O CONCEITO DE “LEI FEDERAL” PARA FINS DE CABIMENTO DE RECURSO ESPECIAL
Alice Saldanha Villar
Um exame da abrangência da expressão “lei federal” contida no art. 105, III, da CF/88.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
De acordo as lições de Barbosa Moreira, [1] o recurso especial é “o meio próprio para controlar a fundamentação das decisões judiciais, proferidas pelos tribunais de segundo grau, com o escopo de uniformizar, em âmbito nacional, o entendimento das normas federais”.
As hipóteses de cabimento do recurso especial estão previstas taxativamente no art. 150, III, a, b e c da CF/88, razão pela qual trata-se de um recurso de fundamentação vinculada ou de estrito direito. Confira:
CF/88. Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: III – julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal; c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.
O CONCEITO DE “LEI FEDERAL” PARA FINS DO ART. 105, III, DA CF/88
Para efeito de cabimento de recurso especial, o termo lei federal engloba os seguintes diplomas: [2]
Lei ordinária federal
Lei complementar federal
Lei delegada federal;
Decreto-lei federal;
Medida provisória federal;
Decreto autônomo federal.
A respeito desse último caso cumpre registrar que a Corte Especial do STJ já decidiu que “o termo lei federal, para fins de interposição do recurso especial, abrange também os decretos”. [3]
Conforme destaca a ilustre Ministra Nancy Andrighi no EREsp 919274 RS: [4]
“Há que se ressaltar, por oportuno, que não é todo e qualquer decreto editado pelo Chefe do Poder Executivo que autoriza a interposição de recurso especial, mas tão somente os de caráter geral, abstrato, impessoal e obrigatório, por sua natureza de lei em sentido material, estando excluídos desse rol todos aqueles cujos efeitos sejam nitidamente concretos, como os que extinguem função ou cargo público vago (alínea b do inc. VI do art. 84 da CF) e os que declaram o imóvel de interesse social para fins de reforma agrária (2º do art. 182 da CF).”[5] (grifo nosso).
Nesse ponto, é preciso registrar que existe no Brasil uma grande controvérsia a respeito da possibilidade dos decretos autônomos – que podem ser definidos como aqueles que não se limitam a regulamentar uma lei anterior, sendo capazes de inovar na ordem jurídica, estabelecendo normas sobre matérias não disciplinadas em lei.
Para a parcela da doutrina e da jurisprudência que admite a existência dos decretos autônomos, estes encontrariam fundamento no art. 84, inc. VI da CF, na redação dada pela Emenda Constitucional n. 32/2001. Na esteira de outros autores, entendemos que a hipótese prevista no art. 84, VI, a, da CF constitui verdadeiro decreto autônomo, podendo introduzir normas gerais, abstratas e impessoais, ao passo que o art. 84, VI, b, da CF trata de um mero ato de defeitos concretos, pois nesse caso a competência do Presidente se limitará a extinguir cargos ou funções, quando vagos, não estabelecendo normas sobre a matéria.
Nessa mesma linha, a ilustre Prof. Maria Sylvia Zanella Di Pietro afirma que: [6]
“(…) no direito brasileiro, a Constituição de 1988 limitou consideravelmente o poder regulamentar, não deixando espaço para os regulamentos autônomos, a não ser a partir da Emenda Constitucional nº 32/01. (…) Com a alteração do dispositivo constitucional, fica restabelecido o regulamento autônomo no direito brasileiro, para a hipótese específica inserida na alínea a. A norma estabelece certo paralelismo com atribuições semelhantes da Câmara dos Deputados (art. 51, IV), do senado (art. 52, XIII) e dos Tribunais (art. 96, I, b).”
De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, estão excluídos do conceito de lei federal para fins de cabimento de Recurso Especial (art. 105, III):
Atos normativos com hierarquia inferior à do Decreto
De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça não se compreende no conceito de lei federal, portanto não permite a abertura da instância especial, os atos normativos com hierarquia inferior à do Decreto, tais como resoluções, portarias, circulares e outros.[7]
Regimento interno de tribunal
O conceito de lei federal também não abrange regimento interno de tribunal. Nesse sentido temos inclusive a Súmula 399 do STF (“Não cabe recurso extraordinário, por violação de lei federal, quando a ofensa alegada for a regimento de tribunal”).
É preciso destacar que esta Súmula foi criada na época em que o STF possuía a competência de guardião da legislação federal. Como após 1988 o guardião da legislação federal passou a ser o STJ, a Súmula 399/STF tem sido aplicada no âmbito desta Corte, por aplicação analógica. Vale dizer: o recurso especial não é o meio hábil a aferir violação de norma contida em Regimento Interno de Tribunal, porquanto tal diploma não se enquadra no conceito de norma federal. [8]
Sobre o tema, trazemos ainda a lição de Nelson Nery Junior [9], para quem as atribuições dos regimentos são meramente administrativas:
“Regimento interno de tribunal tem natureza jurídica de normas administrativas – e não de lei -, que regula o procedimento interna corporis do tribunal, não podendo criar direitos nem obrigações para os jurisdicionados (CF 5º II).”
Súmula de tribunal
Recentemente, foi publicada a Súmula 518 do STJ para consolidar um entendimento já de longa data na Corte, qual seja, não cabe recurso especial fundado em alegação de violação de Súmula de tribunal, por não se enquadrar no conceito de lei federal previsto no art. 105, III, a da CF/88. Ora, os enunciados de Súmula são apenas expressões sintetizadas de orientações reiteradamente assentadas pela Corte.
Dessa forma, não cabe o recurso especial pela letra a do inciso III do art. 105 da CF/88 por alegação de ofensa à jurisprudência do STJ. Conforme bem explicam os ilustres processualistas Fredie Didier JR e Leonardo José Carneiro da Cunha: [10]
“Na verdade, a jurisprudência firma orientação a respeito da interpretação a ser conferida a dispositivos legais. O que se permite é que, no recurso especial, se demonstre que o dispositivo foi interpretado pelo tribunal de origem diferentemente do STJ. Em outras palavras, a jurisprudência do STJ não foi seguida, exatamente porque determinado dispositivo foi interpretado diferentemente da orientação por ele ministrada. Logo, deve o recurso especial apontar violação ao respectivo dispositivo legal, e não à jurisprudência ou ao enunciado da Súmula do STJ”.
Decretos regulamentares
O conceito de lei federal não abrange decreto regulamentar. Nessa linha, confira o julgado a seguir colacionados:
“(…) 1. O Superior Tribunal de Justiça não tem a missão constitucional de uniformizar a interpretação de dispositivos de decreto regulamentar, pois esta espécie de diploma normativo não se enquadra no conceito de”lei federal”para fins de interposição de recurso especial. (…)” STJ – REsp 1241207 SP, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, DJe 25/10/2012.
“(…) I – Atos administrativos sem natureza de lei, no caso decreto regulamentar, não se enquadram no conceito de Lei Federal, portanto, não ensejam Recurso Especial. (STJ REsp: 921494 MS, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, 3ª Turma, DJe 14/04/2009
CONCLUSÃO
Para efeito de cabimento de recurso especial, o conceito de lei federal engloba os seguintes diplomas: a) lei ordinária federal; b) lei complementar federal; c) lei delegada federal; d) decreto-lei federal; e) medida provisória federal; e f) decreto autônomo federal.
O termo lei federal, entanto, não alcança: a) os atos normativos com hierarquia inferior à do Decreto, tais como resoluções, portarias, circulares e outros; b) Regimento Interno de tribunal (Súmula 399/STF); c) Súmula de tribunal (Súmula 518/STJ); e d) Decretos regulamentares.
NOTAS
[1]Cf. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. 5, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2003, p. 580.
Cf., nessa mesma linha, DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 3, 11ª ed. São Paulo: Juspodivm, 2013, p. 329.
[3] Cf. STJ – EREsp 663.562/RJ, Rel. Min. Ari Pargendler, Corte Especial, DJ de 18/02/2008).
[4] “(…) Conquanto o Decreto nº2.0400 /96 tenha sido editado com base no inc. IV do art.844 daCFF, caracterizando-se, em princípio, como ato normativo secundário, certo é que se trata de norma jurídica de caráter geral, abstrato, impessoal e obrigatório, que não possui cunho meramente regulamentador, mas cria deveres e concede direitos aos militares movimentados, se apresentando como verdadeira lei em sentido material, de sorte que deve ser enquadrado no conceito de”lei federal”para efeito de cabimento do recurso especial. (…)” STJ – EREsp 919274 RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, Corte Especial, DJe 12/08/2013.
[5] Cf. STJ – Voto da Ministra Nancy Andrighi (Relatora), no EREsp 919274 RS, Corte Especial, DJe 12/08/2013
[6] Cf. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 22. Ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 91.
[7] Cf. STJ – AgRg no REsp 868376 DF, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, 4ª Turma, DJ 28/05/2007; STJ – AgRg no Ag 628804 DF, Rel. Min. Fernando Gonçalves, 4ª Turma, DJ 12/09/2005;
[8] Cumpre lembrar que o Superior Tribunal de Justiça foi criado pela Constituição Federal de 1988 como o responsável por uniformizar a interpretação das leis federais em todo o Brasil. Surgiu, então, o chamado recurso especial, cujas hipóteses de cabimento foram previstas taxativamente no art. 150, III, a, b e c da CF/88.
[9] Cf. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 784.
Cf. DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 3, 11ª ed. São Paulo: Juspodivm, 2013, p. 329.
REFERÊNCIAS
DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 3, 11ª ed. São Paulo: Juspodivm, 2013, p. 329.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 22. Ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 91.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. 5, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2003, p. 580.
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 784.