RKL Escritório de Advocacia

O AMICUS CURIAE NO PROCESSO ADMINISTRATIVO

Ada Pellegrini Grinover

SUMÁRIO: 1 A Administração e o Devido Processo Legal. 2 O Contraditório no Processo Administrativo. 3 O Novo Sentido do Contraditório em Relação às Partes. 4 Contraditório e Participação. 5 O Amicus Curiae. 6 O Amicus Curiae no Ordenamento Brasileiro. 7 O Amicus Curiae no Processo Administrativo.

                                  

1 A Administração e o Devido Processo Legal       

A análise histórica das garantias do devido processo legal demonstra que elas nasceram e foram cunhadas para o processo penal, no qual se fazia sentir com mais urgência a preocupação com os direitos do acusado. Porém, a partir do art. 39 da Magna Carta de 1215, um longo caminho evolutivo levou, primeiro, ao reconhecimento da aplicabilidade das garantias ao processo civil [1] e, posteriormente, ao processo administrativo punitivo [2]. Este último passo foi dado graças à generosa tendência rumo à denominada “jurisdicionalização do processo administrativo“, expressão relevante do aperfeiçoamento do Estado de Direito, correspondendo ao princípio da legalidade a que está submetida a Administração Pública e aos princípios do contraditório e da ampla defesa, que devem preceder toda e qualquer imposição de pena [3].

A essa evolução não ficou alheio o Brasil. As garantias expressas pelas Constituições para o processo penal foram sendo estendidas ao processo civil até a consagração da aplicabilidade, a este, da cláusula do “devido processo legal“, na interpretação do princípio da proteção judiciária, solenemente explicitado pela Constituição de 1946 (art. 141, § 4º) e mantido pelas Cartas de 1967 e 1969 [4]. E, sobretudo, a partir de 1946, a recepção de princípios e regras do processo jurisdicional pelo processo administrativo punitivo levou ao reconhecimento, neste, do direito de defesa, pela interpretação dada ao § 15 do art. 141, argumentando-se, ainda, com a isonomia: em qualquer processo em que haja acusado, deve haver ampla defesa [5]. A jurisprudência não se afastou desse entendimento [6].

O coroamento desse caminho evolutivo ocorreu, entre nós, com a Constituição de 1988, que, no art. 5º, incluiu entre os direitos e garantias individuais:

LVI – ninguém será privado da sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral serão assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”

Assim, as garantias constitucionais do processo desdobram-se hoje em três planos: a) no plano jurisdicional, em que elas passam a ser expressamente reconhecidas, diretamente como tais, para o processo penal e para o não penal; b) no plano das acusações em geral, em que a garantia explicitamente abrange todas as pessoas objeto de acusação; e c) no processo administrativo sempre que haja litigantes. E por litigantes deve-se entender titulares de interesses em conflito. É o que já vinha afirmando em estudos anteriores [7].

É esta a grande inovação da Constituição de 1988. Com efeito, as garantias que eram extraídas pela doutrina e pela jurisprudência dos textos anteriores, para os acusados em processo administrativo, foram explicitadas pela Lei Maior, que também inovou ao assegurá-las ao processo administrativo em que haja “litigantes“. E isso não é casual nem aleatório, mas obedece à profunda transformação que a Constituição operou no tocante à função da Administração Pública.

Acolhendo as tendências contemporâneas do direito administrativo, tanto em sua finalidade de limitação ao poder e garantia dos direitos individuais perante o poder como na assimilação da nova realidade do relacionamento Estado-sociedade e de abertura para o cenário sociopolítico-econômico em que se situa, a Constituição de 1988 trata de parte considerável da atividade administrativa, no pressuposto de que o caráter democrático do Estado deve influir na configuração da Administração, pois os princípios da democracia não podem se limitar a reger as funções legislativa e jurisdicional, mas devem também informar a função administrativa [8].

Nessa linha, dá-se grande ênfase, no direito administrativo contemporâneo, à nova concepção da processualidade no âmbito da função administrativa, seja para transpor para a atuação administrativa os princípios do “devido processo legal“, seja para fixar imposições mínimas quanto ao modo de atuar da administração [9].

Como bem acentua Odete Medauar, entre administrativistas e processualistas, registra-se tendência à aceitação de uma processualidade que vai além daquela vinculada à função jurisdicional, admitida, assim, a processualidade no âmbito da Administração. É que os escopos de garantia, de legitimação e controle do poder, de correto desempenho da função, de justiça e de democratização estão presentes tanto no processo jurisdicional quanto no administrativo, pois num e noutro regula-se o exercício do poder estatal [10].

2 O Contraditório no Processo Administrativo                        

As garantias da defesa e do contraditório estão à base da regularidade do processo e da justiça das decisões. Como disse Antonio Magalhães Gomes Filho, “é justamente o antagonismo entre as falas dos interessados no provimento final (contra dicere) que garante a imparcialidade do juiz, característica inseparável do exercício da jurisdição; daí a universal inclusão do contraditório entre as garantias fundamentais do processo justo, chegando-se mesmo a afirmar que se trata de uma espécie de direito natural. Trata-se, portanto, de garantia fundamental de imparcialidade, legitimidade e correção da prestação estatal – judicial ou administrativa. Sem que um profundo diálogo se estabeleça no processo, antecedendo ao pronunciamento estatal, a decisão corre o risco de ser unilateral, ilegítima e injusta; poderá ser um ato de autoridade, jamais de verdadeira justiça“.

Tudo isso afigura-se válido tanto para o processo no âmbito jurisdicional quanto na seara administrativa. Na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, vigora perante a Administração o chamado princípio “da ampla instrução probatória, o qual significa, como muitas vezes observam os autores, não apenas o direito de oferecer e produzir provas, mas também o de, muitas vezes, fiscalizar a produção de provas da Administração, isto é, o de estar presente, se necessário, a fim de verificar se efetivamente se efetuaram com correção ou adequação técnica devidas[11].

Mais recentemente, Odete Medauar observou que, no âmbito administrativo, vigora o direito à “informação geral“, isto é, “direito de obter conhecimento adequado dos fatos que estão na base da formação do processo, e de todos os demais fatos, dados, documentos e provas que vierem à luz no curso do processo. Daí resultam as exigências impostas à Administração no tocante à comunicação aos sujeitos de elementos do processo em todos os seus momentos. Como é evidente, a comunicação deve abranger todos os integrantes da relação processual administrativa. Vincula-se, igualmente à informação ampla, o direito de acesso a documentos que a Administração detém ou a documentos juntados por sujeitos contrapostos. E a vedação ao uso de elementos que não constam do expediente formal, porque deles não tiveram ciência prévia os sujeitos, tornando-se impossível eventual reação a tais elementos[12] (grifei).

Segundo referida jurista, “sob o ângulo técnico, evidencia-se a finalidade instrutória de busca da verdade, de conhecimento mais preciso dos fatos, de coleta de informações para a decisão correta. O confronto entre a autoridade administrativa e as partes envolvidas no processo contribui para fornecer ao órgão chamado a decidir um panorama completo da situação de fato, de direito e dos interesses envolvidos, de modo que a decisão poderá ser mais ponderada e mais aderente à realidade[13].

3 O Novo Sentido do Contraditório em Relação às Partes         

Da visão do contraditório como simples meio de oportunizar o direito de defesa – contraditório como ciência dos atos e possibilidade de contrariá-los – passou-se à visão de necessidade de um contraditório efetivo e real, não só para garantia das partes, mas sobretudo como garantia do justo processo. Daí a necessidade de um contraditório reforçado.

A esse propósito, já tive a oportunidade de escrever: assim como o contraditório representa o momento da verificação concreta e da síntese dos valores expressos pelo sistema de garantias constitucionais, o modelo processual informado nos princípios inspiradores da Constituição não pode abrir mão de um procedimento probatório que se desenvolva no pleno respeito do contraditório [14].

Ainda afirmei que “a exigência do contraditório, na formação e produção das provas, vem desdobrada, na experiência jurisprudencial e na lição doutrinária de diferentes países, em diversos aspectos, assim resumidos por Giuseppe Tarzia: a) a proibição de utilização de fatos que não tenham sido previamente introduzidos pelo juiz no processo e submetidos a debate pelas partes; b) a proibição de utilizar provas formadas fora do processo ou de qualquer modo colhidas na ausência das partes; c) a obrigação do juiz, que disponha de poderes de ofício para a admissão de um meio de prova, de permitir às partes, antes da sua produção, apresentar os meios de prova que pareçam necessários em relação aos primeiros; e d) a obrigação de permitir a participação dos interessados na produção das provas[15] (grifei) [16].

Frise-se: interessados e não apenas as partes. Este último ponto será enfrentado nos itens seguintes deste trabalho.

4 Contraditório e Participação

Mas hoje a relevância do contraditório não se limita a colher as partes. Em determinadas circunstâncias, terceiros são admitidos no processo para alimentar e reforçar o contraditório. Essa tendência insere-se na visão da participação democrática no exercício do poder. O modelo político instaurado no Brasil é o da democracia participativa [17].

O princípio participativo é ínsito em qualquer processo que tem nele seu escopo político [18]. Mas, enquanto no processo civil individual até pouco tempo atrás a participação se resolvia na garantia constitucional do contraditório entre as partes e o juiz (participação no processo), hoje a participação se faz cada vez mais pelo processo. A participação pelo processo contava com exemplo clássico no processo penal brasileiro, pela instituição do Tribunal do Júri. Para os demais processos, sustentava-se enquadrar-se também no momento participativo o exercício da função jurisdicional por advogados e membros do MP, por força do quinto constitucional; e, ainda, na atividade de conciliadores, como nos Juizados Especiais e, mais recentemente, nos meios consensuais de solução de conflitos (conciliação/mediação).

O princípio da participação está estreitamente ligado à democratização da sociedade, conforme ensina Gomes Canotilho: “Democratizar a democracia através da participação significa, em termos gerais, intensificar a otimização da participação direta e ativa da sociedade nos processos de decisão[19]. O princípio democrático envolve a democracia participativa e, portanto, a existência de formas efetivas de a sociedade participar nos processos de decisão, de exercer controle crítico na divergência de opiniões.

E hoje um novo protagonista do processo brasileiro teve ampliada sua participação: o amicus curiae.

5 O Amicus Curiae           

Consoante afirmação de Elisabetta Silvestri, a origem do amicus curiae estaria no direito penal inglês da época medieval. Da Inglaterra, o instituto, então, teria se espraiado para outros países, adaptando-se aos diversos contextos jurídico-nacionais, conservando ou modificando seus moldes primitivos. No entanto, a mesma autora afirma haver tese sobre as mais remotas origens do amicus curiae no direito romano, cuja função era a de um colaborador neutro, cooperando com os magistrados naqueles casos que iam além das diretrizes puramente jurídicas e atuando para que os juízes não cometessem equívocos nos julgamentos. Possuíam o dever único de lealdade aos juízes. Assim, o amicus curiae teria derivado do consiliarius romano e, posteriormente, teria sido incorporado pelo direito inglês, com as respectivas e necessárias moldações. No que tange ao embrião do instituto no antigo sistema inglês, consta que os Tribunais detinham ampla liberdade para admitir a participação do “amigo da Corte“, bem como para determinar os limites de sua atuação [20].

A partir dessas referências iniciais no direito inglês, o amicus curiae passou a integrar, com considerável desenvolvimento, o direito norte-americano. Foi, portanto, nos Estados Unidos que a figura jurídica alcançou maior proeminência, sobretudo na Suprema Corte Americana, que, atualmente, regula o instituto na Rule 37 de seu Regimento Interno. Além desta, a Rule 29 das Federal Rules of Appellate Procedure (FRAP) também dispõe sobre o regramento friend of the court na Corte de Apelação norte-americana.

A figura do amicus curiae atende a alguns princípios como o contraditório, a soberania popular, a participação, o acesso ao direito e aos Tribunais e o princípio democrático. O amicus insere-se como agente do “contraditório presumido ou institucionalizado“, de acordo com Cassio Scarpinella Bueno [21], em decorrência do interesse institucional que representa. O “contraditório” que se observa é no sentido da cooperação e da coordenação que proporciona aos julgadores, contextualizado numa sociedade e num Estado plural. O amicus evidencia a maior amplitude do princípio do contraditório e repousa na necessidade da legitimação social para a construção da democracia.

6 O Amicus Curiae no Ordenamento Brasileiro      

Há autores que enquadram o amicus curiae como “terceiro especial“, como “terceiro qualificado“, outros como “auxiliar informal da Corte“, “modalidade de terceiro interveniente“, “assistente sui generis“. Não deixam de ser visões parecidas do instituto, na empreitada de chegar-se a uma descrição mais adequada possível. A dificuldade de delinear seu caráter decorre de suas peculiaridades.

A doutrina aponta que, no Brasil, a disciplina legal do ingresso formal do “amigo da cúria” foi inicialmente concretizada, no art. 31 da Lei nº 6.385/76, que requisita a intervenção da Comissão de Valores Imobiliários (CMV) nos processos cuja matéria seja objeto da competência dessa autarquia. Mas é preciso observar que a intervenção da CVM prevista na referida Lei não configura propriamente manifestação de amicus curiae, porquanto a participação da CVM no processo é mais um requisito do que simples consulta sobre o tema. Sem embargo, diplomas legislativos posteriores também trouxeram previsão do e de outras intervenções diferenciadas (que não exatamente o “instituto curial“), a saber: a) o art. 89 da Lei Federal nº 8.884/94 (Lei Antitruste) impõe a intimação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) nas causas relacionadas ao direito de concorrência; b) o art. 49 da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da OAB) permite aos Presidentes dos Conselhos e Subseções agir legitimamente contra eventuais infratores dos dispositivos e fins da Lei; c) o art. 5º da Lei nº 9.494/97 admite a intervenção das pessoas administrativas federais para a tutela de interesse econômico; d) o art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99, que regula a ADI e a ADC no processo de controle de constitucionalidade, possibilita a manifestação de outros órgãos e entidades a critério do relator; e) o art. 14, § 7º, da Lei nº 10.259/01 (Lei dos Juizados Especiais Federais), no que concerne ao incidente de uniformização de jurisprudência, aceita que eventuais interessados opinem no processo; e f) o art. 3º, § 2º, da Lei nº 11.417/06, que trata da edição, revisão e cancelamento das súmulas vinculantes do STF.

Conforme visto, muito já se discutiu acerca do amicus curiae e de sua intervenção. O CPC trata de seu ingresso no processo como intervenção de terceiro (art. 138), e isto se justifica em razão do perfil que o amicus curiae assumiu, ao longo do tempo, no direito brasileiro.

Assim institucionalizada a figura do amicus curiae, podemos conceituá-lo como um terceiro que ingressa no processo para fornecer subsídios ao órgão jurisdicional para o julgamento da causa. Pode tratar-se de pessoa natural ou jurídica, e até mesmo órgão ou entidade sem personalidade jurídica. Exige a lei, para que se possa intervir como amicus curiae, que esteja presente a representatividade adequada, isto é, deve o amicus ser alguém capaz de representar, de forma adequada, o interesse que busca ver protegido no processo. E releva notar que a intervenção do amicus curiae depende, ainda, de “a relevância da matéria, a especificidade do objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia” (art. 138, caput, do CPC).

Registre-se, aqui, um ponto relevante: o amicus curiae não é um “terceiro imparcial“, como é o MP que intervém como fiscal da ordem jurídica. O amicus é um sujeito parcial, que tem por objetivo ver um interesse (que sustenta) tutelado. Dito de outro modo, ao amicus curiae interessa que uma das partes saia vencedora na causa, e fornecerá ao órgão jurisdicional elementos que evidentemente se destinam a ver essa parte obter resultado favorável. O que o distingue do assistente (que também intervém por ter interesse em que uma das partes obtenha sentença favorável) é a natureza do interesse que legitima a intervenção.

O assistente é titular da própria relação jurídica deduzida no processo ou de uma relação jurídica a ela vinculada. O amicus curiae não é sujeito de qualquer dessas relações jurídicas (e, por isso, não pode ser assistente). O que legitima a intervenção do amicus é um interesse que se pode qualificar como institucional. Há pessoas e entidades que defendem institucionalmente certos interesses. É o caso, por exemplo, da OAB (que defende os interesses institucionais da advocacia), da Associação dos Magistrados Brasileiros (que defende os interesses institucionais da Magistratura), das Igrejas, de entidades científicas (como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, SBPC, que defende os avanços científico e tecnológico e o desenvolvimento social e cultural) ou o Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP, que tem entre suas finalidades promover o aprimoramento do direito processual em todo o país. Pode-se pensar ainda em cientistas, professores, pesquisadores, sacerdotes, entre outras pessoas naturais que se dedicam à defesa de certos interesses institucionais. Pois pessoas assim – que não estariam legitimadas a intervir como assistentes – têm muito a contribuir para o debate que se trava no processo. Devem, então, ser admitidos como amici curiae.

Nesses casos é de todo recomendável admitir-se a intervenção. Pode-se recordar o conhecido caso da ação direta de inconstitucionalidade em que se discutiu, no STF, a constitucionalidade da realização de pesquisas científicas com o emprego de células-tronco embrionárias (ADI 3.510). Pois nesse processo foram admitidos como amici curiae, dentre outros, a CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, o ANIS – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero e o MOVITAE – Movimento em Prol da Vida. O Instituto Brasileiro de Direito Processual foi chamado por diversas vezes a se manifestar sobre temas processuais.

Trata-se de uma intervenção que pode ser voluntária ou forçada: aquele que pretenda manifestar-se como amicus curiae pode requerer seu ingresso no processo ou seu ingresso pode se dar por requerimento das partes, podendo também ser determinada de ofício pelo juiz ou relator (art. 138 do CPC).

A intervenção do amicus curiae não implica alteração de competência nem autoriza a interposição de recursos (ressalvados os embargos de declaração e o recurso contra a decisão que julga o incidente de resolução de demandas repetitivas, nos termos do art. 138, §§ 1º e 3º, do CPC).

Incumbe ao juiz ou relator, na decisão que admitir ou determinar a intervenção do amicus curiae, definir quais serão seus poderes processuais. Cabe ao magistrado, então, a decisão acerca da possibilidade de ele ir além da mera apresentação de uma petição com os elementos que possa oferecer ao juízo (que, na tradição do direito norte-americano, se chama amicus curiae brief). É possível, por exemplo, o magistrado estabelecer que o amicus curiae poderá juntar documentos, elaborar quesitos para serem respondidos por peritos, fazer sustentação oral perante o Tribunal, participar de audiências públicas, etc.

Veem-se, então, duas grandes diferenças entre a atuação do assistente e a do amicus curiae: enquanto o assistente pode recorrer de todas as decisões judiciais, o amicus curiae tem severas limitações recursais. Além disso, o assistente tem os mesmos poderes processuais que o assistido, enquanto o amicus só tem os poderes que a decisão que admite sua intervenção lhe outorgar.

Não se pode deixar de destacar a relevância da intervenção do amicus curiae para a ampliação do contraditório, o que é especialmente relevante naqueles processos em que são apreciadas demandas massificadas, repetitivas, ou em qualquer outro caso de que possa provir uma decisão que tenha eficácia de precedente vinculante. Pois é exatamente por isso que o próprio CPC prevê a atuação de amici curiae no incidente de arguição de inconstitucionalidade (art. 947 do NCPC), no incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 980 do NCPC) e nos recursos especiais e extraordinários repetitivos (art. 1.035, § 2º, do NCPC). É que em todos esses casos a decisão a ser proferida terá eficácia vinculante, o que exige – como requisito da legitimação constitucional de tais decisões e de sua eficácia – um contraditório ampliado, fruto da possível participação de todos os setores da sociedade e do Estado que podem vir a ser alcançados. Pois o instrumento capaz de viabilizar essa ampliação do contraditório é, precisamente, o amicus curiae.

Conclui-se, assim, que a intervenção do amicus é mais um dentre os diversos instrumentos regulados pelo Novo CPC para a democratização do processo judicial. É preciso que o processo seja conduzido de forma cooperativa e participativa, para que se construa, em conjunto, o resultado final do processo, o qual deve ser capaz de atuar o ordenamento jurídico, revelando-se, assim, um mecanismo de realização e preservação dos direitos assegurados pela Constituição da República.

7 O Amicus Curiae no Processo Administrativo    

Ficam assim delineadas as vantagens da intervenção do amicus curiae no processo, em termos de reforço do contraditório, respeito à soberania popular e princípio participativo; o “contraditório” que ele proporciona é no sentido da cooperação com os julgadores, na busca de uma decisão mais justa e mais coerente com a realidade social. O instituto repousa, ainda, na necessidade da legitimação social dos julgamentos.

Tudo isto aplica-se evidentemente ao processo administrativo que, como visto acima, é permeado hoje por uma relevante processualidade. Nada impede, e até recomenda, a admissão da intervenção do amicus curiae no processo administrativo, aplicando as regras contidas no art. 138 e parágrafos do CPC. Milita a favor da transposição do artigo do Código não só a regra expressa de sua aplicação subsidiária, mas também o princípio do diálogo das fontes, segundo o qual deve ser sempre possível a adoção de uma regra oriunda de outra disciplina jurídica, desde que compatível com as regras próprias de outro sistema.

Também a analogia pode ser aplicada no caso da intervenção do amicus no processo administrativo, que apresenta frequentemente os requisitos indicados pelo CPC para sua aplicação: “A relevância da matéria, a especificidade do objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia“.

O processo administrativo pode perfeitamente preencher esses requisitos. Basta pensar, por exemplo, nas súmulas administrativas do Conselho Nacional de Incentivo à Cultura, nas súmulas da Advocacia Geral da União, no efeito vinculante previsto pela Lei nº 13.457/09-SP em relação às súmulas do TIT, na jurisprudência do Senacon – Sistema Nacional de Defesa do Consumidor em relação a empresas fabricantes nos atos anticoncorrenciais julgados pelo CADE. Isso tudo engloba matérias extremamente relevantes, de objeto específico e nas quais fica clara a repercussão social da controvérsia.

Bem-vindo o amicus curiae no processo administrativo. E que os juízos e Tribunais o acolham de braços abertos.

[1] Sobre a evolução da cláusula do due process of law, nos Estados Unidos, do processo penal ao processo civil, ver: GRINOVER, Ada Pellegrini. As garantias constitucionais do direito de ação. São Paulo: RT, 1973. p. 39-42

[2] Quanto à evolução da cláusula, do processo jurisdicional ao processo administrativo, no direito comparado, ver: FERREIRA, Sérgio de Andréa. A garantia da ampla defesa no direito administrativo processual disciplinar. Revista de Direito Público, v. 19, p. 60-61, 1972.

[3] Cf. FERREIRA, Sérgio de Andréa. Op. cit., p. 62.

[4] Cf. PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição de 1967, v. V, p. 222-223.

[5] Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. As garantias…, cit., p. 133-137 e 153-158.

[6] Cf. FERREIRA, Sérgio de Andréa. Op. cit., p. 63.

[7] Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. Garantias do contraditório e da ampla defesa. Jornal do Advogado, São Paulo, OAB, p. 175-179, nov. 1990; Idem. Do direito de defesa em inquérito administrativo. In: O processo em evolução. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996. p. 81-82.

[8] Ver, entre os administrativistas mais sensíveis a essa nova tendência do direito administrativo: ALLEGRETTI, Umberto. Pubblica amministrazione e ordinamento democrático. Il foro italiano, p. 3-4, jul./ago. 1984; MARTIN, Sebastian; BAQUER, Retortielo. Administración y constitución. Madrid: Leal, 1981. p. 23.

[9] Ver especialmente: BENVENUTI, Feliciano. Funzione amministrativa, procedimento, processo. Rivista Trimmestrale di Diritto Pubblico, v. I, p. 118-145, 1952; entre nós: MEDAUAR, Odete. A processualidade no direito administrativo. São Paulo: RT, 1993.

[10] Cf. MEDAUAR, Odete. Op. cit., p. 159, e ainda nº 30, p. 61 e ss.

[11] Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 283.

[12] Cf. MEDAUAR, Odete. Op. cit., p. 104.

[13] Cf. MEDAUAR, Odete. Processualidade no direito administrativo. São Paulo: RT, 1993. p. 103.

[14] Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em evolução. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996. p. 54.

[15] Veja-se nosso: Novas tendências do direito processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. p. 21-22, com indicação das fontes doutrinárias citadas.

[16] Cf. Novas tendências do direito processual, op. cit., p. 24.

[17] Sobre as diversas modalidades de participação no processo e pelo processo na democracia participativa, ver o volume: GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Coord.). Participação e processo. São Paulo: RT, 1988.

[18] GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Coord.). Participação e processo. São Paulo: RT, 1988. p. 114-127.

[19] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2002. p. 292.

[20] SILVESTRI, Elisabetta. L’amicus curiae: uno strumento per la tutela degli interessi non rappresentati, p. 679-680 apud BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 87-88.

[21] BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 2. p. 530.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *