boa-fé[9].
O objetivo do contrato não é promover a igualdade das partes que celebram a avença. Ao contrário, o contrato se apresenta como instrumento útil na definição de uma “saída negocial” para aproximar duas partes que são completamente diferentes e que possuem interesses diversos e opostos[10].
Desta forma, os contratos são utilizados como instrumentos para que os agentes econômicos alcancem os seus interesses dentro do mercado, do ambiente institucional. De outro modo, o desenvolvimento do mercado se dá por meio das relações entre os seus agentes econômicos, as quais se concretizam pela celebração de contratos. Assim, o mercado é identificado como um emaranhado de relações contratuais, tecido pelos agentes econômicos.
Para compreender o mercado, necessário se faz entender os contratos que nele são firmados, o que leva necessariamente à análise dos sujeitos que os celebram. Um desses sujeitos é a empresa, a qual deve ser compreendida como um “agente que se move nesse ambiente institucional“; logo, “existe somente porque age“[11].
As empresas firmam contratos com os mais diferentes agentes econômicos, de modo que, havendo diferentes espécies de contratos, cada um apresentará “características específicas e, consequentemente, exigirá um tratamento jurídico peculiar” [12].
É dentro dessa perspectiva que o presente artigo visa analisar recente julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça. No caso, a Terceira Turma da referida Corte, por unanimidade, decidiu pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor para reger a relação jurídica estabelecida entre duas empresas no tocante à compra de uma aeronave.
Em que pese o devido respeito pelo entendimento manifestado no acórdão em referência, necessário se faz um olhar mais criterioso para o caso. O objetivo ora proposto visa ponderar, mesmo que brevemente, sobre a necessidade de se delinear e reconhecer contornos mais nítidos entre os contratos de consumo e os chamados interempresariais. Tal diferenciação se faz premente no sentido de melhor compreender os ambientes em que esses instrumentos são usados, bem como buscar evitar o uso indiscriminado e até mesmo equivocado da proteção ao consumidor em relações jurídicas em que as partes que a compõem, por características que lhe são próprias, estão em situação de igualdade.
De modo simples e objetivo, a especificidade do direito empresarial repousa em três pilares: rapidez (celeridade nas operações negociais), segurança (tutela da boa-fé) e reforço do crédito (simplificação da movimentação dos valores) [13]. Para isso precisamos de um instrumento hábil a coordenar essa interação social, qual seja o contrato. Desse modo, seguindo esse raciocínio, é importante diferenciar os contratos interempresariais das demais espécies contratuais e, para tanto, devemos considerar as partes que o celebram, o ambiente que os circunda e a sua função econômica, que é a sua causa. A análise dessas circunstâncias aproxima o direito e a economia. Logo, o equilíbrio que se busca não é apenas intrínseco (entre os contratantes), mas também extrínseco (mercado).
Portanto, seguindo o raciocínio ora apresentado, buscar-se-á, inicialmente, apresentar a decisão do STJ para, na sequência, tecer considerações que se consideram pertinentes a fomentar a discussão quanto à lógica própria a regular os contratos interempresariais, evitando-se a consumerização indiscriminada desses instrumentos e buscando contribuir para que cada espécie de contrato seja corretamente compreendido, interpretado e, especialmente, cumprido.
2 Recurso Especial 1.321.083/PR
O caso tratado no Recurso Especial 1.321.083/PR versava sobre resolução contratual entre duas empresas. A Skipton S/A, empresa que tem como objeto social a “administração de bens imóveis“, celebrou com a Líder Táxi Aéreo S/A, vendedora exclusiva, no Brasil, de aviões produzidos pela empresa Hawker Beechcraft Corporation, contrato com a finalidade de adquirir desta uma aeronave King Air B200GT, com o propósito de conferir dinamismo à locomoção de seus diretores, funcionários e potenciais clientes. Ocorre que a Skipton ajuizou ação de resolução contratual em desfavor da Líder, em virtude de suposto inadimplemento, postulando, assim, a devolução dos valores que antecipou a título de arras confirmatórias da compra da aeronave. A ação foi proposta na Comarca de Curitiba, sede da autora. A empresa Líder, que tem sede em Belo Horizonte, arguiu exceção de incompetência, insurgindo-se contra o fato de a então demandante ter lançado mão da prerrogativa de foro prevista no art. 101, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor, segundo o qual na ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços o autor poderá ajuizar o pedido no foro de seu domicílio.
A demandada aduziu que a relação objeto da discussão possuía caráter paritário, pelo que não haveria falar na existência de relação de consumo. Desse modo, requereu o reconhecimento da incompetência do Juízo da 12ª Vara Cível da Comarca de Curitiba, haja vista que a demanda deveria ter sido proposta em Belo Horizonte, local da sua sede, em obediência às regras gerais de competência previstas no Código de Processo Civil.
O juízo de primeiro grau rejeitou a exceção, o que ensejou a interposição de agravo de instrumento pela Líder Táxi Aéreo S/A. A Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade, negou provimento ao referido recurso, sob o argumento de que é possível caracterizar a pessoa jurídica como consumidora quando não utiliza os serviços prestados pela fornecedora como meio (insumo) à confecção de produtos finais a serem por ela comercializados. Acrescentou, ainda, a decisão do TJPR que a atividade da compradora não é a revenda de aeronaves, razão pela qual ela se enquadraria na condição de destinatária final do produto.
Ato contínuo, a empresa Líder interpôs recurso especial sob o fundamento central de que inexiste relação de consumo na hipótese vertente por não se poder afirmar hipossuficiente a autora da demanda. Sustentou também que tanto doutrina quanto jurisprudência afastam a aplicação da legislação consumerista dos casos em que o bem é utilizado para incrementar os negócios e as atividades comerciais do seu adquirente, postulando, ao final, pelo reconhecimento da incompetência do Juízo da Comarca de Curitiba para o processamento e julgamento da ação ordinária em curso.
O relator do feito, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, em decisão monocrática, negou seguimento ao recurso, sustentando que a aeronave foi adquirida para atender a uma necessidade da própria pessoa jurídica (deslocamento de sócios e funcionários), não para ser incorporada ao serviço de administração de imóveis.
Ainda irresignada, a recorrente interpôs agravo regimental, levando o feito a julgamento pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O referido colegiado, acompanhando o entendimento do relator, admitiu a aplicação do Código de Defesa do Consumidor em favor da empresa Skipton. Os ministros da Terceira Turma aplicaram a jurisprudência já consolidada no STJ, a qual adota o conceito de consumidor da teoria finalista mitigada, que considera consumidor a pessoa física ou jurídica que adquire o produto como seu destinatário final, isto é, o destinatário que retira o bem de circulação no mercado para satisfazer sua própria necessidade, e não para utilizá-lo no processo produtivo (por meio de transformação, montagem, beneficiamento ou revenda).
Portanto, o colegiado, de forma unânime, acompanhou o voto do Ministro Sanseverino e manteve a competência da Justiça do Paraná para o julgamento da ação.
3 Distinção entre Contratos Interempresariais e Contratos Consumeristas
Apesar da unificação do direito das obrigações, viu-se, recentemente, a declaração de independência do direito do consumidor, uma vez que os assuntos atinentes a essas relações econômicas são regidos por princípios próprios. Logo, para que haja uma aplicação adequada dos institutos, a fim de bem regular as transações eventualmente estabelecidas, necessária se faz a sua separação em relação a outros campos de intercâmbio econômico que não guardem com ele as mesmas características.
A chamada sociedade de consumo tem seu início com o processo de industrialização, que passa a abastecer o mercado com produtos em massa, criando uma submissão caracterizada de um lado pelo consumidor e de outro pelo fornecedor. O primeiro, para atender as suas necessidades de consumo, submete-se a toda e qualquer exigência formulada pelo segundo, o qual acaba por impor suas condições ao mercado. A sociedade de consumo é marcada, dessa forma, por uma constante desigualdade entre aqueles que contratam: consumidor – parte mais fraca da relação – e fornecedor – parte que impõe suas vontades na contratação.
Diante dessa realidade, que se tornou mais explícita após a Revolução Industrial e que se tornou uma constante em todo o mundo ocidental, surge, no Brasil, em 11 de setembro de 1990, o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078), legislação protetiva do consumidor que tem por objetivo atender a um anseio constitucional [14], restabelecendo o equilíbrio de forças que se espera em um contrato dessa natureza.
Dessa forma, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor na esfera contratual depende da existência de um contrato de consumo. Necessário se faz destacar os contratos de consumo dentre os demais contratos privados, que estão submetidos às normas do Código Civil ou leis especiais.
Para que se identifique um contrato como de consumo, é imperioso que, em um dos polos da relação, esteja presente o consumidor e, no outro, o fornecedor. Necessário, assim, conhecer o conceito de consumidor e fornecedor para que seja identificado o contrato em comento.
A definição de consumidor, no direito brasileiro, é oferecida pelo art. 2º do Código de Defesa do Consumidor, no qual está disposto que “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final“. O dado importante que se extrai da definição de consumidor é o fato de se retirar determinado bem do mercado (destinatário final). A ênfase dada ao conceito de consumidor refere-se a sua posição na cadeia de circulação de riqueza por ele ocupada.
Outro ponto que chama a atenção é quanto aos sujeitos que podem se posicionar como consumidores, isto é, pessoas físicas ou jurídicas. Veja-se que o consumidor digno da proteção do Código de Defesa do Consumidor seria a pessoa física ou jurídica que adquire bens ou serviços para a satisfação de suas necessidades pessoais (destinatário final), não trespassando aqueles bens para terceiros, nem se valendo deles como instrumentos produtivos[15].
Seguindo raciocínio semelhante, temos Filomeno, que, após criticar nossa legislação consumerista por incluir as pessoas jurídicas no conceito de consumidor, ressalta que, apesar de tal previsão, elas só podem ser assim consideradas se forem consumidoras finais dos produtos e serviços que adquirem, e não quando pretenderem utilizá-los como insumos necessários ao desempenho de atividade lucrativa[16].
Marques, ao tratar do conceito de consumidor na legislação brasileira, faz longa retrospectiva sobre a posição dos minimalistas, que o restringem, e dos maximalistas, que o ampliam, concluindo que a melhor interpretação do Código de Defesa do Consumidor é a finalista, afirmando que apenas a interpretação teleológica do art. 2º terá o condão de estabelecer quem pode ser considerado consumidor para receber a tutela especial do Código. Logo, em regra, estão subordinados à legislação consumerista os contratos celebrados entre o fornecedor e o consumidor não profissional, e entre o fornecedor e o consumidor, o qual pode ser um profissional, mas que, no contrato firmado, não objetiva lucro, uma vez que o mesmo não diz respeito à sua atividade profissional, quer seja este pessoa física ou jurídica[17].
Nesse mesmo sentido, Arnoldo Wald afirma que nosso Código de Defesa do Consumidor, ao incluir a pessoa jurídica no elenco do consumidor, esteve em mira de determinadas personalidades destituídas de atividade tipicamente empresarial (fundações e associações). Por outro lado, pondera que a proteção consumerista até poderia ser invocada por pessoa jurídica de direito comercial, mas somente nos casos em que os bens ou serviços adquiridos não tivessem qualquer vinculação com sua respectiva atividade empresarial, isto é, “não se tratando de bens ou de serviços utilizados, ou utilizáveis, direta ou indiretamente, na produção ou comercialização“[18].
O conceito encontrado no art. 2º da legislação consumerista define para o mundo jurídico a figura do consumidor em sentido estrito. Contudo, ampliando ainda mais o conceito de consumidor, cabe observar a disposição do art. 29 do mesmo diploma legal. Esse artigo caracteriza-se por ser uma disposição especial sobre o tema, uma vez que amplia o conceito de consumidor, a fim de estender o seu âmbito de proteção.
O respectivo dispositivo equipara a consumidor todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas previstas nos capítulos que tratam das práticas comerciais abusivas e da proteção contratual. Uma das interpretações que se extrai desse artigo é que ele permite que não consumidores se utilizem do Código de Defesa do Consumidor para extirpar do mercado práticas ou contratos abusivos, favorecendo, assim, a relação de consumo. “Trata-se de um processo de purificação do mercado por meio da utilização das regras do Código por não consumidores, ou melhor, por aqueles equiparados a consumidores“[19].
Dessa forma, para que não consumidores se utilizem dessa disciplina, beneficiando-se da proteção do Código, é imprescindível que a prática comercial ou o contrato possa lesar o consumidor. “A proteção, em última análise, é do consumidor stricto sensu. Caso a prática ou contrato seja eminentemente empresarial, em hipótese alguma pode estar presente em um dos polos a figura do consumidor, pois, desta forma, estar-se-ia afastada a aplicação do Código de Defesa do Consumidor por força do art. 29“[20].
Deve-se esclarecer, ainda, que o Código em apreço não se aplica àqueles que não adquirem o bem como destinatário final, isto é, não se aplica àqueles que adquirem bens de produção, ou melhor, insumos. É nesse sentido que se apresenta o Enunciado nº 20 da I Jornada de Direito Comercial ao determinar que “não se aplica o Código de Defesa do Consumidor aos contratos celebrados entre empresários em que um dos contratantes tenha por objetivo suprir-se de insumos para sua atividade de produção, comércio ou prestação de serviços“.
A aquisição de bens ou serviços com o objetivo de utilizá-los em uma cadeia produtiva desqualifica a relação de consumo[21], requerendo a aplicação de regramento diverso, que será definido pela análise das partes que compõem a relação negocial. Tratando-se de contratos celebrados entre empresários, aplica-se o direito empresarial. Caso contrário, por exclusão, aplicar-se-á o direito civil.
É dentro deste contexto que o caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça se insere. Considerando o contrato firmado pelas partes e a realidade fática traduzida nos autos, verifica-se que a aeronave foi adquirida para atender a uma necessidade da própria pessoa jurídica autora da demanda, isto é, facilitar o deslocamento de sócios e funcionários no exercício precípuo da sua atividade (administração imobiliária), bem como no atendimento aos seus clientes.
De outro modo, avaliar a aquisição do avião como consequente rompimento da cadeia econômica para o atendimento de necessidades pessoais de sócios ou funcionários, conforme ponderou o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva em seu voto-vista, acarreta o entendimento de clara confusão patrimonial, ensejando a busca de responsabilidade dos administradores ou sócios por expressa afronta ao estatuto social da empresa.
O objeto do contrato em questão, diverso da conclusão alcançada pela Terceira Turma do STJ, integra diretamente o serviço posto pela Skipton S/A à disposição do mercado, motivo pelo qual não se deveria classificar a relação em apreço como de consumo, afastando-se de seu julgamento a incidência da lei consumerista.
Importante pontuar que o Código de Defesa do Consumidor não regula situações em que apesar de se poder identificar um “destinatário final“, o produto ou serviço é entregue com a finalidade específica de servir de “bem de produção” para outro produto ou serviço e, via de regra, não está colocado no mercado como bem de consumo, mas como de produção; o consumidor comum não o adquire [22].
Assim, quando a atividade primordialmente desenvolvida for a empresarial, aquele que a pratica não pode se valer da jurisdição consumerista[23], haja vista que a aquisição que visa a um fim profissional não é ato de consumo na acepção jurídica. Ato profissional apõe-se a ato de consumo[24].
Nesse sentido, considerando a dinamicidade do mercado imobiliário, compreende-se que a aquisição da aeronave pela empresa que explora a administração desse nicho comercial visa proporcionar aos seus sócios, bem como a seus funcionários, maior liberdade de locomoção para melhor administração das atividades da própria empresa (âmbito interno), bem como no atendimento de sua atividade precípua, beneficiando os seus respectivos clientes (âmbito externo). Dito de outra maneira, a aquisição da aeronave serviu claramente como bem de produção do serviço prestado, uma vez que visou incrementar e desenvolver a sua atividade empresarial.
Outro ponto a ser considerado e não aventado pela Corte Superior foi quanto à qualidade das partes que compõem a demanda. Em que pese haver diferenças econômicas entre os agentes, não será o direito do consumidor que tutelará as relações negociais entre empresários ou sociedades empresárias, mas, sim, o direito empresarial. Veja-se que a lógica do direito empresarial não pode e não deve ser aplicada, tal e qual, a relações jurídicas das quais participam terceiros que não sejam empresários. Por exemplo, as relações entre fabricantes e consumidores (inclusive para fins de proteção de mercado) são regidas por institutos diversos, nos quais se garante proteção para a parte tida como hipossuficiente [25].
Entenda-se a hipossuficiência do consumidor como uma situação de vulnerabilidade que lhe é própria, haja vista a sua carência de informações e conhecimentos específicos sobre o bem ou serviço que deseja adquirir. Nesse sentido, a vulnerabilidade não deve ser compreendida como um princípio, mas como um pressuposto fático (o consumidor “é” vulnerável). A vulnerabilidade é, assim, um pressuposto fático e também um pressuposto normativo, quando atua na interpretação das regras do Código de Defesa do Consumidor [26].
Por outro lado, o empresário não deve ser considerado hipossuficiente por falta de informações para a realização do negócio. Tendo em vista que sua atividade é realizada de modo profissional, as decisões empresariais dependem da suposição de que todas as informações relevantes estejam razoavelmente disponíveis, nas circunstâncias, e no domínio das técnicas de comunicação e informação [27]. Logo, exige-se dos empresários uma atuação com grau de cuidado, diligência e habilidade de uma pessoa razoavelmente prudente, devendo ser levado em consideração, para tanto, seu sucesso nas atividades empresariais, sua experiência e conhecimento dos riscos.
O risco é inerente à atividade empresarial. Entretanto, se não é possível eliminá-lo, ao contrário se pode relativizá-lo. Trata-se da possibilidade de distribuição ou alocação dos riscos do negócio pelos agentes econômicos, a qual se concretiza por meio da formalização do contrato [28]. Desse modo, o contrato desempenha uma função econômica [29], ou seja, de reduzir e alocar/distribuir riscos entre as partes [30].
Reconhecer que o risco existe em todo negócio jurídico de longo termo é o primeiro passo para compreender que uma das formas de mitigá-lo “é celebrar um contrato em que se estimam condições e situações que possam ocorrer no seu cumprimento” [31]. Completando esse raciocínio, acentua Antonio Fici que ao risco devem se acrescentar também as incertezas das transações, sendo que essa não deve ser compreendida apenas pelos fatores comuns de risco, conhecidos pela doutrina interna como caso fortuito, força maior e fato do príncipe. A tais hipóteses adicionam-se os eventos futuros não controláveis e não calculáveis pelas partes e os comportamentos que os contraentes têm no curso da execução do contrato [32].
A incerteza é apontada, assim, como um dos fatores objetivos para a existência dos chamados custos de transação nas operações econômicas. Isso ocorre porque nem sempre será certo o resultado previsto pela atividade negocial, uma vez que algumas operações são caracterizadas pela incerteza dos resultados. Logo, necessária se faz a diligência dos agentes negociais quando da celebração dos negócios jurídicos, a fim de se resguardarem dos riscos e das incertezas que envolvem as suas atividades, do contrário deverão assumir suas consequências, pois esse resultado faz parte das regras do jogo econômico.
Assim, torna-se evidente que os negócios interempresariais merecem tratamento interpretativo diverso daquele reservado às relações entre fornecedores e consumidores, porque estas últimas obedecem a princípios que não podem ser aplicados aos vínculos entre empresários, sob pena de enfraquecermos as bases do direito comercial, prejudicando futuras transações ante a insegurança jurídica imposta ao mercado pela aplicação inadequada de institutos estranhos à prática mercantil. Necessária, dessa forma, no desenvolvimento de posteriores análises de contratos firmados entre empresários, a consideração de regras, princípios e institutos que identifiquem os contratos ditos interempresariais, a fim de lhes conferir um caráter de unicidade, bem como reforçar a sua posição de categoria independente no mundo jurídico.
4 Bibliografia
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[1] FORGIONI, Paula A. Teoria geral dos contratos empresariais. São Paulo: RT, 2011. p. 74.
[2] GOMES, Orlando. Contratos. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 22.
[3] MARTINS-COSTA, Judith. Os contratos de leasing financeiro. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo, v. 49, jul. 2010, p. 112.
[4] ROPPO, Enzo. O contrato. Trad. portuguesa de Ana Coimbra e M. Januário Gomes. Coimbra: Almedina, 1988. p. 15.
[5] Em verdade, as operações econômicas sempre existiram na sociedade, mas a importância da relação entre o direito e a economia não foi, desde o início, reconhecida. Só a partir do momento em que o Estado passa a regular e legislar sob aspectos econômicos é que esse vínculo começa a se estreitar e, aos poucos, fortalecer-se.
[6] ROPPO, Enzo. O contrato. Trad. portuguesa de Ana Coimbra e M. Januário Gomes. Coimbra: Almedina, 1988. p. 18.
[7] Ibidem, p. 22.
[8] GOMES, Orlando. Contratos. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 11.
[9] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4. ed. São Paulo: RT, 2002. p. 177-178.
[10] THEODORO Jr., Humberto. O contrato e sua função social. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 46.
[11] FORGIONI, Paula A. Teoria geral dos contratos empresariais. São Paulo: RT, 2011. p. 74.
[12] Ibidem, p. 28.
[13] REINHARD, Yves; CHAZAL, Jean-Pascal. Droit commercial. 6. ed. Paris: Litec, 2001. p. 27.
[14] Dispõe a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu art. 5º, inciso XXXII: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”.
[15] CALÇAS, Manoel de Queiroz Pereira. Revisão judicial dos contratos entre empresários. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8953>. Acesso em: nov. 2014.
[16] FILOMENO, José Geraldo Brito et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998. p. 27.
[17] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT, 1995. p. 107.
[18] WALD, Arnoldo. A lei de defesa do consumidor – sua abrangência. In: Lei de Defesa do Consumidor. São Paulo: Cadernos do IBCB, 1991. n. 22. p. 57.
[19] MIGUEL, Paula Castello. Contratos entre empresas. São Paulo: RT, 2006. p. 74.
[20] Ibidem, p. 75.
[21] CALÇAS, Manoel de Queiroz Pereira. Revisão judicial dos contratos entre empresários. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8953>. Acesso em: nov. 2014.
[22] NUNES, Luiz Antônio. A empresa e o Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Artpress, 1991. p. 20.
[23] COMPARATO, Fábio Konder. A proteção do consumidor: importante capítulo do direito econômico. Revista de Direito Mercantil, v. 15-16, p. 90-91.
[24] BENJAMIN, Antonio Herman. O conceito jurídico de consumidor. São Paulo: RT, 1998. p. 77.
[25] FORGIONI, Paula A. A interpretação dos negócios empresariais no novo Código Civil brasileiro. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo: Malheiros, v. 42, n. 130, abr./jun. 2003, p. 16.
[26] MARTINS-COSTA, Judith. Os campos normativos da boa-fé objetiva: as três perspectivas do direito privado brasileiro. In: AZEVEDO, Antonio Junqueira de; TÔRRES, Heleno Taveira; CARBONE, Paolo (Org.). Princípios do novo Código Civil brasileiro e outros temas. Homenagem a Tullio Ascarelli. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 395.
[27] LUPION, Ricardo. Boa-fé objetiva nos contratos empresariais: contornos dogmáticos dos deveres de conduta. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 162.
[28] Exemplo de atribuição legal de responsabilidade decorrente de riscos do negócio encontra-se no art. 492 do Código Civil, que preconiza que, “até o momento da tradição, os riscos da coisa correm por conta do vendedor, e os do preço por conta do comprador”. Exemplo de atribuição contratual da responsabilidade em razão de riscos está na cláusula “Freeon Board”, que atribui, nas relações mercantis, ao vendedor o encargo de entregar a mercadoria a bordo, pelo preço estabelecido, ficando as despesas decorrentes do transporte (frete e seguro) por conta do comprador, bem como os riscos, até o porto de destino (FORGIONI, Paula A. Teoria geral dos contratos empresariais. São Paulo: RT, 2011. p. 137).
[29] Pinheiro e Saddi nos esclarecem que, a partir dos estudos do Law and Economics, inclui-se no conceito clássico de contrato o denominado risco contratual. Apropriando-se de uma definição mais econômica, os contratos passam a ser compreendidos como mecanismos de distribuição de risco, cuja “eficiência é um dos principais objetivos a ser atingido: um contrato deve permitir melhorar a situação individual dos contratantes, ou corre o risco de inexequibilidade”. Assim, ao conceito clássico de contrato deve ser introduzido o conceito econômico, para o qual o contrato deve “ajudar os agentes econômicos a reduzir o ônus imposto pelo risco à atividade econômica e, dessa forma, contribuir para que se chegue a uma situação mais eficiente” (PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, economia e mercados. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 121-125).
[30] FORGIONI, Paula A. Teoria geral dos contratos empresariais. São Paulo: RT, 2011. p. 137.
[31] PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, economia e mercados. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 125.
[32] FICI, Antonio. Il contrato incompleto. Torino: G. Giappichelli, 2005. p. 77.