NOVO CPC DEIXA CLARO QUE JUIZ TEM DEVER DE COOPERAR COM AS PARTES
Fernando Augusto Chacha de Rezende
Os novos rumos do processualismo moderno, inclusive, de forma intrínseca na nova legislação adjetiva civil, calham no encontro extremamente positivo entre o processo e a Constituição. Conforme bem delineia Eduardo Cambi, a Constituição brasileira de 1988, ao contemplar amplos direitos e garantias fundamentais, tornou constitucionais os mais importantes fundamentos dos direitos materiais e processuais (fenômeno da constitucionalização do direito infraconstitucional). Deste modo, alterou-se, radicalmente, o modo de construção (exegese) da norma jurídica. Antes da constitucionalização do direito privado, como a Constituição não passava de uma Carta Política, destituída de força normativa, a lei e os códigos se colocavam no centro do sistema jurídico.[1]
Assim, sendo a Constituição Federal o centro gravitacional do sistema jurídico, conceitos antes em voga acabaram por ceder espaço aos preceitos da Carta Magna. O processualismo moderno, importando conceitos europeus, aprimorou tal retrógrado sistema culminando na atualidade com o neoprocessualismo.
Este, em síntese, almeja-se uma ordem jurídica justa pautada na instrumentalidade do processo[2], bem como de sua construção mediante técnicas processuais adequadas à consecução dos direitos materiais.
Destarte, no sistema pátrio nacional, o jurisdicionado tem direito a uma ordem jurídica justa que abrange não só o contraditório sob a ótima formal, mas também substancial[3]: o devido processo legal substancial e a participação dialética na formação do convencimento do juiz que irá julgar a causa sob o édito constitucional explicitado no inciso LIV[4] do art. 5º da Constituição Federal.
A propósito, neste vagar bem decidiu o egrégio Tribunal de Justiça de Goiás, a saber:
Apelação cível. Ação anulatória. Especificação de provas não oportunizada. Cerceamento de defesa. 1. O constitucional princípio do acesso à justiça é muito mais do que formulações do tipo “acesso ao Poder Judiciário“, mas sim acesso a uma ordem jurídica justa, que é a garantia de efetiva e adequada participação no processo, com possibilidade de levar ao julgador todas as provas de que dispuser, relevantes e pertinentes, para ter um julgamento justo […]. (TJGO, AC 303847-35.2012.8.09.0051, 3ª C.Cív., Rel. Des. Walter Carlos Lemes, J. 02.07.2013, DJe 1340, de 10.07.2013)
Nesse prisma, pode-se exarar perfeitamente que o processo deve refletir, e com esforço das partes, o que se denomina cooperação intersubjetiva, pautada na boa-fé e até mesmo com o auxílio do juiz, sem que macule o princípio da demanda ou a imparcialidade do juiz (sendo este último pressuposto processual subjetivo).
Demais disso, os ventos da legislação inovadora apontam não mais para o isolamento/protagonismo processual, e sim, lado outro, para a comparticipação/policentrismo processual. Tal preceito está esculpido no art. 6º do novel Código de Processo Civil: “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva“[5].
Mencionada cooperação é vislumbrada sob a égide da comunidade de trabalho, nos moldes do Direito alemão[6].
Conforme bem elucida Lúcio de Grassi de Gouvêa, o princípio da cooperação equivale ao direito de perguntar ao juiz (Fragerecht) que corresponde a um dever de esclarecer (Frege und Aufklärungspflicht). O Direito alemão admite, inclusive, a utilização do recurso, nos casos em que fosse aconselhável o esclarecimento das posições, de fato e de direito, das partes e a introdução de eventuais perceptivas jurisdicionais divergentes[7].
Logo, para que o processo de fato mereça o qualificativo de democrático/justo e se torne real o clima de colaboração entre juiz e as partes, a nova lei impõe uma conduta leal e de boa-fé, não só dos litigantes, mas também do Magistrado, a quem atribuíram os deveres de esclarecimentos, de diálogo, de prevenção de auxílio para com os sujeitos interessados na correta composição do conflito de conflito, criando-se um novo ambiente normativo contrafático de indução à comparticipação (em decorrência dos comportamentos não cooperativos)[8].
Convém destacar que, com a democracia social, intensificou-se a participação do Estado na sociedade e, por consequência, a atuação do juiz no processo, que não deve mais estar apenas preocupado com o cumprimento das “regras do jogo“, cabendo-lhe agora zelar por um processo justo, capaz de permitir: (i) adequada verificação dos fatos e participação das partes em um contraditório efetivo, (ii) a justa aplicação das normas de direito material e (iii) a efetividade da tutela dos direitos, já que a inércia do juiz, ou abandono do processo à sorte que as partes lhe derem, tornou-se incompatível com a evolução do Estado e do Direito[9].
Nesse toar, e já exemplificando, o dever de esclarecimento é sintetizado na ação de contribuir para mitigação das desigualdades substanciais entre as partes, tem-se cogitado conferir ao juiz a faculdade de prestar-lhe informações sobre os ônus que lhes incumbe convidando-as, por exemplo, a esclarecer e complementar suas declarações acerca dos fatos, ou chamando-lhes a atenção para a necessidade de comprovar alegações.[10]–[11]
No mesmo rumo, o dever de auxílio, nos termos explicitados por Fredie Didier Jr., consiste na hipótese “do dever de auxiliar as partes na superação das eventuais dificuldades que impeçam o exercício de direitos ou faculdades ou o cumprimento de ônus ou deveres processuais“[12].
Justamente nesses parâmetros, o indeferimento da inicial, se descumpridos preceitos legais, não é mais tarefa imediata ou primeira, e sim somente após de cumpridos os deveres de auxílio/cooperação/esclarecimento pelo Magistrado, visando sempre ao resultado útil processual e à sentença definitiva (e não a terminativa de outrora), nos moldes explicitados no novo art. 319, § 1º: “Caso não disponha das informações previstas no inciso II, poderá o autor, na petição inicial, requerer ao juiz diligências necessárias a sua obtenção”. De acordo com o § 2º, “a petição inicial não será indeferida se, a despeito da falta de informações a que se refere o inciso II, for possível a citação do réu […]“.
Logo, repisando, a petição inicial não será indeferida pelo não atendimento ao disposto no inciso II deste artigo se a obtenção de tais informações tornar impossível ou excessivamente oneroso o acesso à justiça.
O novo Código de Processo Civil, conforme denota Tereza Arruda Alvim Wambier, “trata-se de evidente manifestação do princípio da cooperação. Do mesmo modo, suaviza a exigência do inciso II, § 2º, que indica não dever o juiz indeferir a inicial se, apesar de faltar algum dos dados, for possível a citação do réu”[13].
Além da hipótese ventilada, na fase saneadora do feito o mencionado princípio também tem sua incidência ampliada, conforme os §§ 1º e 3º do art. 357[14]. Tal preceito vem recebendo da doutrina a denominação de saneador compartilhado[15].
Destarte, o dever de consulta, igualmente oriundo da vertente neoprocessualista, tem como objetivo evitar decisões surpresas[16], ou seja, não consubstanciadas pela marcha processual eleita nas manifestações do julgador.
Tais vertentes estão intimamente interligadas com os arts. 9º[17] e 10[18] do novo Código Adjetivo e, por seu turno, com o princípio do contraditório em seu viés substancial.
Sublinha-se, nesse ponto, que “o contraditório constitui uma verdadeira garantia da não surpresa que impõe ao juiz o dever de provocar o debate acerca de todas as questões, inclusive de conhecimento oficioso, impedindo que aplique normas ou embase a decisão sobre fatos completamente estranhos à dialética defensiva de uma ou de ambas a partes“[19].
Esses e outros deveres restaram, com proficuidade, arrematados em voto do Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal:
Não é outra a avaliação do tema no direito constitucional comparado. Apreciando o chamado “Anspruch auf rechtliches Gehör” (pretensão à tutela jurídica) no Direito alemão, assinala o Bundesverfassungsgericht que essa pretensão envolve não só o direito de manifestação e o direito de informação sobre o objeto do processo, mas também o direito de ver os seus argumentos contemplados pelo órgão incumbido de julgar. Daí se afirmar, correntemente, que a pretensão à tutela jurídica, que corresponde exatamente à garantia consagrada no art. 5º, LV, da Constituição, contém os seguintes direitos: 1) direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar à parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes; 2) direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defendente a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo; […]. (MS 24268, Tribunal Pleno, Relª Min. Ellen Gracie, Rel. p/o Ac. Min. Gilmar Mendes, J. 05.02.2004, DJ 17.09.2004, p. 00053, Ement. v. 02164-01, p. 00154. RDDP n. 23, 2005, p. 133-151, RTJ v. 00191-03, p. 00922)
Desta feita, busca-se, a partir dos preceitos firmados anteriormente, a máxima eficácia da relação processual, visando seu resultado útil e, mormente, seu término com sentença definitiva (não terminativa, portanto), pacificando a relação contenciosa nos moldes preconizados pelo Estado Constitucional, mormente, pelos direitos fundamentais.
Tais vertentes devem ser guiadas pela reconstrução interpretativa e argumentação jurídica com técnicas efetivas e idôneas para tutelar, desta maneira, o direito material ou o bem da vida.
De mais a mais, encerram-se esses breves comentários com os dizeres de Luiz Guilherme Marinoni:
Encarar o processo civil como uma comunidade de trabalho regida pela ideia de colaboração, portanto, é reconhecer que o juiz tem o dever de cooperar com as partes, a fim de que o processo civil seja capaz de chegar efetivamente a uma decisão justa, fruto de efético “dever de engajamento” do juiz no processo. Longe de aniquilar a autonomia individual e autorresponsabilidade das partes, a colaboração apenas viabiliza que o juiz atue para a obtenção de uma decisão justa com a incrementação de seus poderes de condução no processo, responsabilizando-o igualmente pelos seus resultados. A colaboração não apaga obviamente o princípio da demanda e as suas consequências básica: o juízo de conveniência a respeito da propositura ou não da ação e a delimitação do mérito da causa continuar tarefas ligadas exclusivamente à conveniência das partes. O processo não é encarado nem como coisa exclusivamente das partes, nem como coisa exclusivamente do juiz – é uma coisa comum ao juiz e às partes (chose commune des parties et du juge).[20]
[1] CAMBI, Eduardo. Leituras complementares de processo civil. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, p. 155.
[2] Conforme nos ensina a festejada obra de Cândido Rangel Dinamarco, a instrumentalidade tem aspectos positivos e negativos. Sob esse viés pretende combater o formalismo, enquanto positivamente deve o processo ser apto a produzir escopos institucionais – são eles jurídicos-políticos-sociais.
[3] A dimensão formal garante às partes o direito de integrar a ação cujo objeto possa atingir-lhes em determinado direito. É a garantia de as partes serem ouvidas antes de uma decisão que lhes seja desfavorável. Já a dimensão substancial realiza-se no “poder de influência”, ou seja, não basta poder participar do processo (dimensão formal), mas é preciso que a participação seja apta a interferir no conteúdo da decisão. Assim, o contraditório é a participação com poder de influência.
[4] “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; […]”
[5] O princípio da cooperação é relativamente jovem no direito processual. Cooperar é agir de boa-fé. (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Primeiros comentários ao novo Código de Processo Civil. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 62)
[6] Oriundo da teoria austríaca e, posteriormente, a germânica. Arbeitsgemeinschft.
[7] CAMBI, Eduardo. Leituras complementares de processo civil. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, p. 175.
[8] MARINONI, Luiz Guilherme. O projeto do CPC: críticas e propostas. São Paulo: RT, 2010. p. 48.
[9] Op. cit., p. 449.
[10] O dever de esclarecimento possui claramente um duplo sentido vetorial: de um lado, permite ao Magistrado esclarecer fatos e situações jurídicas, dentro da premissa do máximo aproveitamento e da primazia do mérito; de outro, viabiliza às partes a potencialidade de obter do Magistrado decisões que sejam fruto do debate em contraditório, desprovidas de dúvida e obscuridades. (THEODORO JÚNIOR, Humberto et al. Novo Código de Processo Civil – Fundamentos e sistematização. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 77).
[11] MOREIRA BARBOSA, José Carlos. Temas de direito processual. 4ª série. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 70.
[12] DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação processual civil português. Coimbra: Coimbra Editora, 2010.
[13] Op. cit., p. 547.
[14] “Art. 357. Não ocorrendo nenhuma das hipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, em decisão de saneamento e de organização do processo: […] § 1º Realizado o saneamento, as partes têm o direito de pedir esclarecimentos ou solicitar ajustes, no prazo comum de 5 (cinco) dias, findo o qual a decisão se torna estável. […] § 3º Se a causa apresentar complexidade em matéria de fato ou de direito, deverá o juiz designar audiência para que o saneamento seja feito em cooperação com as partes, oportunidade em que o juiz, se for o caso, convidará as partes a integrar ou esclarecer suas alegações. […]”
[15] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 102.
[16] Tais preceitos, a exemplo, já eram proibidos na legislação austríaca (Zivilverfahrens-Novelle, 2002) em seu § 182, a.
[17] “Art. 9º Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida. Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica: I – à tutela provisória de urgência; II – às hipóteses de tutela da evidência previstas no art. 311, incisos II e III; III – à decisão prevista no art. 701.”
[18] “Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.”
[19] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 100.
[20] MARINONI, Luiz Guilherme. Novo curso de processo civil. Rio de Janeiro: RT, 2015. p. 74-75.