O CUMPRIMENTO PROVISÓRIO DAS ASTREINTES NO CPC E NA INTERPRETAÇÃO DO STJ
Scilio Faver
Um dos temas mais controversos na jurisprudência do STJ, é, sem dúvidas, as denominadas astreintes (multas diárias). As controvérsias permeiam desde a possibilidade ou não da modificação do valor, da ausência de coisa julgada na sua fixação e até da possibilidade de se modificarem os valores vincendos e os vencidos. Fora isto, como se não bastasse, também se controverte o momento em que pode ser executado – se admissível o cumprimento provisório ou não a multa fixada, já vencida e não adimplida. A multa diária pode ser fixada na fase de conhecimento (seja por decisão em tutela provisória ou na sentença) ou na própria fase de execução. Ou seja, não se exige, para a fixação de astreintes, que se chegue ao final do processo e muito menos que decorra de uma cognição exauriente. Comumente, inclusive, advém de uma decisão de tutela provisória e que, por determinação expressa conserva sua eficácia na pendência do processo (art. 296 do CPC/15). Porém, se discute ainda nos Tribunais se é ou não necessária a confirmação desta decisão (exarada em tutela provisória) por sentença, para somente, a partir daí, se permitir um cumprimento provisório (provisório tendo em vista que não se tem ainda uma posição definitiva, transitada em julgado) ou se a própria decisão de tutela provisória já permitiria um cumprimento provisório mesmo antes da sua confirmação pela sentença.
O tema controverso gravito assim sobre a natureza e eficácia das decisões e, especialmente, as disposições relativas às tutelas provisórias em comparação com o dispositivo específico das astreintes na atual legislação processual, o art. 537.
O STJ, na época de vigência do CPC de 1973, fixou precedente vinculante sobre esta questão com a tese fixada do Tema 743 dos repetitivos: “A multa diária prevista no § 4º do art. 461 do CPC/73], devida desde o dia em que configurado o descumprimento, quando fixada em antecipação de tutela, somente poderá ser objeto de execução provisória após a sua confirmação pela sentença de mérito e desde que o recurso eventualmente interposto não seja recebido com efeito suspensivo.” O advento do CPC/15, atento nas questões controversas em torno das astreintes, teve a incumbência de resolver várias dessas questões, como, por exemplo, a modificação de valor de multa vincenda, que nos parece, diante do texto legal superado, apesar da permanência da jurisprudência anterior ao Código, na Corte Superior. Sobre a questão do cumprimento provisório, o Código, no parágrafo terceiro do art. 537, previu expressamente a possibilidade de instauração do cumprimento provisório de astreintes[1], sendo que o levantamento de valores ficaria restrito quando do trânsito em julgado da sentença favorável à parte. Não se admitiu assim o seu levantamento antes de uma decisão de caráter definitivo. Por outro lado, não se pode impedir a instauração do cumprimento provisório que está expresso no dispositivo. De forma consentânea, o CPC/15, no capítulo destinado às tutelas provisórias, também deixou expresso à possibilidade de cumprimento provisório do conteúdo das decisões tomadas em sede de cognição sumária.[2] Parece-nos, portanto, que se afastou aquele dogma de que uma cognição sumária, feita quando das decisões de tutela de urgência, afastaria a possibilidade de requerimentos de satisfação do comando extraído dessas decisões, permitindo que o credor, ciente da possibilidade de ressarcimento de danos no caso de reversão[3], possa efetivar a cobrança (correndo riscos, é verdade).
É de se ver que, pela própria principiologia que encampa a viabilidade de cumprimento provisório de títulos judiciais ainda não transitados em julgado, leva-se em consideração a possibilidade de executoriedade imediata ou dos efeitos práticos decorrentes das decisões judiciais. Portanto, reconhece-se a possibilidade de requerimento de cumprimento provisório em razão da decisão judicial exarada já gerar efeitos, tendo o credor a ciência de que a reversão daquele título poderá lhe trazer hipóteses de ressarcimento de dano. Cada qual, portanto, cientes dos riscos. Trata-se, assim, de uma faculdade do credor que não lhe pode ser retirada, até mesmo porque ao devedor já se resguarda com a possibilidade de ressarcimento. Para, além disso, trata-se de importante política para estimular o cumprimento de decisões judiciais e aqui eis um ponto importante e técnico: as decisões judiciais ainda não transitadas em julgado possuem força capaz de gerar efeitos imediatos. Tal postulado decorre de todo o ordenamento processual. A exceção é expressa, como ocorre nos casos, mormente, de sentenças de mérito que nascem, ordinariamente, sem eficácia imediata, dado o efeito suspensivo, decorrente da lei, das apelações.
No entanto, quando do julgamento dos Embargos de Divergência 1.883.876/RS[4], a Corte Superior, em movimento contrário à evolução legislativa, resolveu reafirmar a jurisprudência (em caráter vinculante) fixada no tema 743. Quando assim o faz, parece ignorar a força imediata de conteúdos decisórios, aniquilando o próprio sentido do cumprimento provisório. Ora, se em regra, as decisões possuem efeitos imediatos, negar, em algumas dessas decisões (que, ao contrário das sentenças, não possuem como regra, a ausência de eficácia imediata), levando em conta apenas o seu conteúdo (por se tratar de multa diária fixada), onde o próprio sistema processual não o fez, é simplesmente aniquilar o sentido técnico de cumprimento provisório e da regulação específica das astreintes no código. É de se frisar que o Código deu às tutelas provisórias a viabilidade de execução provisória de maneira expressa, sendo que o advento de uma legislação que supera a interpretação de outrora de um Tribunal deve ser fator premente para a ausência de perpetuação dos efeitos daquele precedente diante da nova legislação, sob pena de se inverterem os papéis e competências constitucionais.
Se o objetivo da Corte – assim afirmado pelos Ministros que votaram pela subsistência da tese fixada à época do CPC/73 – é reduzir os abusos de casos concretos na aplicação de astreintes, e não se ignora que esses abusos existem, não é por meio da recalcitrância em não prestigiar algo que é expresso no Código e que, além disso, se baseia numa ratio de técnica processual de eficácia imediata das decisões, que se pode permitir a prevalência de tese contrária à escolha legislativa. O abuso, a má-fé e o dolo são questões a serem resolvidas sem que se atente contra aquilo que é a base do processo civil. Inegavelmente, a eficácia imediata das decisões (ressalvada, por óbvio, as exceções que assim foram eleitas para persistirem, como é o caso da maior parte das sentenças) é ponto central de uma teoria geral do processo e se conecta com a preocupação com a celeridade tanto na declaração de mérito quanto da sua efetividade (arts. 4º e 6º do CPC/15).
Não há, pensamos nenhuma compatibilidade desta decisão, com o disposto no art. 537 caput do CPC/15 que permite a fixação de astreintes na fase de conhecimento, seja na sentença ou em tutela provisória. Por sua vez, na parte do Código que trata de tutelas provisórias é expresso o comando normativo no sentido de eficácia imediata da decisão (o que inclui a sua satisfação) ainda na pendência do processo. Portanto, protrair a eficácia de uma decisão tomada em tutela provisória para somente depois de confirmada em sentença, é desconsiderar a própria eficácia determinada pelo código das tutelas provisórias. Além de criar uma exceção onde o texto normativo é expresso para outro sentido, se põe em risco o principio norteador do Código.
Não se pode dizer, por óbvio que com essa reafirmação de um precedente fixado sob a égide do CPC/73, o STJ está a afirmar que a execução provisória de multa diária não é possível. Mas fez algo, que, pensamos ser pior. Disse a Corte Superior que a decisão que determina a fixação de astreintes não é passível de gerar efeitos imediatos trasmudando assim a regra do Código para as decisões (em sentido amplo) e estendendo a ineficácia imediata (reservada para a maior parte das sentenças, especificamente) agora também para às decisões interlocutórias que fixam astreintes.
Diante desse quadro, também é necessária uma ressalva. Não parece, por óbvio, possível aplicar esse entendimento da Corte Superior quando as astreintes forem fixadas por decisão em processo na fase de execução. Até mesmo, porque a sentença (marco utilizado na tese reafirmada pelo STJ) na fase executiva virá para extinguir a execução. Novamente, importante frisar que o art. 537, caput do CPC/15 prevê a possibilidade de fixação de astreinte na fase de execução, quando então, aquele título judicial que a fixou, poderá ser objeto de imediata satisfação, até por impossibilidade prática de se esperar uma sentença na fase executiva. Ou seja, essa hipótese (decorrente do art. 537, caput do CPC/15) apenas confirma e ratifica que não há motivos técnicos para fazer distinção quando a astreinte é fixada na fase de conhecimento.
Interessante que, quando do advento de uma sentença confirmando aquela tutela provisória obtida em decisão anterior (que, na visão do STJ, nasce ineficaz em termos de sua executoriedade), se abrirá a oportunidade de cumprimento provisório (não devendo se aguardar o seu trânsito em julgado), desde que a parte não obtenha efeito suspensivo (ope iudicis) Importante destacar, e nesse ponto o STJ não chegou a tanto, que o capítulo da sentença que confirma tutela provisória, possui eficácia imediata, por expressa previsão legal.
A Corte resolveu, portanto, verdadeiramente postergar, a eficácia da decisão que fixa as astreintes. Uma postergação criada, inventada em seu pior sentido. O cumprimento provisório continua existindo, mas a regra de eficácia de uma decisão está combalida.
FONTE: https://www.migalhas.com.br/depeso/398637/cumprimento-provisorio-das-astreintes-no-cpc
[1] “Art. 537 (…) § 3º A decisão que fixa a multa é passível de cumprimento provisório, devendo ser depositada em juízo, permitido o levantamento do valor após o trânsito em julgado da sentença favorável à parte.”
[2] “Art. 297. O juiz poderá determinar as medidas que considerar adequadas para efetivação da tutela provisória.
Parágrafo único. A efetivação da tutela provisória observará as normas referentes ao cumprimento provisório da sentença, no que couber.”
[3] “Art. 520. O cumprimento provisório da sentença impugnada por recurso desprovido de efeito suspensivo será realizado da mesma forma que o cumprimento definitivo, sujeitando-se ao seguinte regime:
I – corre por iniciativa e responsabilidade do exequente, que se obriga, se a sentença for reformada, a reparar os danos que o executado haja sofrido”
[4] Julgamento finalizado na sessão de 23 de novembro de 2023. “Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Luis Felipe Salomão conhecendo dos embargos de divergência e negando-lhes provimento, no que foi acompanhado pelos Srs. Ministros João Otávio de Noronha, Mauro Campbell Marques, Benedito Gonçalves, Raul Araújo e Maria Isabel Gallotti e os votos dos Srs. Ministros Herman Benjamin, Og Fernandes e Ricardo Villas Bôas Cueva conhecendo dos embargos de divergência e dando-lhes provimento, a Corte Especial, por maioria, conheceu dos embargos de divergência e negou-lhes provimento, nos termos do voto do Sr. Ministro Luis Felipe Salomão. Vencidos a Sra. Ministra Nancy Andrighi, relatora, e os Srs. Ministros Herman Benjamin, Og Fernandes e Ricardo Villas Bôas Cueva que conheciam dos embargos de divergência e davam-lhes provimento. Lavrará o acórdão o Sr. Ministro Luis Felipe Salomão”