O CIVIL LAW NO BRASIL E OS INSTITUTOS DE UNIFORMIZAÇÃO JURÍDICA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015: INCONGRUÊNCIAS OU REMODELAÇÃO DE SISTEMA?
Roberta Thaís Leitão Sousa
INTRODUÇÃO
O presente artigo trata da relação entre o sistema jurídico Civil
Law adotado pelo Brasil e os institutos de uniformização jurídica inseridos no Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), originários do sistema jurídico COMMON LAW. O objetivo deste trabalho é demonstrar a compatibilidade de tais institutos com o ordenamento jurídico brasileiro e a necessidade de sua efetiva utilização para que se alcancem os benefícios propostos.
O primeiro capítulo aborda os dois sistemas jurídicos, COMMON LAW e CIVIL LAW, apontando à origem, a história, as características, os lugares onde se desenvolveram e, também, os pontos em comum entre as duas tradições jurídicas. Além disso, destacou-se o modelo jurídico seguido pelo Brasil, qual seja o CIVIL LAW, que vem sendo relativizado pelos institutos de origem consuetudinários recentemente introduzidos no ordenamento jurídico brasileiro.
O segundo capítulo versa sobre alguns dos institutos de uniformização jurídica trazidos pelo CPC/2015, os precedentes judiciais ou súmulas, mencionados em vários dispositivos do texto processual, e o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), com características essenciais do COMMON LAW. Os referidos institutos buscam instrumentalizar a consolidação da jurisprudência e a utilização dos precedentes na uniformização das decisões judiciais, objetivando a concretização de princípios constitucionais e processuais e a redução do número de recursos e demandas, que abarrotam o Judiciário.
O terceiro capítulo discute sobre as implicações dos institutos de uniformização jurídica introduzidos no CPC/2015 no sistema jurídico do CIVIL LAW, se serão compatíveis com este ou não. Além disso, o capítulo aborda os princípios orientadores dos institutos, os benefícios que podem ser trazidos ao Judiciário brasileiro com a utilização deles e quais as providências a serem tomadas pelos órgãos jurisdicionais para efetivar os objetivos dos institutos.
Conforme se observou, há certa resistência quanto à utilização dos institutos de uniformização jurídica pelo Judiciário brasileiro, que atualmente tem uma jurisprudência discrepante, fato que gera prejuízos em vários aspectos, principalmente ofendendo os princípios da segurança jurídica, igualdade, celeridade, confiança nas decisões, previsibilidade, razoável duração do processo e efetividade jurisdicional.
Este estudo trata-se de uma pesquisa bibliográfica e qualitativa, de caráter teórico, desenvolvido a partir de materiais publicados em leis, obras doutrinárias, periódicos jurídicos e artigos científicos, dissertações e teses de diversos autores. O método adotado foi o dedutivo, por meio do qual se buscou redimensionar as teorias já existentes, partindo de conceitos gerais, para, em seguida, chegar às conclusões finais.
1 SISTEMAS JURÍDICOS COMMON LAW E CIVIL LAW
O COMMON LAW e o CIVIL LAW são os dois principais sistemas jurídicos existentes, com distinções importantes, em função da maneira em que surgiram e dos locais onde se desenvolveram.
O comune ley ou COMMON LAW seria o direito comum a toda a Inglaterra que, em 1066, não existia. A elaboração da comune ley, direito comum inglês, foi obra dos Tribunais Reais de Justiça, comumente designados pelo nome do lugar onde seriam estabelecidos a partir do século XIII, Tribunais de Wesminster, direito de natureza jurisprudencial (David, 2002, p. 359 e 428).
O CIVIL LAW tem origem na influência do Direito romano sobre os países da Europa Continental e suas colônias, onde houve a substituição quase que integralmente pelos princípios do Direito romano, dando ensejo à elaboração de códigos, leis e constituições (Galio, 2014).
Entretanto, conforme explica Marinoni (2009, p. 46-47), citado por Polastri, Ferreira e Possas (2015), não é a codificação per si o ponto de distinção entre CIVIL LAW e COMMON LAW, pois em ambos está presente tanto a produção legislativa quanto a jurisprudência, que, no CIVIL LAW, hoje, é admitida como fonte do Direito. A distinção reside na importância que é dada às leis e à jurisprudência em cada um dos sistemas.
Nota-se, então, que os mencionados modelos jurídicos possuem pontos conexos, embora apresentem características e conceitos próprios, tenham se desenvolvido em diferentes locais e influenciado de forma específica o entendimento jurídico de diversos Estados. Sobre o contexto histórico, cenário de criação e maturação destes dois sistemas jurídicos, será tratado nos tópicos que seguem.
1.1 COMMON LAW
No período anglo-saxônico, anterior a 1066, o Direito inglês mantém-se estritamente local, não havendo direito comum a toda a Inglaterra. A conquista normanda em 1066 é acontecimento capital, a época tribal desaparece e o feudalismo instala-se na Inglaterra; entretanto, o Direito anglo-saxônico se perdura e juristas e juízes ingleses invocam e aplicam as leis daquele período até os nossos dias (David, 2002, p. 356 e 357).
No feudalismo inglês, os senhores dependiam diretamente do rei, havendo neste sistema espírito de organização e disciplina de caráter militar, que permitiam à Inglaterra, por oposição ao continente europeu, o desenvolvimento do COMMON LAW. Neste contexto, aplicava-se o costume local, a partir do qual se limitava decidir qual das partes deveria provar a verdade de suas declarações, submetendo-se a um meio de prova que não necessariamente era racional (David, 2002, p. 358 e 359).
Nos séculos X e XI, o território britânico era despido de unidade, sendo totalmente subdividido em distritos que aplicavam o Direito germânico e o costume local por meio de cortes judiciais (Polastri, Ferreira e Possas, 2015).
No início da conquista normanda, os litígios eram levados às diferentes jurisdições, de modo que o rei exercia apenas a “alta justiça”, em casos excepcionais, como, por exemplo, se a paz do reino fosse ameaçada ou se a jurisdição, devido às circunstâncias, não pudesse ser exercida normalmente. A Curia regis, onde ele atuava, era a corte das grandes personagens e das grandes causas (David, 2002, p. 359).
Depois do século XII, procedeu-se à uniformização do Direito na
Grã-Bretanha durante os reinados de Henrique I e Henrique II, o que ocorreu mediante o intermédio de juízes itinerantes. Eles obtinham uma ordem escrita do rei (writ), que intimasse o réu a comparecer em juízo.
Sem o writ, uma ação não poderia ser proposta. Com o fortalecimento do governo régio, desautorizou-se a jurisdição feudal (Polastri, Ferreira e Possas, 2015).
Dessa forma, houve um enrijecimento do COMMON LAW por meio de instituições judiciais centralizadas. Vale ressaltar que, em decorrência do excesso de formalismos adotado no sistema inglês, dificultou-se o acesso à justiça, que ampliava a margem de casos sem a devida prestação jurisdicional (Polastri, Ferreira e Possas, 2015).
No século XVII, entretanto, na Curia regis algumas organizações passaram a adquirir autonomia, que foi o caso do parlamento, o qual fixou sua sede em Westminster. Estes Tribunais Reais de Justiça não adquiriram competência universal, pois muitos senhores não se submetiam ao seu veredito. Assim, a intervenção dos Tribunais Renais se limitava apenas às questões relacionadas com as finanças reais, com a propriedade imobiliária, a posse de imóveis e as graves questões criminais que se relacionem com a paz do reino. Todos os litígios continuavam a ser resolvidos, fora das jurisdições reais, pelas jurisdições senhoriais e eclesiásticas (David, 2002, p. 360).
No final da Idade Média, em razão de as outras jurisdições (municipais, comerciais e eclesiásticas) conservarem um sistema arcaico de provas, apreciarem apenas questões de menor importância e preceituarem somente em relação a litígios sacramentais, os Tribunais Reais são os únicos a administrar a justiça (David, 2002, p. 361).
Os Tribunais Reais se tornam jurisdições de direito comum, no sentido francês do termo, apenas no século XIX. Na Inglaterra, diferentemente do continente, ficou clara a importância das questões do processo em detrimento da determinação dos direitos e das obrigações de cada um. O COMMON LAW não se apresenta como um sistema que visa realizar a justiça, mas o conglomerado de processos próprios para assegurar a solução dos litígios, expondo com naturalidade os princípios e estudando os diferentes writs que poderiam ser postos diante dos Tribunais (David, 2002, p. 361, 636, 365).
Posteriormente, a função de analisar os recursos foi incumbida ao Lorde Chanceler, que se valia mais de normas mais do que jurídicas para o julgamento dos casos, jurisdição denominada equity, cuja lógica era fundada na teoria da “equidade do caso particular”, da qual se extraía a regra de um caso específico para aplicá-la em casos semelhantes no futuro. Ocorre que a equity entrou em conflito com o COMMON LAW enrijecido e chegou a substituí-lo (Polastri, Ferreira e Possas, 2015).
Os séculos XIX e XX representam uma época de transformação fundamental na história do Direito inglês, observando-se o triunfo das ideias democráticas e uma maior atenção ao direito substantivo, sobre o qual as soluções do COMMON LAW se reagruparam sistematicamente. Todas as jurisdições passam a aplicar do mesmo modo as regras do COMMON LAW e da equity (concepção de equidade do século XVI), esta anteriormente obtida apenas no recurso ao Tribunal da Chancelaria (David, 2002, p. 377 e 378).
Da cultura jurídica inglesa do COMMON LAW ou do direito consuetudinário derivam a doutrina do stare decisis de respeitar os precedentes judiciais – imposições aos juízes do recurso às regras estabelecidas pelos predecessores ou pela jurisprudência –, a equity law – decisão de direito com base na equidade e moral (David, 2002, p. 428).
Entretanto, em que pese o Direito inglês tenha se desenvolvido essencialmente com base na jurisprudência e precedentes judiciais, é crescente a importância dada à legislação e aos regulamentos naquele ordenamento. O século XX trouxe suas influências para Direito inglês, atraindo as atenções do direito para a legislação (statute law), pois o envolvimento com o ideal de Estado do Bem-Estar Social desencadeou a produção legislativa como forma de buscar igualdade e justiça a partir de legislações e regulamentos vindos do Estado (David, 2000, p. 19, apud Galio, 2014).
Em análise realizada sobre o moderno processo civil inglês, notou-se uma profunda ligação às leis escritas, que passaram a ser uma das principais fontes do direito processual civil. No entanto, o Direito inglês ainda é essencialmente firmado em precedentes, sendo que muitas teorias contratuais são puramente resultado das decisões judiciais (Andrews, 2009, p. 29, apud Galio, 2014).
Da cultura inglesa do respeito e aplicação da jurisprudência dos Tribunais receberam grande influência os Estados Unidos da América, o Canadá, alguns Estados indianos, sul-africanos e, de forma interessante, o Brasil, que hoje apresenta em códigos processuais teorias e institutos originados do sistema COMMON LAW.
1.2 CIVIL LAW
O modelo jurídico romano-germânico (CIVIL LAW) está ligado ao renascimento que se produziu nos séculos XII e XIII no Ocidente europeu, momento em que surgiu a ideia de que a sociedade deveria ser regida pelo direito e de que as relações sociais se baseassem no Direito, pondo fim ao regime de anarquia e arbitrariedade existente na época (David, 2002, p. 39 e 40).
Havia o desejo de um direito fundado sobre a justiça, cujo conhecimento a razão permitia, e no repúdio ao apelo para o sobrenatural.
Esse movimento tendente a fazer renascer o Direito romano, que se desenvolveu na universidade, corria o perigo de se limitar ao meio acadêmico, quando seria necessário difundi-lo e convencer as populações (David, 2002, p. 40).
O Direito romano se oferecia ao estudo e à admiração de todos, pois era fácil de conhecer; entretanto, era visto como de origem pagã, obstáculo eliminado por São Tomás de Aquino, que, em sua obra, início do século XIII, baseada na razão, mostrava que a filosofia romana era em grande parte conforme à lei divina (David, 2002, p. 43).
Seguindo a evolução histórica, no período da Europa Medieval, essa Direito romana passa a ser aplicado e interpretado, à luz da teologia cristã, devido à sua grande flexibilidade. Ressalte-se que, devido à fragmentação dos ordenamentos jurídicos feudais, fazia-se necessária uma norma unitária e, assim, além do Direito romano, o Direito canônico passa a se estabelecer como ordenamento jurídico estruturado acima dos diversos outros que se desenvolviam de forma específica em cada região (Polastri, Ferreira e Possas, 2015).
No século XIV, o Direito romano presta-se a desenvolvimentos novos, sistematizado em sua apresentação, contrastando com o caos do Digesto e o espírito casuístico e empírico dos jurisconsultos de Roma.
Nos séculos XIV e XV, ensina-se um Direito romano bastante deformado, especialmente sob a influência das concepções do Direito canônico.
A partir dos séculos XVI e XVII, as “decisões regulamentares” do parlamento são frequentes, de modo que, nesta época, nem os costumes nem o direito romano o vincula estritamente (David, 2002, p. 44, 45 e 58).
Na França no século XIX, os acontecimentos relacionados aos abusos excessivos de privilégios dos nobres, do clero e, também, dos magistrados resultaram na Revolução Francesa, que foi o grande marco histórico responsável pela consolidação de um novo modelo jurídico (Galio, 2014).
Após a Revolução, com a queda da monarquia absolutista e ascensão da burguesia e do parlamentarismo ao poder, houve o surgimento de um novo direito, alheio às antigas concepções da monarquia e que contrariava os magistrados ainda aliados ao antigo regime. Neste contexto, surgiu a necessidade de controlar a atuação judicial, limitando o trabalho dos juízes apenas à aplicação literal do texto legal (Galio, 2014).
A Revolução Francesa marca o início do Direito Civil moderno, ocorrendo uma substituição da compilação de Justiniano por uma codificação baseada em princípios racionais do Iluminismo. Nessa época, a cultura jurídica é fortemente marcada pela codificação e o culto à exegese (Polastri, Ferreira e Possas, 2015).
A Escola da Exegese desenvolveu programa típico do positivismo, cuja doutrina era o codicismo e este, no dizer de Carnelutti, “é uma identificação exagerada ou exasperada do Direito com a lei”, na ideia de que o código tinha solução para todos os problemas e que a lei seria o lugar onde se repousava o Direito (Nader, 2012, p. 385).
Nota-se que a ruptura com o antigo regime e a instauração de um novo ideal para o direito é a essência deste novo modelo europeu, determinado a desligar-se de sua tradição corrompida para satisfazer as necessidades da sociedade na época (Galio, 2014).
O sistema de direito codificado já era ensinado nas universidades da França, mas não era aplicado na prática. A unidade do Direito europeu não foi rompida pela codificação; pelo contrário, a expansão do Código de Napoleão a reforçou. Por outro lado, os efeitos do positivismo jurídico se mostraram negativos com a perda nas universidades da tradição de orientar e propor um direito justo para fazer apenas a exegese dos novos textos, os códigos nacionais (David, 2002, p. 69 e 70).
Vê-se, pois, que o desenvolvimento histórico do CIVIL LAW caracterizou-se pelo movimento de estruturação da legislação em códigos para a disciplina de searas jurídicas, como o Direito Civil e Comercial.
Pode-se perceber movimentos que valorizaram a literalidade da lei ou a sua interpretação sistêmica ou histórica. Do exposto, conclui-se por identificar o traço característico do CIVIL LAW: o foco no Direito tendo a legislação como fonte (Polastri, Ferreira e Possas, 2015).
Nota-se, então, que o sistema jurídico CIVIL LAW fundamentou-se no Direito romano, sistematizado em códigos e essencialmente escrito, e consolidou-se pela Revolução Francesa dos princípios iluministas, nascendo desse momento um novo modelo jurídico e um novo direito, marcado pela limitação da atividade dos juízes à aplicação da lei na sua literalidade.
Essa clara oposição às concepções do antigo regime que motivou a Revolução Francesa e estruturou a positivação que marca o CIVIL LAW trouxe também a necessidade de concretização da liberdade, igualdade e justiça, princípios que foram se perdendo aos poucos com o excessivo e puro culto à exegese.
A fragilidade do pensamento positivista e a necessidade da reconstrução do Direito com base nos valores humanos e objetivando o bem comum trouxe o Estado Constitucional de Direito, que teve seu início com o fim da Segunda Guerra Mundial, e foi marcado pela vinculação entre a legalidade e a estrutura do texto normativo da Constituição (Azevedo, 2011).
Nesse sentido, a Segunda Guerra Mundial foi o marco para a mudança do paradigma positivista, estritamente legalista, que pregava o desapego do ordenamento das questões morais e éticas da sociedade.
Esse ambiente foi propício para legitimação do fascismo e nazismo na execução de atrocidades na ofensa a direitos caros à humanidade.
1.2.1 O CIVIL LAW NO BRASIL
O ordenamento romano-germânico é reconhecido principalmente
pela forma como privilegia como fonte primária do direito à lei, em prejuízo da jurisprudência e dos costumes que figuram como fontes secundárias do Direito (Araújo e Santos, 2011).
O Brasil adota essencialmente o Direito romano-germânico como modelo jurídico, pela influência da colonização portuguesa. A promulgação de sete Constituições brasileiras, além da criação de extensa legislação e codificação esparsa demonstrou a permanência do referido sistema jurídico no País.
Entretanto, a positividade e a divulgação do Direito não são suficientes para proporcionar a certeza jurídica. O conhecimento do Direito não decorre da simples existência das normas jurídicas e de sua publicidade, o texto de lei precisa ser esclarecedor, inteligível e ao alcance do homem comum (Nader, 2012, p. 124).
O sistema adotado pelo Brasil define que a lei, por si só, é suficiente e plenamente aplicável, limitando qualquer interpretação do juiz no seu processo de aplicação aos casos concretos. Esse caráter “legicêntrico” foi positivado no ordenamento jurídico pela Constituição Federal, art. 5º, II, ao estabelecer que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Conclui-se, dessa forma, que o modelo brasileiro, inserido na tradição do CIVIL LAW, tem seu direito vinculado à produção legislativa (Ramires, 2010, p. 61, apud Galio, 2014).
No Brasil, o Direito procede originalmente do Legislativo, é do Congresso Nacional e das casas legislativas estaduais e municipais que as transformações necessárias devem advir; contudo, a inépcia política há tempos não possibilita que esse rito normal se cumpra como deveria.
Por esse motivo, o Judiciário é cada vez mais chamado a tomar pareceres ou questões deixadas de lado pelos legisladores ou em matérias que já não mais estão de acordo com os clamores sociais (Araújo e Santos, 2011).
Diante da incapacidade do sistema positivo em abarcar todas as situações jurídicas possíveis dentro de seus textos, em razão da complexidade das relações humanas, entendeu-se necessária, no Brasil, a criação e previsão no ordenamento jurídico, principalmente no CPC/2015, de institutos de uniformização jurídica, com o intuito de gerar um alinhamento das decisões judiciais, propiciando aos jurisdicionados maior segurança jurídica, celeridade, isonomia e coerência na resposta às suas demandas.
Entretanto, tais institutos possuem origem no sistema consuetudinário e se inserem dentro do ordenamento jurídico brasileiro, eminentemente romano-germânico, gerando, quanto à convivência de institutos de sistemas jurídicos diferentes, dúvidas sobre a efetividade da sua aplicação.
2 ALGUNS INSTITUTOS DE UNIFORMIZAÇÃO JURÍDICA NO CPC/2015
Há décadas impera no Poder Judiciário brasileiro o caos da insegurança jurídica, trazido pela quantidade alarmante de processos em curso, pela demora na solução dos conflitos e pela incongruência das decisões nos Tribunais.
Um dos mecanismos para tentar solucionar essa problemática foi a previsão pelo Novo Código de Processo Civil (NCPC) de institutos de uniformização jurídica, tais como o incidente de resolução de demandas repetitivas, a reclamação constitucional, os embargos de divergência e os precedentes judiciais para uniformização de jurisprudência.
Os novos institutos previstos na lei processual resgatam características do modelo jurídico COMMON LAW, aplicando a decisão reiterada dos Tribunais Superiores aos casos semelhantes. Para melhor compreensão, alguns desses institutos serão aqui estudados.
2.1 OS PRECEDENTES JUDICIAIS NO BRASIL
O precedente, como foi tratado anteriormente, é instituto proveniente da cultura jurídica inglesa do sistema COMMON LAW. A partir de um costume local, o juiz formulava a decisão, cujo fundamento, utilizado em caso semelhante, era considerado precedente.
Precedente é qualquer julgamento que venha a ser utilizado como fundamento de um outro julgamento que venha a ser posteriormente proferido. Uma decisão que não transcender o caso concreto nunca será utilizada como razão de decidir de outro julgamento, não sendo considerada precedente (Neves, 2016, p. 1297).
Jurisprudência, por sua vez, é o resultado de um conjunto de decisões judiciais no mesmo sentido sobre uma mesma matéria proferida pelos Tribunais. É formada por precedentes, vinculantes e persuasivos, desde que venham sendo utilizados como razões de decidir em outros processos, de meras decisões. A jurisprudência é abstrata e é o entendimento majoritário do Tribunal na interpretação de uma mesma questão jurídica. Quando formalizada pelo Tribunal, a consolidação objetiva da jurisprudência acerca do entendimento de uma questão jurídica se materializa em súmula (Neves, 2016 p. 1301 a 1303).
Apenas um precedente já é o suficiente para fundamentar a decisão do processo julgado posteriormente, enquanto a utilização de jurisprudência como razão de decidir exige do julgador a indicação de vários julgados no mesmo sentido. É o caráter concreto do precedente e abstrato da jurisprudência (Neves, 2016, p. 1298).
O marco mais reconhecido para o estudo dos precedentes judiciais no Brasil é a Emenda Constitucional nº 45/2004, que, além de ter promovido a denominada reforma no Poder Judiciário e inserido em nosso ordenamento as chamadas súmulas vinculantes, introduziu a repercussão geral nas questões submetidas a recurso extraordinário, conforme o art. 102, § 3º, da Constituição (Donizetti, 2014).
Há os precedentes com eficácia vinculante, julgamentos que nascem precedentes, e os precedentes com eficácia persuasiva, que se tornam precedentes a partir do momento em que são utilizados para fundamentar outros julgamentos. No Brasil, os precedentes são vinculantes.
Nesse sentido, o CPC/2015 previu, de forma expressa e específica, quais são os julgamentos que serão considerados precedentes. Entretanto, existem julgamentos que não fazem parte da lista e que podem servir como fundamento de decidir de outros julgamentos (Neves, 2016, p. 1312).
O art. 926 do Código de Processo Civil (CPC) determina aos Tribunais que uniformizem sua jurisprudência, conforme se lê:
Art. 926. Os Tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação. Se entende por jurisprudência estável a regra de “autorrespeito” dos Tribunais pela sua jurisprudência, ou seja, o impedimento de que os Tribunais abandonem ou modifiquem sem qualquer justificativa plausível seus entendimentos consolidados. Jurisprudência íntegra é aquela que leva em consideração o histórico de decisões proferidas pelo Tribunal sobre a mesma matéria jurídica. A coerência compreende-se pela própria essência da ideia de uniformização de jurisprudência, que é a aplicação isonômica do entendimento consolidado em casos análogos, preservando o princípio da isonomia (Neves, 2016, p. 1301 a 1303).
O § 1º prevê que os regimentos internos dos Tribunais deverão editar enunciados de súmula que correspondam à jurisprudência dominante. De acordo com o § 2º, os Tribunais, ao editar os enunciados de súmula, deverão se ater às circunstâncias de fato dos precedentes motivadores da sua criação, ou seja, os enunciados de súmula pressupõem uma similitude ou identidade fática dos precedentes que tomaram como base.
A exigência prevista pelo § 2º do art. 926 do CPC consagra a ratio decidendi ou razão de decidir, que será o fundamento principal dos precedentes aplicáveis aos fatos e que serão utilizados para editar a súmula (Neves, 2016, p. 1299).
O art. 927 do CPC também preceitua acerca dos precedentes vinculantes dos juízes e Tribunais, senão veja-se:
Art. 927. Os juízes e os Tribunais observarão:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os enunciados de súmula vinculante;
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
1º Os juízes e os Tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art.
489, § 1º, quando decidirem com fundamento neste artigo.
2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
5º Os Tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores.
Os incisos I e II do art. 297 se coadunam com a Constituição
(arts. 102, § 2º, e 103-A), que prevê a vinculação dos precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) em controle concentrado de constitucionalidade e os enunciados de súmula vinculante.
Os incisos III IV e V, entretanto, já são alvo de doutrinas que os apontam inconstitucionais, pois, ao considerar com status de precedente as decisões proferidas em sede do incidente de resolução de demandas repetitivas, incidente de assunção de competência, decisões proferidas em sede de recursos repetitivos, os enunciados de súmulas do STF em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em matéria infraconstitucional, e as orientações do plenário ou dos órgãos especiais, o Judiciário tornar-se-ia, a partir da vinculação de seus julgados, legislador quando do estabelecimento de normas, criando uma vinculação a preceitos abstratos e gerais fixados, com características de lei (Neves, 2016, p. 1303).
A doutrina que defende a novidade legislativa entende que o Poder Judiciário não cria norma jurídica nesses casos, não se devendo confundir a atividade de dar um sentido unívoco à norma que foi criada pela via legislativa com a tarefa de criação de norma (Neves, 2016, p. 1304).
De acordo com o § 1º, os juízes e Tribunais, quando decidirem com base nos precedentes, observarão também o contraditório previsto no art. 10 do CPC e a exigência da fundamentação específica, não se limitando a invocação de determinado precedente ou súmula, mas indicando as razões determinantes que adéquam o caso concreto analisado àquele fundamento.
Os parágrafos que seguem preveem que, no caso de alteração de tese adotada no precedente, haverá a possibilidade de audiência pública para rediscutir a tese. Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante no STF e dos Tribunais Superiores, e da oriunda dos julgamentos de casos repetitivos, a modulação dos efeitos poderá acontecer, no interesse social e no da segurança jurídica.
A modificação dos enunciados, em qualquer caso, necessitará de fundamentação adequada e específica, e considerará os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e isonomia. Além disso, aos precedentes será dada publicidade, e os Tribunais os organizarão por questão jurídica e os divulgará, preferencialmente, na rede mundial de computadores.
É o respeito ao processo democrático e participativo, sem embargo de resguardar expressamente eventual modulação no tempo dos efeitos da alteração, em nome da segurança jurídica e do interesse social (Esa, 2015, p. 695).
A harmonização e a coerência dos julgados nos Tribunais decorrem do princípio da igualdade e concretizam esse mesmo princípio, além da segurança jurídica, da previsibilidade, da estabilidade, do desestímulo à litigância excessiva e à confiança, da igualdade perante a jurisdição, do respeito à hierarquia, da imparcialidade, do favorecimento de acordos, da economia processual e da maior eficiência.
Observa-se, a partir das previsões do CPC/2015 sobre técnicas de uniformização jurídica, inclusive com ampliação das possibilidades contidas na Constituição Federal, a finalidade de alinhar o entendimento jurisprudencial com a criação de precedentes, evitando a duplicidade de decisões para casos semelhantes e a segurança de unicidade para os casos futuros.
A doutrina majoritária entende que o art. 927 do CPC consagra a obrigatoriedade de observação pelos juízes e Tribunais dos precedentes e enunciados sumulares previstos em seus incisos (Neves, 2016, p. 1304).
Entretanto, paira a dúvida em relação à observância ou não desses preceitos por juízes e Tribunais. Embora os precedentes sejam enunciados de súmulas dos Tribunais Superiores, decisões sobre questões constitucionais e orientações de órgãos fracionários vinculados àqueles
Tribunais, o órgão jurisdicional não está obrigado a segui-los, e sua decisão pode se fundamentar sob o argumento de ser equivocado o entendimento sumulado ou o precedente (Neves, 2016, p. 1304), servindo, ainda, como escudo a garantia da independência funcional.
A inserção positivada dos institutos do COMMON LAW em um país de cultura jurídica essencialmente romano-germânica, a abrangência desses institutos e a divergência doutrinária sobre essas inovações geram incerteza quanto à efetiva aplicação e observação pelo Judiciário brasileiro dessas previsões. Entretanto, vale considerar os objetivos dos instrumentos de uniformização e benefícios que procuram trazer os referidos institutos, os quais prometem efetivação aos princípios constitucionais e processuais basilares da segurança jurídica, previsibilidade e confiança nas decisões judiciais.
2.2 INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS (IRDR)
Previsto nos arts. 976 a 987 do NCPC, o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) é cabível sempre que houver, simultaneamente, efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito e risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.
Os pressupostos para o cabimento do incidente são basicamente cinco: a existência de efetiva repetição de demandas; o debate deve versar sobre questão comum entre as demandas a receberem o tratamento do incidente; que a controvérsia seja unicamente de direito – que não se refira a produção de provas –; que dessa multiplicidade de causas idênticas se possa extrair risco de violação à isonomia entre diversos litigantes ou à segurança jurídica; e que não tenha sido instaurada, em relação à questão jurídica, qualquer espécie de afetação da matéria no âmbito dos recursos repetitivos no STF ou no STJ (Oliveira, 2016).
O pedido de instauração do incidente será dirigido pelo juiz ou relator, por ofício; pelas partes, por petição; e pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública, por petição, ao presidente do Tribunal, com os documentos necessários à demonstração do preenchimento dos pressupostos para sua instauração, conforme texto do art. 977 do CPC.
Embora o CPC silencie a respeito, tem sido interpretado que o Ministério Público e a Defensoria Pública somente poderão requerer a instauração do IRDR para as matérias que constitucional, legal e regimentalmente houver competência para atuação do Ministério Público e da Defensoria Pública (Simão, 2014).
Ressalta-se que, de acordo com o § 2º do art. 976 do CPC, o Ministério Público, se não for o requerente, intervirá obrigatoriamente no incidente e deverá assumir a sua titularidade em caso de desistência ou abandono, previsão que se coaduna com a interpretação do pedido de instauração do IRDR pelo Ministério Público relativo apenas às matérias de sua competência.
O art. 978 do CPC prevê que o julgamento do incidente caberá ao órgão indicado pelo regimento interno entre aqueles responsáveis pela uniformização de jurisprudência no Tribunal, que julgará também o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária de onde se originou o incidente.
O procedimento judicial do IRDR inclui duas fases: a primeira é a da admissibilidade e a segunda é a do mérito ou de fixação de tese (Oliveira, 2016). Na fase de admissibilidade, depois de pedido de instauração do incidente, a primeira providência a ser tomada pelo presidente do Tribunal provocado é dar ampla e específica divulgação e publicidade ao incidente, por meio de registro eletrônico no Conselho Nacional de Justiça, conforme o art. 979 do CPC, no qual conterá, no mínimo, os fundamentos determinantes da decisão e os dispositivos normativos a ela relacionados.
O objetivo desta divulgação é (i) evitar instauração de incidentes idênticos, (ii) dar conhecimento para que haja suspensão dos demais processos individuais e coletivos que tratem da tese jurídica, mas, principalmente, (iii) dar conhecimento à sociedade civil acerca da existência do incidente para que possam formular o pedido de ingresso como amicus curiae (Yoshikawa, 2012, p. 243, apud Simão, 2014).
A partir da distribuição, o órgão colegiado competente para julgar o incidente procederá ao seu juízo de admissibilidade, presentes os pressupostos, conforme o art. 981 do CPC. Caso o IRDR seja admitido, passa-se ao procedimento meritório, fase em que o Relator (I) determinará a suspensão de todos os processos pendentes que tramitam no Estado ou na região, conforme o caso; (II) poderá requisitar informações a órgãos em cujo juízo tramita processo no qual se discute o objeto do incidente, que as prestarão no prazo de 15 (quinze) dias; e (III) intimará o Ministério Público para, querendo, manifestar-se no prazo de 15 (quinze) dias (art. 982 do CPC).
Essa fase, visando à segurança jurídica, comporta a possibilidade de qualquer interessado que eventualmente tenha um processo semelhante em qualquer lugar do país pedir diretamente ao STF ou ao STJ que determine uma suspensão de todos os processos que tratem da mesma situação jurídica no território nacional, conforme estabelece o art. 982, § 3º, do CPC.
Conforme o § 5º do art. 982 do CPC, cessará a suspensão dos processos pendentes, individuais ou coletivos que tramitam no Estado ou na região se não for interposto recurso especial ou recurso extraordinário contra a decisão proferida no incidente. É possível que haja interposição de tais recursos e, então, a tese jurídica fixada no julgamento do IRDR seria aplicada em todo o território nacional nos processos que versem sobre idêntica questão de direito (Simão, 2014).
Todavia, não há obrigatoriedade ou garantia de que serão interpostos os mencionados recursos no âmbito do IRDR, sendo crível que aquela decisão somente terá aplicação e eficácia vinculativa para os processos individuais e coletivos em curso perante o território de competência daqueles Tribunais. Se não for interposto o recurso especial ou o recurso extraordinário, não possui utilidade a suspensão dos processos individuais e coletivos em todo o território nacional; pelo contrário, a suspensão atrasará ainda mais o julgamento dos processos, o que não se coaduna com os princípios do NCPC que procura efetivar a celeridade processual e a outorga da prestação jurisdicional ao cidadão (Simão, 2014).
O CPC estabelece que o mérito do incidente deverá ser julgado no prazo de 1 (um) ano e terá preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus (art. 980 do CPC), admitindo a apresentação do pedido de tutela de urgência.
Conforme prevê o art. 983 do CPC, o Relator ouvirá as partes e os demais interessados (assistentes litisconsorciais), inclusive pessoas, órgãos e entidades com interesse na controvérsia, que poderão requerer a juntada de documentos, bem como as diligências necessárias para a elucidação da questão de direito controvertida. Conforme o § 1º do art. 983 do CPC, para instruir o incidente, poderá ser designada data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e conhecimento na matéria (amicus curiae).
De acordo com o § 2º do art. 983 do novo texto processual civil, concluídas as diligências, o Relator solicitará dia para o julgamento do incidente, que observará a ordem do art. 984 do CPC, qual seja, o Relator fará a exposição do objeto do incidente; poderão sustentar suas razões, sucessivamente, o autor e o réu do processo originário e o Ministério Público, pelo prazo de 30 (trinta) minutos e os demais interessados, no mesmo prazo de 30 (trinta) minutos, divididos entre todos, sendo exigida inscrição com 2 (dois) dias de antecedência, sendo possível a ampliação do prazo considerando o número de inscritos.
Nos termos do § 2º do art. 984 do CPC, o conteúdo do acórdão abrangerá a análise de todos os fundamentos suscitados concernentes à tese jurídica discutida, sejam favoráveis ou contrários. É exigida a fundamentação exauriente de todos os fundamentos suscitados no incidente em razão da eficácia vinculante do julgamento, mas o julgamento é condicionado ao que foi levantado no incidente (Neves, 2016, p. 1413).
No entendimento de Neves (2016, p. 1414), a possibilidade de apreciação no julgamento apenas dos fundamentos suscitados no IRDR não faz sentido, isso porque o Tribunal não está julgando ação ou recurso, mas incidente processual com o objetivo de fixar tese jurídica, de modo que não parece ser exigível a observância do princípio da adstrição, ou seja, mesmo fundamentos não suscitados poderão ser considerados pelo Tribunal.
É importante ressaltar que o IRDR é voltado para conflitos de massa, sendo plenamente possível que os interessados pretendam evitar a fixação da tese jurídica com a desistência do processo que deu causa à instauração do incidente. Essa tática é vedada pelo CPC, nos §§ 1º e 2º do art. 976, de modo que o Ministério Público assumirá a titularidade do incidente em caso de abandono ou desistência, os quais não impedirão o exame do mérito do incidente (Neves, 2016, p. 1414).
Conforme dispõe o art. 985 do CPC, a aplicação da tese jurídica, após julgado o incidente, abrangerá: (I) todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo Tribunal, inclusive aqueles que tramitem nos Juizados Especiais do respectivo Estado ou região; e (II) aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do Tribunal, salvo revisão da tese jurídica. Explica Daniel Amorim Assumpção Neves (2016, p. 1414), trata-se de eficácia vinculante, obrigatória, do precedente criado no julgamento do IRDR.
No caso do inciso II do art. 985 do CPC, caberão a concessão de tutela de evidência (art. 311, II, do CPC) e o julgamento liminar de improcedência (at. 332, III, do CPC). Não observada a tese adotada no incidente, caberá reclamação, nos termos do § 1º do art. 985 do CPC.
De acordo com o art. 986 do CPC, a revisão da tese jurídica firmada no incidente far-se-á pelo mesmo Tribunal, de ofício ou mediante requerimento do Ministério Público ou da Defensoria Pública, por petição.
Do julgamento do mérito do incidente caberá recurso extraordinário ou especial, que terão efeito suspensivo, presumindo-se a repercussão geral de questão constitucional eventualmente discutida, nos termos do § 1º e caput do art. 987 do CPC. Conforme o § 2º, apreciado o méritodo recurso, a tese jurídica adotada pelo STF ou pelo STJ será aplicada no território nacional a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito.
No Brasil, em linhas gerais, a doutrina vem apontando que o objetivo do IRDR é (i) agilizar a prestação jurisdicional, (ii) diminuir o número de processos judiciais e (iii) gerar uniformidade na jurisprudência (Simão, 2014).
No modelo de julgamento de processos por pilhas, a justiça geral é reputada mais importante do que a justiça analisada em cada caso e que se dá mais importância à uniformização, ao barateamento e à agilização das decisões do que à qualidade e à adequação às situações concretas. São preceitos que privilegiam o fator econômico em detrimento de uma justiça individualmente considerada (Ferraz, 2010, p. 302, apud Oliveira, 2016).
Embora o IRDR seja inovação, trazida pelo CPC/2015, este conserva e reitera naquele instituto a previsão de suas normas gerais dos princípios constitucionais da razoável duração do processo, da igualdade, do contraditório, da publicidade e do acesso à justiça (Oliveira, 2016).
Observa-se a marcante importância dada no CPC/2015 ao incidente de resolução de demandas repetitivas, que se manifesta também na larga previsão dada ao tema no texto processual. A tese firmada no incidente vinculará e servirá de parâmetro para todos os outros processos que versem sobre idêntica questão de direito, efeito que aponta a influência da cultura inglesa do COMMON LAW no Brasil.
3 IMPLICAÇÕES DA PRESENÇA DOS INSTITUTOS DO COMMON LAW NO BRASIL
Conforme abordado inicialmente, o modelo COMMON LAW possui como principal fonte de direito os precedentes judiciais emanados dos Tribunais Superiores, como normas de vinculação obrigatória (com as devidas flexibilizações), pois da jurisprudência é que se originam as regras a serem seguidas. O referido sistema possui suas bases na Inglaterra, cujas colônias sofreram influência, sendo exemplo os Estados Unidos da América, país que fora colônia inglesa e que se estruturou juridicamente com alicerces no COMMON LAW.
Adotado pelo Brasil, o CIVIL LAW, modelo romano-germânico, se originou no contexto da Revolução Francesa em que se pregava a limitação da atividade jurisdicional à aplicação pura da lei. Essa vertente positivista tinha como escopo alcançar em elevado grau à segurança jurídica e impedir os abusos por parte dos aplicadores do Direito (Fonseca, 2014).
Verifica-se que, embora o Brasil adote o sistema CIVIL LAW, a positivação e aplicação pura da lei pregada por esse modelo jurídico não têm sido resposta prática aos anseios da sociedade e do próprio Poder Judiciário. As relações humanas, inevitavelmente, originam a existência de conflitos que, cada vez mais complexos, quando provocam a jurisdição, não encontram adequação nos textos legais, gerando aos jurisdicionados insegurança jurídica, imprevisibilidade, morosidade na resolução das demandas, quebra da confiança e ofensa à isonomia.
Observa-se, então, a preocupação do legislador na criação e valorização dos precedentes judiciais no sistema jurídico brasileiro. O Código de Processo Civil de 1973 (CPC/1973) passou por diversas reformas que introduziram uma série de dispositivos legais (arts. 557, 544, §§ 3º e 4º, 518, § 1º, 285-A, 543-B e 543-C) que criavam mecanismos para que a jurisprudência fosse observada (Fonseca, 2014).
Entretanto, tais instrumentos não demonstravam tanta expressividade frente aos institutos de uniformização jurídica hoje prevista no CPC/2015, o incidente de resolução de demandas repetitivas, os precedentes judiciais, a reclamação, os meios de impugnação das decisões judiciais, o incidente de assunção de competência e o julgamento de recursos extraordinário no STF e, em especial, no STJ, quando repetitivos.
Todos esses mecanismos indicam que o CPC/2015 segue a essencialidade de um sistema que se preocupe e se ocupe de uma crescente uniformidade dos posicionamentos dos Tribunais. No fundo, como já visto, estão princípios e valores basilares ao próprio Estado Democrático de Direito, tais como a isonomia e a segurança jurídica, além de um novo paradigma: o precedente judicial (Duarte e Brasil, 2015). Não há dúvidas de que o Brasil, País de cultura jurídica CIVIL LAW, passou a adotar institutos do sistema COMMON LAW em seu ordenamento jurídico. Contudo, ainda há espaço para a seguinte indagação: Esses institutos terão aplicação prática e efetiva no Judiciário brasileiro?
O tema em questão envolve discussão acerca dos princípios que norteiam o sistema jurídico brasileiro e os institutos de uniformização de jurisprudência inseridos no ordenamento, sobre as teorias que explicam e criticam a atuação do Judiciário como poder inovador normativo no Brasil, a experiência do (des)respeito pelo órgão julgador aos institutos de uniformização previstos no CPC/1973 e as consequências na efetividade da tutela jurisdicional.
3.1 PRINCÍPIOS ORIENTADORES E PRINCÍPIOS ATINGIDOS
A Constituição Federal do Brasil de 1988 (CF/1988), símbolo da história democrática brasileira, trata de aspectos dos principais ramos do Direito infraconstitucional, entre os quais o processo civil, que funciona para concretizar os direitos fundamentais constitucionais e dar maior efetividade à tutela dos direitos materiais (Duarte e Brasil, 2015).
O Direito, portanto, e cada vez mais, busca trabalhar com base em valores que informem todos os seus ramos e áreas de interesse. Trata-se de conteúdo normativo amplo, que visa traçar fins a serem atingidos. São os princípios.
Interessa, aqui, destacar alguns dos princípios orientadores e os princípios atingidos pelos institutos de uniformização jurídica do NCPC, os quais foram inseridos no texto processual demonstrando a necessidade do diálogo entre a norma estritamente positiva e os institutos do COMMON LAW, almejando a homogeneidade do ordenamento nas decisões judiciais.
No Brasil, os juízes possuem ampla liberdade para decidir, inclusive contrariando precedentes já consolidados nos Tribunais Superiores.
Não se ataca, aqui, a liberdade de convencimento inerente a cada juiz, exatamente por sua condição de ser humano, mas de tal garantia surge o problema das decisões conflitantes (Duarte e Brasil, 2015). Em razão disso, a questão da previsibilidade, da confiança nas decisões e da segurança jurídica tem se mostrado complexa.
O resultado é um só: o Judiciário, hoje, se encontra, por suas próprias falhas estruturais, em desprestígio em face da sociedade. Uma das faces dessa crise é o tema em foco, qual seja a desigualdade do tratamento que dispensa a uns e outros jurisdicionados a colimar na quebra da confiança e da legitimidade que lhe interessaria inspirar (Duarte e Brasil, 2015).
É neste contexto que os institutos de uniformização entram em cena. O precedente judicial, uma vez respeitado, atua como instrumento garantidor da previsibilidade, de modo que determinada questão decidida definitivamente pelos Tribunais Superiores serviria de paradigma para a solução de casos idênticos ou que guardassem substancial semelhança. Não havendo, portanto, margem para surpresas (Fonseca, 2014).
O princípio da previsibilidade, uma das principais características de um sistema jurídico em um Estado Democrático de Direito, está indissociavelmente relacionado ao princípio da segurança jurídica, um[ dos pilares do Estado. É fundamental que os indivíduos que compõem uma sociedade possam prever a repercussão de seus atos, a fim de direcioná-los em um determinado sentido. Para tanto, se faz indispensável a existência das normas, compreendidas essas em sentido amplo, para abranger tanto a lei quanto os princípios e costumes inerentes aplicáveis à realidade (Fonseca, 2014).
Fundamento do sistema jurídico de raiz romano-germânica é a segurança jurídica, alcançada caso todos os fatos estivessem previstos na norma. Entretanto, a lógica e a experiência demonstraram a ineficiência do positivismo puro, pois, devido à complexidade das relações humanas, sempre haverá lacuna na norma e à falta de inclusão de valores éticos e morais no ordenamento jurídico, gera a possibilidade de prática de atos que violem direitos fundamentais ao homem.
No Brasil, além da insegurança jurídica trazida pelas lacunas legais, percebe-se desarmonia no entendimento de diversas questões pelos Tribunais Superiores, ainda que fundamentadas em princípios. As decisões reiteradas, mas não pacificadas, tampouco uniformizadas, serviam e ainda servem como base para a tomada de decisão pelos Tribunais inferiores. Essas divergências também ofendem o princípio da segurança jurídica, tendo se tornado imperioso, no Brasil, a inserção dentro do texto processual de institutos que tentassem mitigar essas deformidades.
Quanto à presença de lacunas no ordenamento jurídico, o Judiciário é chamado a atuar, atendendo a demandas da sociedade que não puderam ser satisfeitas pelo parlamento. Entretanto, o Judiciário, no Brasil recente, tem exibido, em determinadas situações, uma posição mais ampla, claramente ativista, expandindo o sentido e o alcance das normas por meio da interpretação, colocando a lei em segundo plano (Barroso, 2008).
O chamado “ativismo judicial” pode gerar um enfraquecimento da instituição do Estado de Direito e o questionamento acerca da legitimidade democrática do Judiciário, principalmente nos países com direito de matriz romano-germânica, como o Brasil, em que a lei é o centro da produção normativa. Em contrapartida, é inevitável a interpretação, ou seja, a construção da norma judicial no caso concreto por meio de princípios (Pinto e Donadelli, 2014).
Sobre o tratamento dos princípios, há os métodos propostos por Robert Alexy ou Dworkin, que visam à segurança jurídica e à motivação racional da decisão, com vistas a evitar arbítrios dos julgadores.
Entretanto, no atual cenário neoconstitucionalista, os sistemas de interpretação ainda não estão definidos e percebe-se o aumento de normas principio lógicas. Além disso, é cada vez mais clara a “politização do Judiciário” e a incapacidade do congresso de dar respostas rápidas à expectativa normativa da sociedade, de modo que vivenciamos a crise do primado da lei e a permanência de um estado de insegurança jurídica (Pinto e Donadelli, 2014).
Explica Barroso (2008) sobre a atuação do Judiciário frente aos outros poderes, principalmente em relação ao Legislativo, conforme se lê:
O Judiciário é o guardião da Constituição e deve fazê-la em nome dos direitos fundamentais e dos valores e procedimentos democráticos, inclusive em face dos outros Poderes. Eventual atuação contramajoritária, nessas hipóteses, se dará a favor, e não contra a democracia. Nas demais situações, o Judiciário e, notadamente, o Supremo Tribunal Federal deverão acatar escolhas legítimas feitas pelo legislador, ser deferentes para com o exercício razoável de discricionariedade técnica pelo administrador, bem como disseminar uma cultura de respeito aos precedentes, o que contribui para a integridade, isonomia, segurança jurídica, e eficiência do sistema. Por fim, suas decisões deverão respeitar sempre as fronteiras procedimentais e substantivas do Direito: racionalidade, motivação, correção e justiça.
Caso assim atue o Judiciário, a segurança jurídica não será ofendida, nem o princípio da separação dos poderes, e os institutos de uniformização jurídica hoje presentes facilitarão a concreção dos outros princípios para os quais foram criados, como igualdade, razoável duração do processo, celeridade e confiança nas decisões judiciais.
A máxima “cada juiz, uma sentença” reflete a percepção de incongruência nas decisões judiciais no Brasil. Não havendo linearidade nas providências jurídicas, haverá uma costumeira noção por parte dos jurisdicionados de que sempre há possibilidade de um novo entendimento judicial. Tal fenômeno gera o excesso de demandas e recursos.
Com efeito, a conta do número de processos que abarrota o Judiciário aumenta em progressão geométrica, de modo que ações que poderiam ser reunidas e decididas igualmente e recursos que poderiam ser desestimulados não o são. O menor tempo de duração de um processo fica prejudicado, juntamente com a celeridade preconizada como princípio na Constituição Federal e no texto do novo Código.
O processo decisório no Judiciário toma contornos de loteria, ou seja, o sucesso de uma demanda se torna uma questão de sorte ou azar, a depender de quem será o julgador ou em que momento será proferido o julgado. Esse fenômeno é aquilo que se tem denominado de “jurisprudência lotérica” (Fonseca, 2014).
As reformas trazidas pelo NCPC e a progressiva inserção do precedente em nosso ordenamento jurídico demonstram a tentativa do legislador em modificar essa realidade, de modo que, diminuindo a possibilidade de decisões divergentes, minimiza-se o incentivo à propositura de demandas e de recursos já desprovidos em processos semelhantes.
Os novos institutos fazem parte de todo um contexto social que busca uma justiça mais igualitária, segura, célere e eficaz, ante a crescente multiplicação das demandas repetitivas. Admitir que alguém, na mesma situação de outrem, tenha solução judicial diferenciada da que lhe fora conferida é verdadeira afronta ao princípio da isonomia consubstanciado no art. 5º, caput, da Constituição Federal, segundo o qual todos são iguais (Cunha, 2009, p. 239, apud Ximenes, 2010).
Deve-se ter em mente que uma das enunciações do princípio constante do art. 5º, XXV, da Constituição é, justamente, efetividade da jurisdição. Logo, a tutela que se espera do Estado Constitucional é aquela apta a produzir resultados efetivos, concretos, aplicáveis no plano exterior ao processo e que, além disso, preze pelo equilíbrio e pela confiabilidade do sistema jurisdicional (Duarte e Brasil, 2015).
Assim, casos que tenham a mesma razão ou fundamento, com base no que preceituam os novos institutos do CPC/2015, serão julgados de forma semelhante, evitando-se, então, a ofensa aos princípios da isonomia, segurança jurídica, confiança nas decisões judiciais, efetividade da jurisdição, previsibilidade, razoável duração do processo e celeridade.
Interessante ressaltar que os princípios orientadores dos institutos de uniformização jurídica do CPC/2015 e os princípios atingidos por essas inovações processuais acabam por se confundir, pois determinado princípio como fundamento de um instituto gera consequências que também possuem viés principiológico e podem trazer tanto efeitos positivos quanto negativos. Os instituto de uniformização do NCPC, embora tenham notável função de harmonizar as decisões judiciais e trazer uma série de benefícios, provêm da cultura do COMMON LAW, sistema drasticamente diferente do adotado pelo Brasil. Retoma-se, então, uma questão já apontada neste trabalho: Poderão adequar-se ao CIVIL LAW institutos da cultura dos precedentes judiciais? Sobre esta indagação tratará o tópico a seguir.
3.2 (IN)COMPATIBILIDADE DOS INSTITUTOS DO CPC/2015 NO JUDICIÁRIO BRASILEIRO
O CIVIL LAW é o sistema jurídico que se caracteriza pela sistematização mediante a codificação das normas jurídicas, sendo a lei sua principal fonte. O COMMON LAW, por outro lado, fundamentam-se na orientação dos julgadores pelas decisões já sedimentadas, tendo os precedentes cruciais importância. O COMMON LAW tem atribuído crescente importância à legislação e aos regulamentos em seu ordenamento, promovendo a consolidação de textos legais que fixam os principais pontos dos precedentes e a consequente codificação setorial. De tal sorte, torna-se possível falar na existência de certa codificação do COMMON LAW. Da mesma forma, o juiz assume uma função criadora do Direito, em tese incompatível com o sistema puro de CIVIL LAW, abrindo-se espaço para o fundamento de decisões com base em jurisprudência e a obrigatoriedade de obediência aos precedentes judiciais (Ferreira, Polastri e Possas, 2015).
Nota-se, então, um diálogo jurídico entre o COMMON LAW e o CIVIL LAW, que se influenciam mutuamente. Tal fato reflete no Direito brasileiro, o que se pode denominar “commonlawlização”, ou seja, a grande importância da jurisprudência como fonte e o crescente prestígio à função criadora do juiz (Porto, 2006, p. 763, apud Galio, 2016). As diferenças entre os dois sistemas jurídicos se atenuam, resultando no que se denomina “convergência evolutiva” (Cappelletti, 1993, p. 123-124, apud Galio, 2016).
A troca de informações entre os sistemas é evidente, mútua e consiste em uma tendência inevitável, pois a finalidade de ambos é a mesma, gerar previsibilidade e respeitar a isonomia. Entende-se, então, que os regimes que partiram de diferentes pontos na história do Direito agora caminham na mesma direção, tendo em vista os objetivos compartilhados (Mancuso, 1999, p. 165-166, apud Galio, 2016).
Vê-se, desde ponto, o fenômeno de referência de um sistema em outro. Tal verificação é vista como natural, vez que os ordenamentos jurídicos nacionais tendem a não se manter puramente em um ou outro sistema. Nesse aspecto, ainda é importante a relevância da hierarquização das fontes do Direito, de modo que no CIVIL LAW a lei mantém sua supremacia sobre as demais e no COMMON LAW, mesmo havendo a lei, o julgador não é por ela limitado (Ferreira, Polastri e Possas, 2015).
Conforme explicam Ferreira, Polastri e Possas (2015), no cenário jurídico brasileiro, a partir de certas nuances, torna-se possível afirmar haver, em realidade, uma hibridização do sistema CIVIL LAW com o COMMON LAW, que se expressa na aplicação de precedentes, fundamentação de decisões em súmulas e processos já julgados. Mas, nesse ponto, cabe indagar: Estaria o Brasil reproduzindo fielmente, ainda que de maneira parcial, os contornos do sistema de COMMON LAW?
A igualdade, a coerência, a isonomia, a segurança jurídica e a previsibilidade das decisões judiciais constituem as principais justificativas para a adoção do sistema do stare decisis, ou seja, do sistema da força obrigatória dos precedentes. Se, por um lado, observa-se a ofensa aos princípios quando situações juridicamente idênticas são julgadas diferentemente por órgãos de um mesmo Tribunal; por outro lado, a pura e simples adoção do precedente e, principalmente, a abrupta mudançada orientações jurisprudenciais são capazes de causar grave insegurança jurídica (Donizetti, 2014).
A tendência à valorização do precedente judicial se mostra pertinente e de máxima importância na atualidade, visto que diversos são os efeitos nocivos da falta de observância da jurisprudência dominante no julgamento de casos idênticos ou semelhantes (Fonseca, 2014).
Sobre a questão da reprodução fiel, pelo Brasil, de contornos do sistema de COMMON LAW, não importa discutir se o CPC/15 reproduz ou imita institutos do COMMON LAW, mas se esses institutos, de cunho jurídico eminentemente consuetudinário, teriam viabilidade e eficiência dentro do ordenamento jurídico brasileiro, de compreensão romano-germânica. Mais, ainda, quais as providências a serem tomadas pelo Judiciário frente aos institutos já positivados, para que tragam as melhorias que supostamente aspiram para a prestação jurisdicional.
Os institutos de uniformização inseridos no Brasil possuem congruência com o sistema CIVIL LAW, pois, conforme tratado antes, os dois sistemas conversam e compartilham entendimentos e objetivos. Embora tenha inserido em seus textos legais institutos próprios da cultura jurídica consuetudinária, o Brasil não remodelou seu sistema jurídico, no sentido de passar a adotar o COMMON LAW, dada a forte influência romano-germânica da codificação no Brasil. Entretanto, diante da intensa importância apresentada no CPC/2015 aos institutos do COMMON LAW, é possível afirmar haver no Brasil uma hibridização dos sistemas.
Embora o sistema jurídico adotado pelo Brasil seja o CIVIL LAW, não há dúvidas da inserção de institutos e teorias próprios do COMMON LAW, que atualmente se encontram expressos nos textos legais e defendidos pela doutrina. Conforme explicitado, a introdução dos institutos de uniformização no Brasil possui boas intenções no que se refere à matéria relativa aos princípios jurídicos, e, dependendo de sua efetiva aplicação, pode trazer benefícios para o Judiciário e para a sociedade em geral.
Não obstante o evidente esforço dos órgãos legiferou no sentido dar expressividade às súmulas, não se tem notado, por parte da jurisprudência, preocupação equivalente, dada a falta de uniformidade decisória. Infelizmente, as súmulas nem sempre revelam a existência de um entendimento verdadeiramente sedimentado. Pelo contrário, a alteração sistemática de jurisprudência acaba provocando o abandono do entendimento sumulado, ou, ainda, a edição de nova súmula, tratando diferentemente uma mesma matéria (Wambier, 2009).
A função constitucional de uniformização do STF e do STJ fica comprometida pela intensidade de divergência jurisprudencial dentro dos mesmos Tribunais, pois mantém profunda e insistente discrepância acerca de determinadas questões jurídicas, proporcionando justamente o resultado oposto, qual seja, a insegurança e intranquilidade acerca de como deve ser interpretada uma norma constitucional ou federal. Admitirem-se decisões diferentes concomitantes ou, ainda, as tais grandes viradas, é negar o Estado de Direito, é estimular a propositura de ações e o ato de recorrer (Wambier, 2009).
Não se tem dado no Brasil a devida atenção no sentido de que o respeito ao entendimento sumulado pelos Tribunais Superiores, de todo modo, somente repercutirá em diminuição da quantidade de recursos.
Haverá evidente desestímulo ao ato de recorrer se as partes estiverem convencidas de que o entendimento sumulado representa, efetivamente, algo consolidado, e que não será facilmente modificado, a não ser que haja, por exemplo, alteração da própria norma jurídica a respeito da qual a súmula foi editada (Wambier, 2009).
É necessário que a população tenha condições de confiar nas decisões do STF, em suas súmulas, mesmo não sendo vinculantes. O mesmo se diga quanto ao que devem inspirar no jurisdicionado as decisões do STJ. Deve haver uma jurisprudência firme das Cortes, e não pessoal, de cada um dos seus Ministros (Wambier, 2009).
Assim, o próprio Judiciário e, principalmente, os Tribunais Superiores são os responsáveis pela falta de uniformidade jurídica existente no Brasil, e que compromete os princípios da segurança jurídica, celeridade, razoável duração do processo, previsibilidade, confiança nas decisões e igualdade. Embora os institutos de uniformização jurídica se encontrem positivados e possua inclusive procedimento para tal finalidade, a eficácia de tais instrumentos só se dará com a utilização efetiva pelos órgãos jurisdicionais.
Dessa forma, importante é que o STF e STJ considerem em suas decisões a proporcionalidade e razoabilidade que do Poder Judiciário se espera. Nesse sentido, embora haja controvérsias nos votos para o mesmo caso, que se busque o entendimento dentro Tribunal, a fim de sedimentar a jurisprudência de forma uníssona, coerente e justa, visando à efetividade da prestação jurisdicional.
Com efeito, encontrando-se a jurisprudência estabilizada, os órgãos jurisdicionais inferiores seguirão os precedentes. Quando em casos semelhantes, os juízes utilizarão os institutos de uniformização jurídica previstos no texto processual, dando concretude aos princípios constitucionais e processuais aplicáveis, gerando benefícios em curtos e longos prazos, para o Judiciário e para a sociedade, que constantemente dele necessita.
CONCLUSÃO
Atualmente, o Judiciário brasileiro encontra-se atulhado em meio ao excesso de demandas e recursos que lhe são propostos diariamente. Em razão disso, foram inseridos, de forma expressa, no CPC/2015, institutos de uniformização jurídica, tais como os precedentes judiciais vinculativos e o incidente de resolução de demandas repetitivas. A finalidade da introdução dessas e de outras inovações é trazer harmonia à jurisprudência pátria, na busca pela efetividade da prestação jurisdicional e a concreção de princípios constitucionais e processuais.
O Brasil, entretanto, adota o sistema jurídico CIVIL LAW, e os referidos institutos têm origem no COMMON LAW, modelo jurídico que considera a jurisprudência como principal fonte normativa. Com o passar do tempo, as duas tradições jurídicas passaram a conversar e compartilhar objetivos, de modo que hoje, no CIVIL LAW, se dá importância crucial aos precedentes judiciais, e, no COMMON LAW, a legislação vem sendo utilizada para aumentar a segurança jurídica. Compreende-se que, atualmente, o Brasil adota um sistema jurídico híbrido, resultado da globalização jurídica, de modo que a presença dos institutos próprios da cultura consuetudinária encontra compatibilidade com o sistema CIVIL LAW.
Com efeito, a inserção dos institutos de uniformização jurídica no CPC/2015 ganhou expressivo espaço no Brasil, dado a incoerência decisória existente principalmente nos Tribunais Superiores, órgãos que possuem o dever de sedimentares entendimentos congruentes em suas decisões com o fito de harmonizar o Judiciário no mesmo sentido.
Nota-se, então, que não é objetivo principal deste trabalho discutir sobre a compatibilidade dos institutos de uniformização jurídica previstos no NCPC com o sistema CIVIL LAW. Tal questão não traz maiores problemas. Existe relevância, contudo, em considerar a importância dos institutos dentro da realidade jurídica brasileira.
Assim, é necessária a tomada de providências pelo próprio Poder Judiciário, para que esses instrumentos de uniformização sejam utilizados e os seus benefícios sejam realmente percebidos. Concomitantemente, que sejam observados e concretizados os princípios da segurança jurídica, confiança nas decisões judiciais, previsibilidade e celeridade, que se integram e geram a tão almejada efetividade da prestação jurisdicional.
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