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O COMPROMISSO DE DINAMIZAÇÃO DA PROVA CIVIL

O COMPROMISSO DE DINAMIZAÇÃO DA PROVA CIVIL

Cássio Benvenutti de Castro [1]

SUMÁRIO: Introdução; 1 A prova como posição jurídica de concretização argumentativa; 2 O ônus da prova na perspectiva do novo processo civil; 3 A dinamização do ônus dinâmico da prova; 4 Os conceitos compromissados com os pressupostos metodológicos do processo civil; 4.1 O modelo compartilhado de prova; 4.2 O adensamento da tipificação das provas; 4.2.1 A ata notarial; 4.2.2 A prova técnica simplificada (expert witness ou consulenza testemoniale); 4.2.3 A prova emprestada; 4.3 A prova atípica e a confusão referenciada; 4.3.1 A inspeção ou constatação efetuada por oficial de justiça; 4.3.2 O comportamento da parte como prova; 4.3.3 O frenesi da rede social como alter-ego de uma civilização imediatista; Conclusão; Referências.

  

INTRODUÇÃO

O Estado Constitucional tem por fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), e como escopos principais prevalentes a liberdade e a igualdade. Em nível institucional, ou melhor, em termos de tutela jurisdicional, a primazia desses valores deve ser garantida por um processo justo, o que subentende um modelo colaborativo (das partes para com o judiciário), e atendida uma previsibilidade-confiabilidade (não surpresa e garantia da influência nas decisões) na qual está inserida a questão da verdade e da segurança jurídica.

A questão da previsibilidade reúne os meios para o atingimento de decisões justas: normas + fatos. Agora, a justiça do processo – enquanto um ideal e uma função, acaba por implicar uma estrutura coordenada (funcional-estruturalismo) – estipula que a experiência jurídica sirva-se das mesmas normas para os casos análogos e compreenda os fatos com a serenidade de que as contingências fazem repetir comportamentos parecidos em diversas situações. Se a verdade ou a totalidade é inatingível, diversos fatores pressupõem graus de uma maior precisão na tomada da decisão.

A verdade se trata de um valor-meio para o alvitre dos escopos, daí que, antes de uma reles preocupação de entender que o juízo sobre o fato é de ordenação cartesiana, a compreensão sobre o fato atende a diretrizes não raramente tendentes ao universal, o que obrigatoriamente faz sopesar uma visão holística (coerência do contexto) e analítica (verossimilhança e credibilidade) da prova. Evidente que particularismos existem; porém, a dedução ou os axiomas positivistas também deixaram de ser as únicas diretrizes metódicas a organizarem a valoração da prova.

Ao contrário do formalismo ortodoxo, hoje, fala-se em um arsenal que aproxima o conceito da realidade para chegar à parcial conclusão – a funcionalização da verdade é valor encerrado no sistema constitucional, estado de coisas alvitrado por intermédio de meios de provas consistentes, inclusive, atípicas, mas, sobretudo, verticalizadas por novas modalidades de visualizar o mundo real. Nessa linha, o ensaio elabora a prova como uma atividade dinâmica por antonomásia (porque trata sobre fatos) e comenta alguns meios de prova que atendem ao modelo aberto predisposto no Código de Processo Civil. Aberto à atipicidade das provas, móvel ao contexto holístico pelo qual elas devem ser examinadas.

1 A PROVA COMO POSIÇÃO JURÍDICA DE CONCRETIZAÇÃO ARGUMENTATIVA

O processo justo é preenchido por uma série de valores que convivem na busca de uma solução justa a um problema. Trata-se de método de trabalho que se desdobra pelo intermédio de uma série de normas jurídicas, em que uma norma é pressuposta da seguinte, daí formando uma totalidade procedimental padronizada. Ocorre uma conexão de normas, atos e posições jurídicas, para que os atores processuais movimentem-se organizadamente, tudo verticalizado na busca da decisão.

Embora os atos processuais sejam os elementos visíveis do procedimento, nessa cadeia estruturada, a posição jurídica é figura que assegura uma situação de proeminência do sujeito em relação a um determinado objeto, implicando posição de tutela processual refletida pelos efeitos da norma jurídica[2]. Vale dizer que as faculdades, os deveres, os poderes, os direitos e, inclusive, os ônus processuais consistem em posições jurídicas como formas de exteriorização do padrão de organização processual.

O ônus processual, formalmente, consiste em uma posição jurídica.

2 O ÔNUS DA PROVA NA PERSPECTIVA DO NOVO PROCESSO CIVIL

O ônus da prova consiste em uma posição jurídica na qual a norma jurídica confere uma liberdade condicionada à parte processual. A norma jurídica não estabelece uma sanção, tampouco uma situação de sujeição de uma parte em relação a outra. Pelo contrário, quando se fala em ônus, confere-se uma liberdade para que a parte possa praticar determinado ato processual, no interesse dessa própria parte. Entretanto, trata-se de uma liberdade condicionada, porque, no caso da inércia, em especial, no caso da não produção da prova processual, por falta de interesse ou de conveniência, a posição de proeminência da parte – em relação ao objeto que ela pretende (provar que “p“) – pode restar prejudicada.

O ônus da prova estrutura-se e funcionaliza-se em duplicidade: ele possui um sentido subjetivo e outro sentido objetivo.

O sentido subjetivo da prova trata-se de uma regra de instrução, ou seja, configura uma posição jurídica que desempenha uma função promocional[3] – preordena uma referência, para as partes processuais, pautando quem deve produzir que “está provado que p“, conforme a tutela jurisdicional postulada (demanda)[4].

De outro lado, o sentido objetivo da prova trata-se de uma regra julgamento, ou seja, assume uma finalidade resolutória, como um critério para extinguir o processo, ainda que as partes não tenham produzido prova suficiente[5]

A estrutura e a função da prova estão previstas em norma do CPC:

Art. 373. O ônus da prova incumbe:

I – ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;

II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

Essa discriminação é denominada “distribuição estática do ônus da prova“. Talvez porque leva em conta a posição dos sujeitos parciais do processo e a relação deles para com as afirmações sobre os fatos; também, porque a previsão vem desde dentro do sistema do processo, como se a argumentação fosse regulamentada para resolver qualquer tipo de objeto a ser decidido.

Aqui, um ponto de inflexão: em primeiro lugar, pensar em processo é refletir sobre movimento, vale dizer, um mecanismo antípoda à inércia; em segundo lugar, a prova processual assinala uma posição concretizadora da argumentação que se pretende conferir validade, quer dizer, a prova ilustra e aparelha a demanda, em um sentido que o ônus da prova é posição jurídica diretamente ligada à causa que implica os efeitos do pedido.

A parte formula um pedido para gerar efeitos. Tais efeitos dependem de uma causa, de uma base jurídica (na qual existem fatos e normas). Por antonomásia, então, ônus da prova é dinâmico porque ligado à norma que embasa a causa de pedir e o pedido. Eduardo Cambi resume que, no ônus da prova em sentido subjetivo, percebe-se a relativização do binômio substance-procedure, pela íntima correlação entre a dimensão proces­sual e a substancial, porque os fatos constitutivos da demanda e os fatos que fundam as exceções são definidos em função da configuração substancial da fattispecie que vem deduzida em juízo. Com efeito somente pelas normas de direito substancial é que se podem estabelecer quais são os fatos juridicamente relevantes, mas também é pelas normas de direito e processo que se atribui ao autor o ônus de provar os fatos constitutivos da sua pretensão e ao réu os fatos em que se fundam a exceção.[6]

O compromisso do juiz, refere Dall’Agnol Júnior[7], é com o caso concreto. Daí que o juiz está comprometido com o caso concreto, na coexistência entre as afirmações sobre os fatos (narrativas) na perspectiva da norma jurídica que se pretende fazer valer os efeitos.

Considerado o caráter constitucional do direito probatório, enfim, a divisão estrutural-funcional do ônus da prova acaba sendo contingencial. O que importa, na questão, é a comunidade de trabalho que o contraditório material deve pautar entre o juiz e as partes, um eixo de previsibilidade funcionalidade ao melhor ou ao ótimo grau de confirmação da cognição. Assim, resulta que o processo não trabalha para o mero atingimento de uma decisão, tampouco se trata de uma máquina hermética que não se comunica com o direito material.

Pelo contrário, assim como grandes processualistas dialogaram sobre o perfil monista, dualista, ou transcendente-constitucional da posição jurídica de evolução progressiva – denominada ação processual -, parece evidente que a prova, assim como a tutela jurisdicional, determina o encontro entre o direito e o processo, na medida em que todo o processo está impregnado do direito material[8]. Com efeito, as narrativas processuais alegam fatos, mas que não são qualquer episódio da vida, antes se trata de fatos protegidos por determinada norma jurídica, encerrando-se um esquema fato-norma a partir do qual o ônus da prova é mera decorrência, obviamente, uma decorrência dinâmica.

Portanto, a dinamização do ônus da prova é devolver – ao direito probatório – uma transição que lhe é peculiar, porque isso está na natureza das coisas: o direito existe para regular o “mundo lá fora“, as necessidades sociais, e, a cada caso concreto diferente, é ou seria aconselhável que o direito predispusesse técnicas adequadas (flexíveis) para otimamente chegar a resultados justos.

Fazzalari arremata:

Il rapporto col diritto sostanziale non riguarda soltanto la domanda, ma tutti gli atti della serie procedurale: vuoi quelli in cui si concreta l’azione, cioè la situazione soggettiva (composita) dell’atore; vuoi quelli in cui si concreta la situazione processuale del convenuto; vuoi quelli in cui si traduce la funzione dell’ufficio.[9]

O direito material é considerado ao largo do processo. O processo justo, ainda mais, porque reclama um modelo colaborativo em que o direito probatório encerra um mecanismo cujo eixo teleológico é a verdade; o direito material, de antemão, acaba por “dinamizar” a inteligência do operador do processo civil.

Pensar o processo civil “desde dentro“, por intermédio de estruturas ou regras estáticas, consiste em retornar a uma perspectiva metodológica superada há séculos de história do formalismo. Justamente por isso, na Alemanha, uma regra de distribuição “estática” do ônus da prova (art. 373 do CPC) sequer existe, porque, no mecanismo tedesco, compreende-se naturalmente a “normentheorie[10] – vale dizer que, se a causa de pedir e o pedido (demanda) estão aparelhados em narrativas sobre fatos e variações argumentativas sobre normas jurídicas, parece evidente que o ônus de provar depende dos pressupostos da demanda, ou seja, as fontes da prova, questões metaprocessuais ou que exprimem (“desde fora” do processo) aquilo que encarrega cada uma das partes, em termos de posição jurídica argumentativa concretizadora do ônus[11].

A pretensão ou o ato de pretender algo, em prejuízo de outrem, subentende a necessidade de comprovar as alegações que ilustram e conferem verossimilhança à narrativa da parte. Assim, as clássicas discussões sobre a teoria concreta versus a teoria abstrata da ação também podem ser trazidas para o plano do ônus da prova – porque o ônus da prova, tanto quanto a ação (seja concreta ou abstrata), trata-se de instituto que, atualmente, deve ser compreendido na perspectiva do formalismo-valorativo, do neoprocessualismo, do neoconcretismo, do neoconstitucionalismo, enfim, na perspectiva metódica que elabora um diálogo entre as fontes de direito material e processo, para, nesse diapasão, concluir-se: existem fatores pré-processuais que embasam a demanda[12], ainda, a narrativa processual está implicada por alegações de fatos nos termos enunciados pelas normas do direito (material), daí que, “desde fora“, ocorre uma dinamização do ônus da prova como algo natural, porque inerente ao polo metodológico do processo civil (a tutela jurisdicional através de um processo justo).

Existe um critério externo que decide a questão de fato – a busca da verdade, enquanto um standard almejado, um grau de confirmação de 100{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}, ou tendente a essa evolução.

A dinamização do ônus da prova não significa uma novidade em termos operacionais. Em realidade, observada a distinção entre “fonte” de prova e “meio” de prova, na prática, o diálogo entre as normas de direito e processo já acaba resolvendo – ope legis -, enquanto um sistema integrado, a questão do ônus da prova conforme o objeto a ser decidido. Aliás, Calamandrei alertava que según el diferente grado de probabilidad que a su juicio hubiera que atribuir a las afirmaciones en contraste. Bastaría, en otras palabras, que la afirmación de la parte fuera verossímil, para que el juez hubiera de invertir en su ventaja la carga de la prueba, haciendo gravar sobre la contraparte la carga de probar lo contrario.[13]

Quer dizer que o ônus de provar está diretamente relacionado ao risco de não apresentar uma prova suficiente para convencer o juiz. O problema é definir o que significa essa “suficiência” da prova, para que seja utilizada a regra do ônus da prova como critério de julgamento, ou qual o grau de “suficiência” que o contexto probatório merece para ser afastado, da conclusão decisória, uma solução com base no sentido objetivo do ônus da prova.

Cabe somente ao juiz decidir sobre o decidir?

Em outras palavras, além de se reputar convencido, o juiz dispõe de um poder absoluto sobre que a definição referente à suficiência da prova?

Nesse ponto, o ônus da prova implica-se à questão do standard da prova, que consiste em uma questão prévia à decisão, por meio da qual o juiz define se a prova é suficiente, e qual o “grau” de prova para ser reputada suficiente. Tal suficiência não é medida taxativa ou imperativo estático, tampouco advém de uma metodologia meramente analítico-classificatória – já que comumente se atribui a standardização como de utilização unicamente saxônica -, pelo contrário, no direito continental, o sistema jurídico, avistado “desde” o diálogo das fontes, “desde o direito material“, afirma a força normativa da standardização da prova, ou afirma uma graduação sobre os modelos de constatação referentes a uma decisão sobre matéria de fato.

Vale dizer que ônus da prova e standard da prova convergem para a definição do sentido de suficiência da prova, e da própria adequação da prova ao processo. Não se trata de reles adequação e admissibilidade; antes o caso é de verificar a conformação da estrutura – o processo – ao objeto que o verticaliza.

De qualquer maneira, ônus e standandardização, uma posição jurídica influencia a outra constatação, e também é por ela influenciada. Daí que o risco de uma decisão com base no critério do ônus da prova objetivo perpassa pela aferição do standard da prova. Por isso que Marinoni[14] critica o julgamento com base na “lógica da melhor verossimilhança“, porque refere que o estado de dúvida do juiz deve ser resolvido com aquilo que o sistema jurídico afirma ser compatível com a natureza do caso concreto, e não deve ser resolvido com base na possibilidade de o juiz pender para uma ou para outra narrativa – a mais verossímil -, quando a gravidade do caso reclama uma maior atenção.

A posição jurídica do ônus, portanto, é um risco modulado pelo standard da prova.

Ambos compõem valores móveis do sistema jurídico processual – quando o grau da necessidade argumentativa aumenta (standard), o critério do ônus como regra de julgamento é mais facilmente aplicável. A prova e a leitura da prova, no desenrolar do contraditório, assim, é multifuncional, ainda segundo Nicola Picardi[15]. O juiz exercita tanto um modo de optar entre as várias alternativas que surgem em um sentido vertical, o sentido da constante imediação que ele vai descobrindo ao largo do processo (limites processuais e modelo demonstrativo), como o juiz também deve levar em seu raciocínio total os critérios horizontais que pautam as suas escolhas (limites substanciais e modelo persuasivo da prova). Essa horizontalidade reflete na questão do convencimento judicial em direito probatório, e estabelece a standardização do convencimento, pois o próprio sistema jurídico aponta para direções, o que Nicola Picardi denomina limitações, porque jamais existe uma liberdade absoluta para formar um juízo, sendo que o julgador movimenta-se por entre normas, precedentes, tradições, pesquisas técnicas, cânones interpretativos, entre outras percepções que ao longo do tempo vão povoando as práticas dos julgamentos como instrumentos de regularidade cultural.

A despeito de posições extremas – realistas ou dogmáticas[16] -, fácil concluir que elas não resolvem o problema de elaborar critérios para controle da questão de fato, e que os julgamentos com exames inferenciais ao quadrado ou até em terceira potência (por exemplo, hearsay testemony[17]) merecem um controle de classificação ou de cotejo desse julgamento em relação à totalidade das normas que imperam em cada sistema jurídico. O direito é um subsistema cultural, um sistema aberto e móvel, e as palavras utilizadas pelas normas e pelo direito probatório oferecem códigos ou esquemas que assinalam contextos ou cenários maiores; logo, não adianta decidir e não justificar perante um cenário que apresente a imediação do juiz para com a prova e da prova e do juiz perante uma totalidade normativa maior, que daí afirma as soluções ou escopos que correspondem a cada realidade social pautada pelo direito material.

Não interessa, ao jurisdicionado, enfim, que o juiz entregue uma decisão formalmente técnica, e com ela chegue a conclusões de surpresa, sendo necessário e democraticamente válido que figuras racionais e, sobretudo, normativas componham esse instrumental que conecta o direito ao processo. O juízo de fato implica uma redobrada atenção do julgador: primeiro, porque o leigo também pode emitir juízos de razoabilidade sobre os fatos, e, na era do politicamente correto, todos se tornaram julgadores; segundo, porque as inferências realizadas pelo juiz demonstrarão uma racionalidade[18] em sua ponderação.

Ocorre que os modelos de constatação da experiência sobre a questão de fato, ou seja, os denominados standards probatórios ou standards do convencimento judicial acabam por sistematizar padrões de decidibilidade, porque preordenam fatores cujo fio condutor é uma melhor reconstrução da realidade que está colocada em juízo, “desde fora” do processo. Daí a importância da natureza do direito material que se disputa em causa, na medida em que, “desde fora” do processo, o sistema está aberto a uma sorte escalonada de critérios que definem ou ajudam a definir o estado de dúvida do juiz – isso vai tangenciar o risco sobre a utilização, ou não, da regra de julgamento conforme o ônus da prova.

Se tiver prova suficiente, o juiz decide conforme o confronto das narrativas; se não houve prova suficiente, o critério será a regra de julgamento do ônus da prova. Assim, os standards complementam o ônus da prova, pois lhe implica um realismo metodológico. Consoante Danilo Knijnik[19], os standards do convencimento judicial funcionam como critérios que devem ser postos em discussão para que as opções valorativas do juiz e das partes sejam conhecidas e, como um continuum[20] para a reconstrução dos fatos da causa, podem ser debatidas em contraditório e, eventualmente, corrigidas ou contestadas através das alternativas recursais ou cassacionais.

O que define a chamada suficiência[21] da prova, para preencher o convencimento e afastar o julgamento com base no critério do ônus da prova, é a densidade normativa do direito debatido, é o caso concreto. Logo, a importância da demanda e a caracterização do ônus da prova como um organismo propulsor de um sistema aberto passa a definir – em decorrência – o grau de prova para preencher um standard probatório. Armado pela força que o direito material atribui a determinados fatos, o sistema de valoração da prova, “desde fora” do processo, pré-condiciona o convencimento do juiz, para que, assim, ele possa concluir que uma prova é mais difícil para uma parte do que para a outra parte, e concluir sobre a questão da suficiência da prova e sobre o próprio pragmatismo do ônus da prova.

Tudo sopesado, a divisão do ônus da prova não parece estática (art. 373 do CPC). Apenas quando observada somente em um paradigma “desde dentro” do processo, como os clássicos teóricos da ação concreta ou da ação abstrata o faziam, por séculos, pode-se falar em ônus estático da prova, vale dizer, a partir da posição processual da parte e do fato, em abstrato, que se pretende provar. Agora, desde o momento em que o processo é analisado na perspectiva da tutela jurisdicional, portanto, “desde fora“, e na perspectiva das narrativas do caso concreto, parece que a natureza do ônus da prova é tendencialmente dinâmica.

A tutela jurisdicional (art. 5º, XXXV, da CF) como polo metodológico do processo resulta em que o processo justo resolve conflitos jurídicos necessariamente merit-based – trata-se do caráter transcendental do objeto, o que ratifica na verdade como uma referência, como um critério externo que afirma a previsibilidade da decisão judicial[22].

A dinamicidade é a regra. Agora, trata-se de uma dinâmica que está colocada desde a demanda, desde a distinção entre fontes e meios de prova, naquilo que a causa de pedir implica ao pedido. Uma cultura jurídica cujo sentido está na abertura do sistema de valoração da prova e, sobretudo, na mobilidade das normas encerradas e comunicadas no pluralismo desse sistema – a inteligência do ônus da prova na conjugação ao caso concreto e à respectiva standardização que disso está emanado.

3 A DINAMIZAÇÃO DO ÔNUS DINÂMICO DA PROVA

A própria legislação pode estipular, de maneira diversa àquele sistema proposto pelo CPC, a distribuição do ônus da prova. Quer dizer, ope legis, um outro sistema de normas pode redistribuir a questão do ônus de provar, daí sequer se falar em “inversão do ônus” da prova, mas em “nova versão” do que estava vertido de outra maneira. Para tanto, o legislador se vale de presunções legais e técnicas que preordenam uma convergência decisional em outro regime de normas. A dificuldade é entender que existem sistemas de normas que encerram diferentes nichos de casos, que reúnem normas tanto de processo como de direito material e, assim, que o legicentrismo ou o unitarismo codificado é moeda vencida no milênio passado. No atual quadrante constitucional, as leis não são abstratas e genéricas, elas não são completas e unitarizantes do sistema jurídico – como um triângulo fechado; bem ao contrário, ocorre uma dogmática fluida[23], com um pluralismo de fontes que dialogam, complementam-se sistematicamente, e eventualmente apresentam solução de continuidade por subsidiariedade.

Quando a própria lei distribui o ônus da prova, algo diverso da regra geral prevista no Código de Processo Civil (que é a regra geral do ordenamento), em realidade, não ocorre uma inversão do ônus da prova, por operação do juiz, antes ocorre uma mera atribuição do ônus da prova com fundamento no direito material, que é pré-ponderado, pelo legislador que, por exemplo, elaborou o CDC. No Código de Defesa do Consumidor, pode-se observar, facilmente, que, no caso de a parte (fornecedor) não se desincumbir na desconstrução da presunção elaborada pela norma, o julgamento será ancorado nos termos previstos pela lei – ou seja, conforme a posição jurídica privilegiada do consumidor.

Isso reflete a ascensão da pessoa no sistema jurídico, ao invés da vetusta prevalência do objeto sobre a pessoa. Logo, constata-se que o direito do consumidor brasileiro é estruturado por intermédio de tipos presuntivos que melhor ou otimamente privilegiam a defesa da posição jurídica do consumidor e que, por decorrência, reservam ao fornecedor o encargo de afastar as presunções legalmente antecipadas, e que estão em benefício do consumidor.

A leitura do texto de algumas normas infere essa valoração.

Por exemplo, na responsabilidade pelo fato do produto, previsto no art. 12, § 3º, do Código de Defesa do Consumidor, está estabelecido que “o fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar: I – que não colocou o produto no mercado; II – que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro“. Na responsabilidade pelo fato do serviço, o art. 14, § 3º, do CDC estabelece que “o fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro“. Vale dizer que os danos decorrentes do acidente de consumo somente não serão ressarcidos ao consumidor quando, e somente quando, o fornecedor excepcionar a presunção tipificada nas regras legais[24].

Isso não significa inversão do ônus da prova.

Pelo contrário, o CDC consiste em um sistema diverso do CPC, no qual as normas sobre a distribuição do ônus da prova estão previstas (vertidas) de maneira especialiforme, de maneira peculiar. Logo, na grande maioria das demandas embasadas no CDC, é até desnecessário falar em inversão do ônus da prova, porque o próprio legislador já inverteu o que estava vertido no CPC. Ou verteu de maneira diversa do CPC, com base em um sistema peculiar – onde direito material e processo dialogam com uma naturalidade típica do formalismo-valorativo.

O espaço para a inversão judicial (“ope judicis“) do ônus da prova, no CDC, é para os casos onde não existe esse tipo de presunção legal, já na fase de instrução[25]. Em especial, para o caso da responsabilidade civil do profissional liberal – em que o próprio sistema do CDC estipula que se trata de responsabilidade subjetiva (art. 14, § 4º, do CDC).

Quer dizer, existem diferentes sistemas de normas, e cada qual reclama maneiras de compreensão peculiares aos casos em que o próprio direito material predispõe diretrizes preponderantes, desde para a abertura como para a mobilidade do direito probatório – o que se reflete na valoração da prova.

Em outras palavras: os diferentes sistemas de normas, o próprio ordenamento jurídico, antecipa – como uma questão prévia – como o juiz deve reputar suficiente determinada prova. Isso não é estatística, não se trata de confronto de provas técnicas, mas resume um apanhado cultural que está fundado em uma experiência jurídica e que, com o passar do tempo, pendulariza-se para a proteção de uma ou de outra categoria de casos jurídicos.

Cansativamente, a doutrina cita o art. 6º, VIII, do CDC como um exemplo de inversão do ônus da prova.

O problema é o seguinte: inverte-se o ônus da prova em relação a quê?

Ora, essa inversão remete à verossimilhança ou à hipossuficiência do consumidor, vale dizer, remete à categoria jurídica do consumidor. Daí que tal inversão possui um endereço no sistema de proteção que está diretamente relacionado ao conjunto de normas de direito material cujos standards são diferentes da vasta gama de standards de confirmação com as quais o CPC pode se deparar.

No processo civil, a decisão pode envolver improbidade administrativa, questão empresarial, direito de família, responsabilidade civil, direito previdenciário, e assim por diante. Portanto, a regra do CDC não é universal; pelo contrário, ela possui um endereço de subsidiariedade – presta-se ao CDC.

Em geral das hipóteses do CPC, o standard da prova, o grau de confirmação para a convicção judicial, deve dialogar com a totalidade do ordenamento jurídico – e não ficar arraigada a uma novidade do art. 6º, VIII, do CDC, que já não é novidade alguma. Em realidade, é uma norma que deve ser pouco aplicada porque, afinal, quase todo o CDC já traz presunções suficientes para colocar o consumidor em posição de prestígio, em relação ao ônus e ao standard da prova.

Basta comprovar que é consumidor[26], o que denota a vulnerabilidade desse sujeito (afinal, o sistema do CDC foi predisposto para tutelar essa vulnerabilidade), então, o ônus de provar encarrega o fornecedor – salvo em particularismos, como no caso do profissional liberal.

Portanto, em termos sistemáticos, embora a dogmática do novo CPC apresente uma “inovação“, parece que a dinamização do ônus da prova apenas consagra uma realidade já batida nas instituições:

Art. 373. O ônus da prova incumbe:

  • 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
  • 2º A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.

Não se cogita de uma subsidiariedade pragmática. A norma apresenta procedimentos, pauta a necessidade do contraditório, o momento da inversão do ônus da prova e, sobretudo, define quem melhor deve ser onerado com o peso da posição jurídica de provar.

A “subsidiariedade” que ora se comenta é para ressaltar o atraso operativo do sistema brasileiro – no Brasil, não se acredita na norma do texto, somente tem valor o texto da norma.

Tudo sopesado, a aproximação entre direito material e processo fica dramática, porque, desde o momento em que a tutela jurisdicional é colocada como polo metodológico da teoria do processo (art. 5º, XXXV), o direito, “desde fora“, já deveria estar pautando as diretrizes para nortear o ônus da prova, a standardização do convencimento judicial e a própria decorrente motivação da decisão.

O direito fundamental à prova, em síntese, é dinâmico desde o nascedouro da demanda, deve ser analisado desde antes do processo, na perspectiva das fontes (metaprocessuais) até o desfecho da decisão. Porém, não está cravado no texto, o que parece invisível ao operador brasileiro.

Isso posto, o juiz não possui total liberdade para redistribuir ou para valorar a prova, como parece, quando analisado um sistema fechado e estático. Pelo contrário, em um sistema aberto e movediço, o convencimento judicial está abalizado por tendências conflitantes que, porém, respectivamente se coordenam entre si. Daí que o problema da valoração da prova remete a um novo modelo de relação entre prova e verdade – um modelo cuja perspectiva cultural pré-dispõe algumas diretrizes, mas está em diuturna reconstrução: trata-se de uma empresa em eterno refazimento.

4 OS CONCEITOS COMPROMISSADOS COM OS PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS DO PROCESSO CIVIL

A ascensão da pessoa como pedra de toque do sistema jurídico, ainda mais se levando em conta a formação de novos núcleos institucionais de poder, com a decorrente corrosão da soberania e com o legicentrismo e o jusestatalismo absolutos, resultou em um sistema por intermédio do qual as categorias jurídicas deixaram de serem axiomas ou dogmas imbatíveis, à espera de uma dedução unívoca e incontestável. Pelo contrário, a experiência jurídica contemporânea é de coalizão em termos de fontes, no sentido de organizar diretrizes basilares porque inarredáveis, mas, também, no sentido de pautar soluções a serem implicadas por módulos, por modelos funcionais, porque o direito não é somente um “dado” objetivo cravado em uma regra; antes o direito é um constante “fazer-se[27].

O direito é uma empresa em construção.

A dignidade da pessoa humana se trata de núcleo duro do sistema. Se a liberdade e a igualdade são valores materiais a serem alcançados, justamente, o link que pode garantir de sustentabilidade sustentação desse diagrama jurídico é a metodologia de trabalho, daí que tal metodologia deve ser previsível, na medida em que prevista em normas e em critérios que aproximem o direito da realidade – a verdade é um critério externo processo, porque a decisão é merit-based, mas a verdade conecta-se com o processo por intermédio da prova (que está dentro do processo).

Do contrário, o direito consagraria um sistema hermético, sem referenciais, e correndo o risco de uma autopoiese manipulável sem o cumprimento dos escopos precípuos já consagrados secularmente: a justiça, a pacificação social, a efetividade e a segurança.

Inúmeras discussões conceituais foram travadas na teoria do processo, em termos de verdade e prova. Entretanto, chama a atenção que os “pontos de inflexão“, os núcleos das discussões estão compromissados, cada qual à perspectiva metódica que vigorava em seu tempo.

Desde Calamandrei, verificou-se que a atividade de investigação processual da verdade não era totalmente livre, pois ela deveria atender a um método de trabalho. Levando-se em conta mais garantias que direitos fundamentais em oscilação axiológica, naquela época, já se comentava que o juiz não seria um mero historiador, pois devia se pautar pela imparcialidade[28]. O interessante é que o mesmo doutrinador formulou a clássica escala da “possibilidade, verossimilhança e probabilidade“, que foi campo fértil para inúmeras discussões entre os processualistas.

Independente das correntes ou distinções alinhavadas, é perceptível que tais conceitos olhavam, apenas, para dentro do processo, para os aspectos nucleares da ciência processual, justamente porque estavam comprometidos com fatores cujos pressupostos metodológicos remetiam ao norte da teoria da ação e da teoria da jurisdição. Quer dizer, para Calamandrei e seus epígonos, o processo consistia em um sistema hermético que fincava balizas normativas a serem resolvidas dentro do próprio processo, daí que as distinções – chame-se de escalas, graus, ou progressões referentes à prova – acabavam por pautar conceitos técnicos, porém, desligados da realidade maior que os circundavam.

Em outras palavras, falar em possibilidade, em verossimilhança, em probabilidade, enfim, atribuir críticas às regras de experiências, ou tentar tarifar percentuais estatísticos em termos de probabilidade, acabam sendo retratos de uma época em que se valorava a prova sem, contudo, realmente observar o “mundo lá fora“. O sistema do processo civil estava “fechado” para os demais campos do direito, daí que qualquer norma elaborada parecia recebida como uma revolução – como o art. 6º, VIII, do CDC. Ainda quando se cogita de cognição ou de certeza, ao invés desses conceitos, a reaproximação prática é mais aparente que real, porque tudo indica voltar a decisão – e a formação da certeza (cognição) – para dentro do processo: por isso que, por tanto tempo, o juízo de cognição ficava em suspenso, somente podendo ser decidido ao final, sem juízos sumários, porque os conceitos estanques não permitiam uma flexibilização e uma mobilidade entre os seus próprios congêneres.

Verossimilhança em relação a quê? Probabilidade em relação a quê?

Conceitos cujos conteúdos eram investigados dentro do processo, mesmo, o que ensejava um círculo situacional de novas investidas de fechamento operativo.

A questão do erro também possui endereço similar. Em geral, fala-se que a análise da prova deve se precaver contra o erro. A valoração da prova, atualmente, trabalha com uma metodologia comparativa, ou classificatório-analítica, em que se pautam standards que poderiam evitar o erro. Nesse “ponto de inflexão“, evidencia-se que a jurisdição está ancorando as diretrizes de toda uma formulação, que se reporta ao common law. De fato, é possível comparar julgamentos, olhar para “o lado” e verificar como determinada questão foi julgada. Até na velha discussão entre verdade formal e verdade material se efetuou tal comparação – valendo-se de outro critério de distinção (a atuação do juiz na produção da prova).

De qualquer maneira, a problemática de evitação do erro não é invenção ou sequer apanágio adstrito ao direito dos precedentes. Com efeito, o erro não chega a ser uma contingência das atividades culturais. O erro está presente em todas as ciências. Daí que as teorias formulam hipóteses de trabalho para que o erro não se torne sistemático, mas isso deve ocorrer sem que uma sobrecarga de trabalho remeta toda a responsabilidade para apenas um agente das relações.

A questão do erro judicial não é apenas judicial. Nesse caso, a temática compromete-se com a perspectiva metodológica na qual a jurisdição é colocada no núcleo do processo. Assim, tanto o erro como o “conserto” do erro são tarefas – unicamente – do juiz, porque se trata de formular balizas standardizadas com supedâneo em precedentes em que a própria jurisdição diz tudo, ou melhor, ela mesma diz o que pode dizer.

No atual quadrante constitucional, os conceitos não são estáticos. Para tanto, eles devem aproximar-se da realidade, daí que a utilização de ferramentas como os “modelos de prova” otimiza a relação entre a prova e a verdade. Na cultura presente, falar em possibilidade, verossimilhança, em probabilidade, e colorir esses conceitos com regras inferenciais de experiência ou de estatística, acaba “trazendo o processo para dentro do processo“. Na cultura presente, falar na evitação do erro com uma matriz kantiana[29] – comparativo-formal – também resulta em estancar o processo em uma figura estática, do tempo em que a jurisdição era dizer o direito do texto da lei.

Aliás, parece que os processualistas importaram os conceitos kantianos e os promiscuíram à questão da certeza, o que resultou em uma indevida promiscuidade entre a questão da verdade e a questão da correção da decisão. Sem aprofundar complexidades, na filosofia, a lógica se trata de uma teoria formal, uma teoria do conhecimento, que trata a não contradição e com a razão suficiente, enfim, que trata com as regras do pensamento (assentimento), daí se falar em “conhecimento” correto ou errado. De outro norte, a teoria do conhecimento (gnosiologia) trabalha com objetos materiais, portanto, humanamente impossível se formular um padrão genérico sobre o que é verdadeiro ou é falso, na medida em que os objetos são aceleradamente mutáveis.

Isso se reflete na atualidade – no confronto entre teoria procedimentalista e teoria estruturalista do Direito. Elas não são excludentes, mas se complementam, porém tudo indica que os clássicos conceitos processualistas colocaram, no mesmo patamar, conceitos que seriam melhormente diagramados quando identificados desde a própria origem.

Além de respeitar a relevância dos conceitos afirmados, o que importa é indicar que a nova ordem constitucional, hoje melhor refletida no Código de Processo Civil, apresenta uma perspectiva que não fica atarracada aos velhos pressupostos metódicos do processo. A sociedade atual está liquefeita, as relações são dinâmicas, portanto, os conceitos devem se aproximar dessa realidade, sempre considerando a conexão teleológica dos institutos.

4.1 O modelo compartilhado de prova

Tudo sopesado, o polo metodológico do processo civil atual é a tutela jurisdicional[30].

A Constituição estabelece, no art. 5º, XXXV: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito“.

As grandes discussões teóricas sobre a ação e a jurisdição perderam algum sentido, embora mantenham aquela supervivência típica dos mais ortodoxos positivistas. Agora, o importante é constatar que não adianta mudar um código, não adianta mudar a constituição, se os conceitos – se a experiência jurídica – continuar sendo guiada por uma maneira hermética de observar a natureza das coisas jurídicas.

A colocação da tutela jurisdicional como polo metodológico do processo civil implica um modelo compartilhado da prova. O velho pêndulo do modelo demonstrativo para o modelo persuasivo da prova ganha novas influências, seja no tocante à teoria das normas, seja no tocante à prática encerrada no formalismo processual, seja no tocante ao desenlace da técnica do processo, que elabora uma síntese entre o sistema e a forma.

A verdade, enquanto critério externo de referência da decisão, é um “valor-meio” ao processo. Trata-se de um guia ou um vértice que polariza a decisão. Segundo Michele Taruffo, a verdade “si tratta di un valore vallore ‘regolativo’ che orienta l’attegiamento che si deve avere nei confronti dei fatti, ma questa sua natura di ‘punto di riferimento’ non ne fa venir meno l’importanza, ed anzi consente di configurarlo come valore di rilevanza generale[31].

O modelo compartilhado da prova está embasado em três premissas.

A sociedade atual é líquida. Os fatos e as próprias normas jurídicas são dinâmicas e refletem autênticos pontos de abertura ou de coalizão de um sistema jurídico aberto e móvel. Como refere Erik Jayme[32], a pós-modernidade vive de antinomias, de pares contrapostos: “Ela se define justamente através da modernidade, que ela não quer ser“. Daí que a tal pós-modernidade – os nossos tempos líquidos – não procura encontrar o que é comum ou o que é parecido com o outro, pelo contrário: na atualidade, o “normal é ser diferente“, porque as medidas de tempo-espaço já não permitem uma segmentação pontualista.

Ora, tudo é passageiro. As pessoas já não vivem o momento presente, a sociedade está num museu, está numa aula, mas permanece viajando pelo celular. Até os crimes cibernéticos assumiram novas formas, e a própria figura da família está fragmentada – assim como uma raridade de museu que era denominada “sexo com amor“.

Nesse panorama emaranhado de valores e ideias divergentes, o valor preponderante é o “pluralismo“. A partir dele, e consagrado o núcleo da dignidade da pessoa humana, podem ser tensionados outros valores em convivência normativa, o que reclama uma coordenação dos sistemas, por meio da comunicação das normas, e por intermédio de metodologias ponderativas e associativas que somente possuem algo em comum – os problemas humanos são solucionados através de múltiplas metodologias, sem aquela conversa positivista o dedutivismo versus o indutivismo ou a analogia.

A regra é a diferença, o particularismo, daí ser importante considerar, como pedra de toque ou como valor de reunião desses diversos valores, o retorno dos sentimentos – a releitura dos que nos faz sermos humanos, a autêntica essência ou motivo para existir uma ciência cultural como o direito. Em síntese, a lei não conduz, mas apenas administra fatores em constante tensão[33].

O pluralismo e o respeito às diferenças, o particularismo e o retorno dos sentimentos, enfim, conformam a base social da premissa de um novo modelo que implica o compartilhamento da prova.

Em decorrência desses reflexos da pós-modernidade, no direito positivo, a leitura dos textos dos direitos fundamentais deixa expresso que fatores morais, políticos, jurídicos e éticos colocam a verdade como um “valor-meio” para que o Estado Constitucional chegue aos objetivos normativamente vigentes. Afinal, o processo justo reúne não apenas um somatório de valores, mas uma ordenação axiológica móvel, que atribui uma visão holística do sistema jurídico.

Isso é básico, está na supremacia da Constituição. O que importa, em realidade, é que os direitos fundamentais densificam os elementos que mais necessitam de tutela. Aqui o ponto – a tutela.

O novo processo civil trabalha com a tutela “desde fora” do processo, daí não se falar mais em condenação, execução, declaração, mandamento, ou constituição; é necessário pensar na efetividade para proteger as pessoas contra a lesão ou a ameaça aos direitos. Logo, as necessidades do direito material, outrora fincadas na figura do “dano“, hoje também se preocupam com a figura do “ilícito“, para formular uma estrutura voltada à proteção dos casos e necessidades que mais interessam à vida civilizada[34].

No talvegue da pós-modernidade, portanto, a premissa decorrencial é proteger o diferente, é tutelar o particularismo, por intermédio de um modelo probatório não meramente dicotômico – ora demonstrativo, ora persuasivo. Com efeito, os velhos modelos da dogmática privilegiavam a estática processual. Conferiam uma aparente segurança, porque eram apenas duas ideias como versos de uma moeda, porém a segurança era aparente, porque a metodologia de trabalho acabava sendo homologada por uma motivação que valia como uma espécie de warrant fake – dava uma certa aparência de certeza de background, enquanto, em realidade, ocorria uma solução axiomática em que um indício poderia virar prova, e uma evidência poderia ser contingenciada e esquecida em um contraditório formal.

A maneira dicotômica dos modelos de prova remeteria o processo, novamente, a discutir a diferença hermética entre verossimilhança e probabilidade, e questionar a evitação do erro com o Juiz Hércules. Ou seja, trocavam os atores, mexia-se nos conceitos, todavia eles continuavam distantes da realidade. Daí que ficavam como meras denominações, sequer conceitos reais, porque distantes do “mundo lá fora“.

Nesse diapasão, evitar lesão ou ameaça de lesão – a tutela no centro da experiência – abre um leque de possibilidades de atuação ao processo que, na perspectiva densificadora dos direitos fundamentais, são concretizados pela técnica processual, uma técnica[35] que efetua a síntese entre o sistema e a forma de tratamento para, assim, os operadores atingirem os objetivos plurais conviventes.

A terceira premissa toca o formalismo, porque implica uma adequação da técnica processual ao retorno dos sentimentos, à supremacia da Constituição, e ao dever da tutela dos direitos que vêm “desde fora” do processo. O processo, então, vale-se de uma pluralidade de métodos de trabalho para elaborar uma decisão judicial funcionalizada à verdade. No exame da prova, as premissas codependentes não são meramente dogmáticas (relação sujeito-objeto) ou o ceticismo, mas antes transfiguram uma intersubjetividade que remete a um realismo metodológico.

Realismo metódico quer dizer que as narrativas processuais apresentam problemas contrapostos. Para desvendar a questão, o terceiro imparcial se garante pelo esforço argumentativo das partes, que será a base para se construir a decisão expressa pela fundamentação. A fundamentação das decisões, por sua vez, é indissociável, do contraditório, é a fiscalização das partes para se alcançar uma decisão racional, não permitindo que seja ela ato isolado do juiz, fruto da sua subjetividade. Pela ampla argumentação, tem-se o direito à prova e assistência de advogado. É uma garantia das partes para que se possa ter o tempo processual apto para reconstruir o caso concreto e discutir quais normas jurídicas serão adequadas.[36]

Agora, não remanesce um espaço para uma convicção – tanto de suficiência como de valoração da prova – absolutamente livre, porque o julgador está ligado àquilo que “desde fora” as narrativas trazem para dentro do processo: a questão da tutela dos direitos. Recupera-se o caráter problemático do direito, mas com uma participação ativa do juiz, que não se trata de um “árbitro de futebol“, daqueles que pode tudo.

Pelo contrário, o juiz do processo deve atender à tutela dos direitos. Daí a importância dessa premissa metodológica, porque ela envolve o contraditório no sentido material, entre as partes, com a garantia de influência e a garantia de não surpresa, nas decisões. O monólogo apouca o litígio e afasta a prova da verdade. Para relativizar essa tendência, para além dos esforços das teorias procedimentais – que predispõem argumentos e escalonam fatores de coalizão validatórios -, o ideal é que a experiência jurídica exclua contradições.

Minimamente, um circuito entre normas e fatos que deve refletir dois aspectos, quando o juiz elabora uma decisão:

  1. a) Ele deve se referir à categoria ou à natureza do problema a ser decidido, porque daí é que se extrai um conjunto de normas (presunções, regras de experiência, técnicas normativas de tendência, políticas públicas) que expressam o “grau” de prova suficiente para que o julgamento seja efetuado; atingido esse “grau” de suficiência, o juiz não pode se valer do critério subsidiário do ônus da prova;[37]
  2. b) O legislador não chega a atribuir “graus” de probabilidade dos fatos, não confere uma escala predeterminada de provas que devem prevalecer; contudo, na pós-modernidade, a supremacia constitucional chega a predispor algumas alternativas que se sobrepõem aos demais valores, portanto, o próprio ordenamento jurídico – se observado na tensão dos valores, e com o revival dos sentimentos -, apresenta uma margem de prejudicialidade onde categorias podem ser privilegiadas, ou determinadas provas podem ser peremptórias, a depender da ponderação ou da multimetodologia aplicada ao caso concreto, pelo julgador.

Não se trata de uma resposta pronta. Não se trata de uma receita ou regra de bolso. Justamente, porque reflete aquilo que a pós-modernidade não quer ser – a pós-modernidade não quer ser moderna.

Chega de modernismos e dicotomias. Logo, o processo justo está comprometido com desígnios sociais e políticos[38] que organizam formalismo processual participativo e ativista em dinamicidade, mas, que, sobretudo, reclama uma redistribuição dos institutos consoante a força da Constituição e das necessidades prementes da tutela.

A técnica deve ser adaptada a essa maneira de observar o processo. Portanto, o compartilhar a prova é a participar ativamente na feitura da prova; é trazer, “desde fora” do processo, o regime jurídico que regulamenta a espécie de cognição; é ter presente que os direitos fundamentais tratam de pluralismos, e que o juiz pode errar, mas não a evitação do erro não se conforma a uma mecânica dedutivista; antes depende de arrolar tendências – o que é mais tendente na promoção dos valores basilares em nosso ordenamento: a liberdade e a igualdade.

Por entre o princípio dispositivo e o inquisitivo, remontando o liberalismo e a socialização do processo, na classe das teorias procedimentais ou estruturalistas, o que se compromete, no modelo compartilhado da prova, é confiar que o processo reclama um critério externo – uma tutela que advém “desde fora“, portanto, uma tutela em constante mutação.

4.2 O adensamento da tipificação das provas

A experiência jurídica vale-se de provas atípicas para trazer, ao processo, o mundo dos fatos. Com a reiteração de novos casos concretos, a jurisprudência consolida entendimentos que, pela utilidade prática, acabam sendo afirmados na legislação. Nesse momento, algumas provas que outrora eram atípicas assumiram o caráter de provas típicas, porque estão textualizadas no Código de Processo Civil (sem prejuízo de outras fontes versarem sobre a questão).

4.2.1 A ata notarial

A credibilidade dos carimbos, certificações, registros correspondenciais, verificações de autenticidade são questões inversamente proporcionais à civilidade (leia-se: boa-fé e colaboração) de uma sociedade. Em realidade, o crédito que esse tipo de prova pode assumir, provavelmente, advém dos diminutos limites geográficos da metrópole portuguesa.

De qualquer maneira, a legislação brasileira mantém simpatia pela burocracia dos cartórios extrajudiciais. Inclusive, argumentos que evitariam o overload da jurisdição – e não evitaram, na prática – são utilizados para incrementar a burocracia, para aumentar o número de demandas que são creditadas aos cartórios extrajudiciais. Chega a ser um legado monárquico em pleno terceiro milênio.

O Código de Processo Civil estabelece:

Art. 384. A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião.

Parágrafo único. Dados representados por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos poderão constar da ata notarial.

Tudo indica que a ata notarial é mecanismo de imediação e atestação entre a feitura de ato eletrônico – pela internet, em especial, rede social via computador ou celular – e a constatação da mensagem digitalmente formulada. Com efeito, o agente público meramente atesta que observou determinada mensagem ou imagem. A partir disso, a ata notarial pode ser apresentada no processo.

O vigor da ata notarial está diretamente relacionado à instantaneidade da atestação que ela efetua, na medida em que é notória a dinâmica das mensagens veiculadas, digitalmente, pela internet. O meio se presta, portanto, para dizer que tal ou qual mensagem ou imagem, em determinado momento, foi observada, e a distância entre o envio da mensagem e a lavratura da ata[39].

Agora, isso não eleva tal atestação (pela ata notarial) a uma presunção de verdade do conteúdo do documento abalizado-carimbado como “autêntico“, porque avistado no celular ou no notebook de alguém. Evidente que mensagens eletrônicas podem ser manipuladas, e a velocidade do hackeamento deveras maior que a possibilidade do “andamento da fila” que existe em qualquer cartório de certidão de ata notariais.

O direito é fenômeno cultural. Logo, certeiro que a ata notarial merece uma singela observação de plausível autenticidade, e isso quando não violado um dever que ela deve encerrar – a indivisibilidade da prova (art. 342, parágrafo único, do CPC); porque é muito comum que se tente lavrar uma ata do pedaço da conversa que favorece à parte – em conversas de WhatsApp, por exemplo – sem, contudo, que se apresente a integralidade da conversa.

Nesse sentido, a autenticidade deve trafegar ao encontro da integridade da prova; do contrário, não merece uma valoração significativa. Apenas fenecerá como ato burocrático sem maior envergadura prática, na formação do convencimento judicial.

Finalmente, o desencontro estrutural entre a ata notarial e a certificação de imagens ou documentos digitais remete esse tipo de prova a uma figura-tampão, de pouca força de convencimento. Pensar que um carimbo ou uma assinatura de agente público pode conferir certeza ou avantajar a verossimilhança de documento digital consiste em comparar os meios de comunicação da cultura do terceiro milênio às escritas do direito romano. Ora, para que uma ata notarial tenha vigor efetivamente valorativo, ela deve estar na mesma linguagem[40] daquilo que ela analisa – ou seja, a ata notarial, os cartórios, enfim, devem estar interligados ao sistema de criptografias e de protocolos de internet para, daí sim, conferirem velocidade e autenticidade indiscutível à prova.

Do contrário, a “novidade” da ata notarial não passa de um arremedo de hearsay testemony escrito, e muito aquém daquilo que ela presente demonstrar, porque jamais assegura a inalterabilidade[41] do documento a ser atestado. Ainda mais, quando é praxe, no Brasil, as atas ou documentos aparecem entrecortados, manipulados, violando a indivisibilidade. O dever da apresentação de documento indivisível[42] não é sinônimo de autoincriminação, mas sobremaneira dificulta a possibilidade da mentira – tática odiosa e repudiada pelo ordenamento.

4.2.2 A prova técnica simplificada (expert witness ou consulenza testemoniale)

A metodologia processual orientada pela sincera colaboração e pela boa-fé processual se trata de um esquema em que as provas podem ser antecipadas, agilizadas, inclusive, para o próprio reforço do contraditório. A tática brasileira, tradicionalmente, é esconder as provas e surpreender o adversário; de outro lado, em países evoluídos (civilizados, em todos os sentidos do termo), a surpresa não remete à racionalidade da vitória, porque vence quem tem razão, ao invés de ter razão – a qualquer custo – quem vence.

Independente da triste realidade enfrentada na realidade dos foros, a legislação brasileira parece encorpar técnicas probatórias que se aproximam do clássico discovery, da common law, em que o aparato probatório até poderia prevenir litígios. De fato, em algumas contendas, ao invés da esperteza de alguns, prevalece o bom senso e o vigor do processo justo – o processo previsível, no qual as provas mais diretas e efetivas devem ser manuseadas para a aproximação da decisão ao vértice da verdade.

No Direito brasileiro, a prova técnica ou a perícia assume um privilégio que exaspera a impossível onisciência do juiz. A perícia, em certos casos, é o único remédio plausível (ver art. 375 do CPC).

Agora, o conhecimento humano tem sido amplificado, daí o que antes estava restrito a uma perícia, talvez, possa ser explicado por um testemunho técnico, por algum experto que possui qualificação na área, técnica que confere efetividade e celeridade à operação judicial. No Brasil, não chega a ser uma total novidade, porque já havia uma incipiente previsão na Lei nº 9.099/1995:

Art. 35. Quando a prova do fato exigir, o juiz poderá inquirir técnicos de sua confiança, permitida às partes a apresentação de parecer técnico.

Considerada a “informalidade” e a “simplicidade” dos Juizados Especiais, evidente que os técnicos da confiança do juiz não caracterizam um substituto do perito, uma expert witness. Porém, a ideia não deixa de ser análoga, no sentido de antecipar o conhecimento da questão de fato, por intermédio da abreviação da gestão da linguagem na coleta da prova: um sujeito que está acostumado a trabalhar em determinado ramo tem mais condições de examinar a previsibilidade das coisas que um juiz, que é um técnico das normas jurídicas.

A expert witness é prova semelhante, porém deveras mais formal que a oitiva do técnico, que está previsto pelo Juizado Especial. Com efeito, a expert witness trata-se de um movimento cultural semelhante, mas cujo formalismo acresce em termos de credibilidade quanto em termos de possibilidade de controle daquilo que a testemunha pronuncia[43].

A questão é identificar qual o tema adstrito ao técnico, ou seja, o que seria admitido, segundo o objeto da prova, a ser explicado pela técnica da expert witness. De fato, parece se cuidar de um meio termo entre a perícia e a prova testemunhal, porque tal modalidade aparecerá quando as partes puderem apresentar especialistas que expliquem – direta ou indiretamente – como funciona determinado exame sobre o estado de fatos ou de pessoas. A consulenza tecnica trabalha nos espaços não facilmente inteligíveis, vale dizer, naquilo que exaspera o senso comum ou o senso de conhecimento especial do juiz e das partes, mas não chega a ser algo significativamente complexo, a justificar uma perícia mais formal.

Tanto que o próprio CPC confere um caráter subsidiário a tal prova:

Art. 464. A prova pericial consiste em exame, vistoria ou avaliação.

1º O juiz indeferirá a perícia quando:

I – a prova do fato não depender de conhecimento especial de técnico;

II – for desnecessária em vista de outras provas produzidas;

III – a verificação for impraticável.

2º De ofício ou a requerimento das partes, o juiz poderá, em substituição à perícia, determinar a produção de prova técnica simplificada, quando o ponto controvertido for de menor complexidade.

3º A prova técnica simplificada consistirá apenas na inquirição de especialista, pelo juiz, sobre ponto controvertido da causa que demande especial conhecimento científico ou técnico.

4º Durante a arguição, o especialista, que deverá ter formação acadêmica específica na área objeto de seu depoimento, poderá valer-se de qualquer recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens com o fim de esclarecer os pontos controvertidos da causa.

A nova legislação denomina de “prova técnica simplificada” o trabalho do substituto do perito, isso quando o ponto controvertido for de menor complexidade. A técnica pode conferir mais agilidade ao processo:

Il problema è che la consulenza diviene, di fronte ad un giudice non specializzato, una vera e propria prova legale; e assai poco servono le perizie di parte, che soffriranno, dal punto di vista del giudice, della medesima strutturale ininteligibilità.[44]

Em outras palavras: não importa que o juiz tenha formação técnica em determinada área[45] (como a engenharia ou a medicina): o ponto de flexão é que o juiz deve ter o bom senso para nomear a testemunha técnica para assuntos tangentes entre a experiência comum versus a perícia; do contrário, o julgador estaria cumulando, indevidamente, especialidades que o sistema jurídico – por eticidade – não permite que sejam cumuladas.

O problema da prova técnica simplificada retorna ao fundamento do próprio novo ordenamento processual – será, mesmo, que o brasileiro dispõe da civilidade e da boa-fé objetiva para apresentar técnicos comprometidos com a “razão da prova“? Ou continuará prevalecendo, como se verifica, facilmente, na prática, o ceticismo de uma inescrupulosa “prova da razão“?

Pode-se dizer que o tempo responderá a eficácia prática desse meio de prova. De outro lado, refletindo sobre alguns séculos da cultura processual brasileira, talvez, o sujeito não precisa ser um profeta para imaginar a utilização meramente pontual que o instituto assumirá.

4.2.3 A prova emprestada 

Os fundamentos lógicos da prova emprestada consistem na economia processual e na unidade da jurisdição. Com efeito, se uma prova já foi produzida perante a jurisdição, não haveria motivos evidente para que ela fosse repetida, em outro processo, se o objeto da prova é análogo ou o mesmo objeto que se pretende provar.

A prova emprestada se trata de uma prova documental[46]. Embora, no processo originário, ela pudesse ter sido uma de outra natureza (prova pericial ou testemunhal, por exemplo), considera-se prova emprestada aquela que já foi produzida outrora, em outro processo, para nele gerar efeitos. Entretanto, na medida em que a essência do objeto da prova pode ser reaproveitado, agora, em outro processo, daí se fala em prova emprestada: de um processo para o outro.

O CPC apresenta regulamentação típica sobre a matéria:

Art. 372. O juiz poderá admitir a utilização de prova produzida em outro processo, atribuindo-lhe o valor que considerar adequado, observado o contraditório.

O ideal é que a prova originária tenha sido produzida entre as mesmas partes, porque o ponto de inflexão do empréstimo de provas, entre processos, trata-se da questão do contraditório. Sendo preservado o contraditório, desde a feitura da prova, até o transporte da documentação para outro processo, garante-se o processo justo, e toda a sorte de valores que ponderam o ambiente dialético.

A partir da preservação do contraditório – tanto na origem (formação da prova originária) quanto no destino (processo no qual a prova será documentada) -, assumem um caráter mais pragmático que, propriamente, teórico. Trata-se da utilidade da prova produzida.

Ora, se a prova não pode ser reproduzida (porque faleceu a testemunha ou porque pereceu o objeto da perícia), a prova emprestada assume maior credibilidade. Ainda no sentido do crédito da prova, evidente que princípios como o juiz natural e a oralidade são relativizados, tendo em vista a sobreposição pontual da efetividade sobre a segurança jurídica. Do contrário, o formalismo exacerbado não contribuiria para o andamento dos processos, o que acaba sobrecarregando todos os desdobramentos das esferas de poder estatal e social.

Segundo Eduardo Cambi[47], a prova produzida em procedimento administrativo, em que garantido o contraditório, também pode ser transportada para o processo civil, e vice-versa. Vale dizer que a metodologia, desde a admissão até o debate sobre a prova, enfim, a observação formal da produção da prova enquanto atividade de compartilhamento de informações, torna-se o eixo de validação da prova emprestada. Garantidos os direitos fundamentais, o processo administrativo (embora aqueles de cunho punitivo) não se distancia, em termos de standardização, do processo civil, em que os reflexos da prova emprestada geram efeitos análogos – indenização, sequestro de bens, demissão, entre outros aspectos.

Finalmente, a interceptação telefônica ou a gravação clandestina – em regra geral -, meios de prova admitidos mediante previsão legal para questões criminais (Lei nº 9.296/1996), não consistem em um meio de prova tipicamente utilizado no processo civil. Em questões de eminência civil, o juiz não está autorizado a decretar interceptação telefônica. De qualquer maneira, na medida em que essa prova seja produzida, regularmente, mediante ordem de juiz criminal, ela pode ser emprestada ou transportada para o processo civil ou, inclusive, para o processo administrativo disciplinar.

Observada a lei que autoriza a interceptação telefônica, o juízo natural que decretou a interceptação, e observado o contraditório e a proporcionalidade da medida, portanto, trata-se de prova que pode ser emprestada a processo não criminal[48]. Quer dizer, se a interceptação telefônica ou a gravação foram regularmente produzidas na origem – em juízo competente -, tal prova pode ser emprestada ao processo civil.

Inclusive, porque o maior rigorismo formal do processo penal (standardização em grau máximo: prova acima da dúvida razoável) implica uma prova mais cuidadosa, desde a formação até a valoração. Logo, a prova produzida em processo penal suficiente, enquanto documento degravado, para ser emprestada ao processo civil, chegando a se falar em “utilização ou compartilhamento de dados[49] colhidos pela jurisdição de outra competência, em razão da matéria.

4.3 A prova atípica e a confusão referenciada

O Código de Processo Civil não é taxativo no referente às provas. Inclusive, deixa em aberto a possibilidade de surgirem outras modalidades que sejam funcionais à verdade.

O art. 369 do Código de Processo Civil estabelece:

Art. 369. As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.

O dispositivo ratifica a multifuncionalidade da prova e projeta abertura do sistema do CPC em relação aos demais regimes jurídicos. O problema que consiste no critério que referencia a abertura operativa – o moralmente legítimo.

A questão da moralidade é algo que não depende, apenas, da especificidade dos casos concretos. Ainda mais em se tratando de Brasil.

Como produto cultural, o direito atende a fluxos e contrafluxos. Logo, vale lembrar que, quando se discutiu sobre o modelo demonstrativo ou sobre o modelo persuasivo da prova, fatores sociais, ideológicos ou políticos foram sustentáculos de “fundamentos morais” ou de “racionalidade“. Vale dizer que o moral, no Brasil, depende muito do partido político imperante, depende do nicho de vulnerabilidade que tem lobby no congresso, ou até depende da ajuda que se propõe a uma campanha política ou para trazer a Copa do Mundo para o País.

A abertura da moralidade é deveras relativizável em estruturas sociais que ainda estão no divã evolutivo. Portanto, esse fator tem causado um estrago significativo em termos de desencontro de soluções jurisprudenciais.

Mais abaixo, cita-se um exemplo.

4.3.1 A inspeção ou constatação efetuada por oficial de justiça

A inspeção judicial é meio típico de prova. Contudo, notório que o Magistrado não dispõe de tempo para se deslocar até os locais dos fatos, para observar e constatar, in loco, a situação de pessoas e coisas.

Na medida em que é inerente à atividade do oficial de justiça a mobilidade, o deslocamento, natural que algumas diligências possam ser facialmente desempenhadas por tal agente público, mediante determinação judicial. O CPC chegou a conferir, ao oficial de justiça, a possibilidade de avaliar determinados objetos.

Além disso, intuitivo que o juiz pode determinar que o oficial de justiça efetue outras diligências compatíveis com a função desempenhada no trabalho de rua, tanto por medida de economia processual como por questão de efetividade da jurisdição.

O CPC estabelece:

Art. 154. Incumbe ao oficial de justiça:

[…]

II – executar as ordens do juiz a que estiver subordinado;

[…]

Logo, o oficial de justiça desempenha um meio atípico de provar determinados fatos, desde que sejam fatos compatíveis à simplicidade da observação que ele dispõe, e na medida de tempo que o overload jurisdicional lhe propicia.

 

4.3.2 O comportamento da parte como prova

Na razão especificada no nº 17 do Código de Processo Civil de 1973, Buzaid já divulgava que, posto que o processo civil seja, de sua índole, eminentemente dialético, é reprovável que as partes se sirvam dele, faltando ao dever da verdade, agindo com deslealdade e empregando artifícios fraudulentos; porque tal conduta não se compadece com a dignidade de um instrumento que o Estado põe à disposição dos contendores para atuação do direito e realização da justiça. Tendo em conta estas razões ético-jurídicas, definiu o projeto como dever às partes: a) expor os fatos em juízo conforme a verdade; b) proceder com lealdade e boa-fé; c) não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento; d) não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários àq declaração ou defesa do direito.

No Código de Processo Civil de 2015, a questão da boa-fé atingiu um patamar não meramente cognitivo, antes comportamental, porque se trata de boa-fé objetiva, momento em que a posição jurídica dos atores do processo é analisada de maneira a não poder refletir situações sem lógica, ou sem que haja um compromisso de civilidade litigatória. O CPC estabelece a boa-fé como elemento necessário ao comportamento das partes (art. 5º), o que é reforçado pelo modelo colaborativo de processo civil (art. 6º).

Daí que a boa-fé é uma obrigação processual, até um dever processual, e chega a caracterizar, em termos probatórios, um ônus processual. Em termos de obrigação (ou dever – no presente, utilizados como análogos), a força normativa do comando estabelece o dever da não contradição, a proibição do abuso do poder processual, a perda de poder processual em face desse abuso, ou mesmo a vinculação decisória a uma expectativa legítima implicada à contraparte, pelo fato do comportamento processual[50].

Os exemplos se multiplicam esparsamente, pelo CPC, e chamam a atenção pela imperatividade no sentido de uma obrigação da parte:

Art. 77. Além de outros previstos neste Código, são deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo:

I – expor os fatos em juízo conforme a verdade;

II – não formular pretensão ou de apresentar defesa quando cientes de que são destituídas de fundamento;

III – não produzir provas e não praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou à defesa do direito;

IV – cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final, e não criar embaraços à sua efetivação;

V – declinar, no primeiro momento que lhes couber falar nos autos, o endereço residencial ou profissional onde receberão intimações, atualizando essa informação sempre que ocorrer qualquer modificação temporária ou definitiva;

VI – não praticar inovação ilegal no estado de fato de bem ou direito litigioso.

A boa-fé processual, que caracteriza o comportamento leal e conforme o direito, trata-se da boa-fé objetiva[51]. Com efeito, pelas circunstâncias de fato, praticadas dentro do processo (comportamento propriamente dito), o juiz está legitimado a avaliar a situação como desconforme àquilo que seria esperado pela lealdade entre as partes e para com a jurisdição, àquilo que caracteriza uma litigância civilizada.

O comportamento da parte, no processo, é multifuncional.

Para além de uma obrigação legal, que pode gerar consequências indenizatórias (perdas e danos, multa), ou consequências expurgatórias (riscar palavras, ou pena referente ao atentado), o comportamento da parte em juízo auxilia na formação do convencimento do juiz. Nesse caso, o comportamento processual da parte consiste em um ônus – a depender do que a parte faz, ela perde uma posição processual, em termos de fortalecer um convencimento que não lhe é favorável.

O ônus processual é um encargo da parte, ele é uma condição para que a parte alcance uma posição jurídica de vantagem (ou não). Portanto, o comportamento processual desleal, contraditório, não colaborativo, ou contracivilizatório, acaba implicando um prejuízo à parte que violenta a boa-fé objetiva.

O ordenamento jurídico brasileiro acolheu tal solução, que já vinha consagrada na jurisprudência (vide Código Civil):

Art. 231. Aquele que se nega a submeter-se a exame médico necessário não poderá aproveitar-se de sua recusa.

Art. 232. A recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame.

O comportamento processual da parte, no Brasil, trata-se de prova atípica (art. 369 do CPC). Em outros ordenamentos, configura prova típica.

O Código Civil italiano estabelece:

Art. 116. (Valutazione delle prove)

Il giudice deve valutare le prove secondo il suo prudente apprezzamento, salvo che la legge disponga altrimenti.

Il giudice può desumere argomenti di prova dalle risposte che le parti gli danno a norma dell’articolo seguente, dal loro rifiuto ingiustificato a consentire le ispezioni che egli ha ordinate e, in generale, dal contegno delle parti stesse nel processo.

O comportamento da parte, talvez, afete a admissão ou a relevância da prova requerida. Aparentemente, questão mais ligada à questão da realidade do direito material discutida como demanda. De qualquer maneira, em termos de processo civil, para que o processo justo alcance a decisão judicial tendencialmente verticalizada em direção à verdade, o comportamento processual se trata de documentação, de contexto, de um fechamento da gestalt operativa que o Magistrado deve levar em conta – seja para conferir credibilidade à determinada prova, seja para formar o convencimento, no casos em que a verossimilitude possível do processo não permite maior precisão probatória. Uma solução hermenêutica, sobretudo, argumentativa, no escopo de o continuum autoimplicar-se do processo, no Estado Constitucional.

4.3.3 O frenesi da rede social como alter-ego de uma civilização imediatista

A prova mais utilizada, processos de família, trata-se de conversas de WhatsApp. Uma prova atípica, assim como o seria uma conversa por e-mail ou por rede social. De qualquer maneira, a questão da “moralidade” que o CPC comenta (art. 369) deve ser convergente às implicações constitucionais.

O art. 5º da Constituição garante a privacidade e a intimidade do sujeito:

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;

[…]

Ainda que sejam travadas conversas digitais, e embora o interlocutor disponha de um documento que foi produzido em suas mãos, alguns limites devem ser observados.

A eticidade ou a moralidade da prova atípica é critério referenciador da prova atípica. Daí que o caso concreto é que fornece dados, com base na proporcionalidade, para que a utilização seja liberada – em hipóteses não criminais.

Por exemplo:

  1. a) a falta de credibilidade de um dos interlocutores, por ocasião do comportamento processual desleal, pode retirar a força dessa prova;
  2. b) a violação frontal ao postulado constitucional da proporcionalidade, na vertente da “necessidade“, pode refutar a utilização dessa conversação, porque, de qualquer maneira, a conversa digital expõe a intimidade de um dos sujeitos, contra a vontade dele, sem falar na possibilidade da manipulação de dados, o que é facilmente perceptível no WhatsApp; ainda mais, determinados programas utilizados por hackers, cujo tutorial está no próprio Youtube;
  3. c) o tempo de duração das conversações ou das gravações não pode ser desarrazoado, e tal elemento pode ser extraído do ordenamento, porque, em questões criminais, permite-se interceptações telefônicas por prazos exíguos (15 ou 30 dias, prorrogáveis); se passar desse prazo, a conversa passa a ser uma devassa, o que contraria ditame da privacidade;
  4. d) a relação de equilíbrio entre as partes é fator que demonstra eventual deslealdade; ou seja, se não existe evidente abuso, ou se não existe algum fato específico a ser demonstrado, a prova da conversação não é eticamente aprovada;
  5. e) inclusive, em situações isonômicas, a gravação ou print de conversação pode ser produto de quebra de confiança como leading questions, ou seja, diálogos onde um interlocutor conduz o outro a dizer o que não queria; isso retira a veracidade, porque configura uma prova de arapuca, moralmente ilegítima;
  6. f) quando um dos interlocutores prepara ou efetua um ardiloso cenário para o debate, a prova torna-se imprestável, porque violenta a ética da reciprocidade na confiança entre os sujeitos.

A doutrina[52] refere que é prova imoral aquela que consiste em:

Gravação unilateral de conversa (gravação clandestina ou ambiental) em que o autor da gravação dirige ao interlocutor perguntas capciosas para lograr respostas induzidas, que, num falso contexto, poderiam fornecer-lhe versão dos fatos favorável aos seus intentos. São as chamadas leading questions.

Nenhum direito é absoluto, no atual quadrante constitucional. Se o interlocutor pode gravar algumas conversas, evidente que ele não pode efetuar uma devassa na vida da outra pessoa. Pelo contrário, uma devassa caracteriza uma ação delitiva, porque atenta contra o direito público de intimidade do interlocutor.

No caso concreto, por intermédio da proporcionalidade no sentido estrito, a tensão entre os valores é que definirão a eticidade da prova atípica. No confronto entre esses valores, prepondera a liberdade, prepondera a proteção da intimidade, a não ser que situações excepcionais tirem da curva aquilo que normalmente acontece.

Diálogos ou gravações intermináveis se denomina perseguição – stalking. Luis Alberto Reichelt[53] comenta:

O respeito a critérios de racionalidade e de justiça exige que se pense a ordenação do processo como uma forma de permitir o acompanhamento, passo a passo, da dinâmica de formação do convencimento jurisdicional. Ao mesmo tempo, essa mesma ordenação pressupõe a obediência a valores que transcendem o mundo do meramente jurídico, os quais permeiam o conteúdo dos comandos que compõem o sistema normativo de maneira a pautar a conduta dos sujeitos processuais em uma dimensão cultural. Nessa perspectiva, razão e valor são dimensões que se entrelaçam na dinâmica de interpretação da realidade com vistas à construção de decisões, permeando o raciocínio judicial de maneira a garantir sua orientação no que se refere à forma e ao conteúdo.

Isso posto, o caso concreto deve ser ponderado, os valores plurais devem ser tensionados, para que a atipicidade não se transforme em antiética ou imoralidade institucionalizada.

CONCLUSÃO

O problema sobre a decisão da questão de fato no processo civil não apresenta fórmulas ou esquemas mais contábeis que jurídicos. A questão é ressaltar que não se resolve o problema ao remeter soluções para a motivação da sentença. A prova, a questão da relação prova-verdade deve ser enfrentada desde a origem – ou seja, desde as necessidades do direito material até ao largo das técnicas abertas e movediças que o CPC predispôs.

O compromisso dinâmico da prova não se trata de um conceito pronto. Justamente tudo o que ele não quer ser é algo pronto e acabado, nos moldes cartesianos do positivismo. As soluções e técnicas surpreendem propostas que, na circularidade em relação ao caso concreto, pode auferir resultados que elaborem uma concordância prática entre a visão de contexto (holística) e particularista (analítica) dos meios de prova. Daí se tratar de uma atividade em diuturno aperfeiçoamento e, sobretudo, dinamicidade.

O mito da codificação, do jusestatalismo, do legicentrismo e do formalismo interpretativo cede espaços a um diálogo entre as fontes, cujo fundamento é a dignidade da pessoa humana, e cujos objetivos são a garantia da liberdade e da igualdade. A verdade, bom, a possível verdade, trata-se de um “valor-meio” que encerra previsibilidade à metodologia processual.

Tudo sopesado, fala-se em modelo compartilhado de prova, firmado em três premissas: (a) pluralismo e particularismos, um mundo líquido, que deve ser objeto de diuturna atualização pelo saber jurídico; (b) o regime das provas processuais não são adstritas às regras do processo, a questão da standardização ou dos modelos de constatação não são adstritos ao direito saxônico; pelo contrário, na medida em que a tutela jurisdicional elabora uma conturbação de direito + processo, as provas reclamam tutela “desde fora“, o que envolve as implicações dos direitos fundamentais e se reflete nas técnicas de adequação do processo às necessidades do direito material; (c) finalmente, o modelo compartilhado enseja uma participação colaborativa dos atores processuais, e se vale de múltiplas metodologias, porque somente a problematização das narrativas frente às necessidades das pessoas de carne e osso é que podem ser resolvidas por critérios racionais que empreendam razoabilidade, proporcionalidade, ponderação, enfim, humanismo quando da elaboração de uma decisão.

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[1] Julho de 2018.

[2] FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Trad. da 8. ed. por Elaine Nassif. 1. ed. Campinas: Bookseller, 2001. p. 80/3.

[3] A doutrina também comenta uma função psicológica e uma função jurídica, respectivamente, para o aspecto subjetivo e objetivo do ônus da prova. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Julgamento e ônus da prova. Temas de direito processual: segunda série. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 75.

[4] Na medida em que defende o ônus da prova como um “dever”, ainda mais considerando os poderes instrutórios do juiz, respeitável doutrina dispensa uma maior preocupação com a natureza subjetiva do ônus da prova. Ver RAMOS, Vitor de Paula. Ônus da prova no processo civil: do ônus ao dever de provar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, passim. De outro lado, parece majoritária a tendência que os poderes instrutórios do juiz não apoucam a função promocional do sentido subjetivo do ônus da prova, pelo contrário, a função de pacificação social, e o caráter publicístico do processo estabelece uma comunidade de trabalho, no qual “il confine tra potere dispositivo delle parti e poteri d’ufficio del giudice finisce così per presentarsi come mobili, per risultare necessitata per l’accertamento della verità materiale”. Ver VIDIRI, Guido. Giusto processo, accertamento della verità materiale e “imparzialità” del giudice. Rivista di Diritto Processuale, anno LXVII, n. 6, p. 1157, nov./dic. 2012.

[5] MITIDIERO, Daniel. Processo justo, colaboração e ônus da prova. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, v. 78, n. 1, jan./mar. 2012, passim.

[6] CAMBI, Eduardo. A prova civil: admissibilidade e relevância. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 323.

[7] DALL’AGNOL JÚNIOR, Antônio Janyr. Distribuição dinâmica do ônus probatórios. Revista dos Tribunais, v. 788, jun. 2001, passim.

[8] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O problema da eficácia da sentença. In: MACHADO, Fabio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 46.

[9] FAZZALARI, Elio. Note in tema di diritto e processo. Milano: Giuffrè, 1957. p. 159.

[10] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e convicção. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 194.

[11] A motivação do juiz deve explicar por que os fatos que ele reputou relevantes, para a decisão, foram compreendidos daquela maneira. Porque isso explicita o mecanismo da própria enunciação normativa, base do esquema do direito continental – “quem instaura processo de cognição pleiteia o reconhecimento ou a produção de determinado efeito jurídico. Ao órgão competente para julgar a causa incumbe pronunciar-se acerca do efeito pretendido. Como todo efeito resulta da incidência de uma norma jurídica sobre um fato (ou conjunto de fatos), para julgar necessita o juiz, de um lado, reconstituir o fato (ou o conjunto de fatos) e, de outro, identificar a norma aplicável”. Ver MOREIRA, José Carlos Barbosa. Julgamento e ônus da prova. Temas de direito processual: segunda série. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 73. A normentheorie consiste no reconhecimento explícito do diálogo explícito entre direito e processo, um está impregnado no outro.

[12] DE LA OLIVA SANTOS, Andrés. Objeto del processo y cosa juzgada em el processo civil. Espanha: Civitas, 2005. p. 51.

[13] CALAMANDREI, Piero. Verdad y verossimilitud em el processo civil. Trad. Santiago Sentis Melendo. Derecho Processal Civil, III. Buenos Aires: Ejea, p. 337.

[14] MARINONI, Luiz Guilherme. Formação da convicção e inversão do ônus da prova segundo as peculiaridades do caso concreto. Academia Brasileira de Direito Processual Civil. Disponível em: www.abdpc.org.br, passim. Inclusive, a questão da “inesclarecidibilidade”, suscitada por Marinoni, é conclusão que reporta a estrutura do processo justo ao objeto de análise – daí se leva em conta a vulnerabilidade, a posição da parte, a melhor possibilidade de provar algo, a natureza do fato, entre outros fatores. O importante é perceber que tudo isso é proveniente da natureza das coisas, do direito material, “desde fora” do processo, uma peculiaridade que remonta o diálogo entre as fontes, e Marinoni – com propriedade – é repetitivo em lembrar. Em outra época, até porque os “modelos de comprovação” eram culturalmente mais limitados, o sopesamento de verossimilhança era facilmente aceitável – ainda hoje o podem ser, ocorre que, no presente, em época de internet, câmeras por todos os lados, gravações e amplificações de escutas e telefonias, parece que o confronto entre verossimilhanças mais se aproxima de um critério resolvido com base no ônus da prova no sentido objetivo. Ver WALTER, Gerhard. Libre apreciación de la prueba. Trad. da edição de 1979 por Tomás Banzhaf. Bogotá: Editorial Temis, 1985. p. 193 e ss.

[15] PICARDI, Nicola. A vocação de nosso tempo para a jurisdição. Trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. In: PICARDI, Nicola; OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de (organizador e revisor técnico da tradução). Jurisdição e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 19.

[16]  Todas as classificações ou definições ombreiam um paradigma, é inerente à condição humana, o que desde o início é salientado. A tendência científica ou a incessante busca é identificar e trazer à tona os critérios definitórios e classificatórios e concluir com a polarização da pretensão de correção. A opção de reputar uma postura doutrinária como mais ou menos formalista, ou mais ou menos realista, ou mais ou menos moderada, não quer dizer que está acolhida absolutamente tal ou qual postura doutrinária, mas que de alguma forma estão sendo conjugados esforços no sentido de compreender o que esses textos transmitem quando internalizados à nossa cultura. Hart fora reputado de “realista moderado” no presente trabalho, o que não afasta o eventual predicado de “positivista” que podem lhe emprestar, assim como também não está afastada a possibilidade de se reputar Taruffo como um “formalista”, apesar de ele, aparentemente, ter a predileção por escrever sobre fatos, embora fatos que estejam minimamente controlados por normas, o que não o afasta do paradigma hartiano, somente em épocas com meio século de diferença, mas, sobretudo, com um requinte linguístico cujas balizas possuem o mesmo ou semelhante epicentro jusfilosófico. A grande questão de qualquer abordagem científica é identificar as tendências jurídicas contemporâneas e, a partir desse caldo de cultura aplicável ou não à realidade brasileira, extrair disso tudo alguma sorte de justificativas estruturantes da presente pretensão de regularidade ou, com isso, afirmar o que é possível elaborar para irradiar uma melhor regularidade ao direito nacional, em especial, ao conjunto das decisões judiciais.

[17] Testemunha por ouvir dizer.

[18] KNIJNIK, Danilo. Ceticismo fático e fundamentação teórica de um direito probatório. In: KNIJNIK, Danilo (Coord.). Prova judiciária: estudos sobre o novo direito probatório. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 25.

[19] KNIJNIK, Danilo. A prova nos juízos cível, penal e tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 18.

[20] A instrução e reconstrução dos fatos não é um unicuum, mas um continuum que repercute a metodologia do contraditório e se categoriza juridicamente na solução da decisão judicial. Ver Michele Taruffo, A verdade… Op. cit., p. 206.

[21] A formação do convencimento judicial versus a utilização do critério do ônus da prova para o julgamento é um autêntico dilema. “Nei casi in cui il giudice, pur constatando che le prove prodotte spingono in una certa direzione, non perviene al convencimento della ‘verità’, compie per così dire un passo indietro, ripartendo da zero ed applicando la regola sull’onere della prova. Conseguentemente, ad esempio, l’attore che purê aveva prodotto alcune prove in grado di dimostrare la verossimiglianza del fatto, ma non tali da vincere ogni possibile dubbio del giudice, vede respinta la sua domanda”. PATTI, Salvatore. Libero convencimento e valutazione dele prove. Rivista di Diritto Processuale Civile, n. 40, p. 497, 1985.

[22] RAMOS, Vitor de Paula. Ônus da prova no processo civil: do ônus ao dever de provar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 31.

[23] ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. Trad. Marina Gascón. 9. ed. Torino: Trotta, 2009. p. 17.

[24] Outro exemplo: o art. 23 do CDC refere que “a ignorância do fornecedor sobre os vícios de qualidade por inadequação dos produtos e serviços não o exime de responsabilidade”. O elemento normativo da culpa não permite afastar a consequência jurídica que tutela o consumidor em face dos vícios dos produtos e dos serviços, a culpa não pode ser alegada como justificativa. Deveras, o sistema de defesa do consumidor enaltece a proteção da confiança como uma base do ordenamento, tanto que a definição de vício que compromete o dever de adequação do produto ou serviço é a segurança (arts. 12, § 1º e 14, § 1º) ou a finalidade (arts. 18 e 20, § 2º), aspectos decorrenciais ou derivativos de um estado de coisas que o próprio legislador regulamentou como padrão.

[25] CARPES, Artur Thompsen. Apontamentos sobre a inversão do ônus da prova e a garantia do contraditório. In: KNIJNIK, Danilo (Coord.). Prova judiciária: estudos sobre o novo direito probatório. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 27 e ss.

[26] “Il progressivo passaggio dei diriti umani dall’ordine sociale al’ordine (anche) statuale, può essere descrito come ascesa della ‘persona’ rispetto al ‘soggetto’; ma è anche ascesa dello stesso soggetto, da una condizione di soggezione a una condizzione sempre più di centralità nell’ordine giuridico. Um ‘declínio’ è quindi configurabile solo come riduzione di una posizione di prevalenza della nozione e della realtà giuridica del soggetto rispetto alla nozione e alla realtà della persona, non come perdita di sostanziale giuridicità.” (OPPO, Giorgio. Declinio del soggetto e ascesa della persona. Rivista di Diritto Civile, anno XLVIII, n. 6, p. 835, nov./dic. 2002)

[27] Gustavo Zagrebelsky, idem, p. 123.

[28] CALAMANDREI, Piero. El juez y el historiador. Estudios sobre el processo civil. Trad. Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires: Editorial Bibliografica Argentina, 1045, 112.

[29] Lógica, p. 58.

[30] A Escola de Processo Civil da UFRGS, pelo menos, enquanto capitaneada por Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, parece adotar a teoria de Fazzalari, para quem o “processo” consiste no polo metodológico do processo civil. De qualquer maneira, ele ressalta que está superada a ideia de um juiz superpartes, de uma assimetrização absoluta do processo, no sentido da jurisdição estar no centro de todas as tomadas de decisões sobre o juízo de fato. Inclusive, em termos filosóficos, o transcendentalismo entre prova e verdade não reflete, somente, a apreensão dogmática do objeto pelo sujeito, antes repercute a viragem linguística na qual o sentido das coisas – do objeto da prova – é adquirida pela intersubjetividade, é produto de um compartilhamento que interlocuciona os atores processuais.

[31] TARUFFO, Michele. Verità e probatilità nella prova dei fatti. Revista de Processo, a. 32, n. 154, p. 214, dez. 2007.

[32] JAYME, Erik. Visões para uma teoria pós-moderna do direito comparado. Revista dos Tribunais, a. 88, v. 759, p. 25, jan. 1999.

[33] Idem, ibidem, p. 30.

[34] Marinoni, Arenhart, Mitidiero, idem, p. 67.

[35] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Do formalismo no processo civil: proposta de um formalismo-valorativo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 17.

[36] TEODORO, Warlen Soares; MIGUEL JR., Waldir. O processo constitucional democrático e a condução da prova pelo juiz na busca da verdade real. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Belo Horizonte: Fórum, a. 9, n. 9/10, jan./dez. 2011, p. 197, 2012.

[37] Salvatore Patti, idem, p. 502.

[38] THEODORO JR., Humberto. A importância da prova pericial no devido processo legal. Revista IOB de Direito Civil e Direito Processual Civil, v. 11, n. 62, p. 65, nov./dez. 2009.

[39] BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Saraiva, volume único, 2016. p. 355.

[40] PEREIRA NETO, Miguel. Os documentos eletrônicos utilizados como meio de prova para a constituição de título executivo extrajudicial e judicial. In: SCHOUERI, Luís Eduardo (Org.). Internet: o direito na era virtual. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 18.

[41] Idem, ibidem, p. 21.

[42] CARRATA, Antonio. Dovere di verità e completezza nel processo civile. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, anno LXVIII, n. 1, p. 76, marzo 2014. A parte não é obrigada a dizer a verdade substancial, daí se falar em boa-fé subjetiva, quando da manifestação da parte em termos de princípio dispositivo. O dever da completude ou da indivisão da prova não remete a uma verdade substancial, porém, ajuda a evitar a mentira: “Si vuole solo evitare che la ricostruzione dela fattispecie storica dedotta in giudizio sai in qualche modo falsata o alterata e perciò si impone alla parte di non essere consapevolmente reticente o scorretta, omettendo fraudolentemente alcuni elementi o particolari che as bene essere rilevanti nel contesto della domanda o dell’eccezione avanzata”.

[43] ANSANELLI, Vincenzo. Comparazione e ricomparazione in tema di expert witness testimony. Rivista di Diritto Processuale, anno LXIV, n. 3, p. 722, mag./jun. 2009.

[44] LOTARIO, Dittrich. La ricerca della verità nel processo civile: profili evolutivi in tema di prova testimoniale, consulenza técnica e fatto notorio. Rivista di Diritto Processuale, anno LXVI, n. 1, p. 117, gen./feb. 2011.

[45] THEODORO JR., Humberto. A importância da prova pericial no devido processo legal. Revista IOB de Direito Civil e Direito Processual Civil, v. 11, n. 62, p. 78, nov./dez. 2009.

[46] CAMBI, Eduardo. A prova civil: admissibilidade e relevância. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 53.

[47] Idem, ibidem, p. 59.

[48] LAZARI, Rafael José Nadim. Sobre a validade da interceptação telefônica como prova emprestada em processo não penal. Revista Bonijuris, a. XXIII, n. 572, v. 23, n. 7, p. 81, jul. 2011.

[49] BRILHANTE, Tércio Aragão. Gravações telefônicas e de imagens como provas no processo administrativo disciplinar. Repertório de Jurisprudência IOB, v. I, n. 24, p. 849, 2010.

[50] MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 107.

[51] RIBEIRO, Darci Guimarães. O sobreprincípio da boa-fé processual como decorrência do comportamento da parte em juízo. Revista da Ajuris, n. 95, a. XXXI, p. 85, set. 2004.

[52] AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Gravações clandestinas e ambientais no processo civil: as provas imorais. Doutrinas Essenciais de Processo Civil, v. 4, p. 8, 2011.

[53] REICHELT, Luis Alberto. A prova no direito processual civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 88.