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NOTAS DISTINTIVAS ENTRE GARANTIAS PESSOAIS E SOLIDARIEDADE PASSIVA

NOTAS DISTINTIVAS ENTRE GARANTIAS PESSOAIS E SOLIDARIEDADE PASSIVA

Felipe Bizinoto Soares de Pádua

 

INTRODUÇÃO

Na Filosofia, Immanuel Kant e René Descartes; no Direito, Antônio Junqueira de Azevedo e F. C. Pontes de Miranda; na Biologia, Charles Darwin[1]… todos e muitos outros pensadores (e pensadoras) demonstram que o desenvolvimento das bases cognitivas parte de alto grau de sofisticação e de alto grau de rigorismo. João Alberto Schützer Del Nero[2] expõe que a aplicação jurídica pressupõe uma atividade dogmática de qualificação jurídica que exige do operador do Direito o conhecimento rigoroso das categorias jurídicas.

É com essa perspectiva do rigorismo científico que o Direito deve se desenvolver; evidentemente, não pode perder seu tato com a realidade social, em particular no que diz respeito à necessidade de tornar o fenômeno jurídico compreensível aos seus destinatários e beneficiários.

A exigência jurídica de severidade recai sobre o direito civil, a matéria de maior nobreza na jurisprudência (em sua acepção romano-germânica), cabendo destacar o plano obrigacional no que trata da relação entre três figuras distintas, mas que, como será exposto, liga-se adequada ou inadequadamente: a fiança, o aval e a solidariedade passiva.

Duas exposições introdutórias são fundamentais aqui. A primeira é de caráter conceitual, que serve para identificar a noção básica de cada categoria obrigacional mencionada. Iniciando pela fiança, ela consiste no contrato por meio do qual uma pessoa, o fiador, garante, total ou parcialmente, com seu setor patrimonial a dívida de outrem, o devedor, em caso de inadimplemento em prol do credor, o afiançado[3]. Segundo F. C. Pontes de Miranda[4], o fiador promete ao credor afiançado determinado conduta humana, o adimplemento do contrato ou de outra fonte obrigacional que irradiou, irradia ou irradiará a dívida de outrem.

Apesar da imprecisão técnica em mesclar dívida com obrigação, o CCB/2002 traz uma definição da fiança: “Pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação [rectius, dívida] assumida pelo devedor, caso este não a cumpra’’ (art. 818)”. O CCP também definiu a fiança, todavia a partir de uma visão dos sujeitos: “O fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor’’ (art. 627º)”.

A fiança tem as seguintes características[5]: (i) é um negócio contratual bilateral, um contrato, pois se volta a disciplinares posições jurídicas patrimoniais;

(ii) é gratuita, pois traz vantagens apenas a uma das partes, o afiançado; (iii) quanto às vantagens, é unilateral, porque não há deveres imputáveis ao credor nem ao devedor principal; (iv) é acessória, vez que sua existência está atrelada a outra relação jurídica obrigacional, a chamada relação principal; (v) sua forma é escrita, no instrumento que consta a relação principal ou em ato autônomo; (vi) é personalíssima ou intuitu personae.

Especificamente no regime dos títulos de créditos que aparece o aval, negócio jurídico unilateral por meio do qual um sujeito estranho à relação cartular assume o dever de garantir, total ou parcialmente, o cumprimento do título de crédito[6]

De acordo com F. C. Pontes de Miranda[7]  e Luiz Emygdio F. da Rosa Júnior[8] , o aval é caracterizado por: (i) ser um negócio jurídico unilateral com natureza jurídica alheia à contratual; (ii) ordinariamente ser gratuito, pois há vantagem atribuída apenas ao avalizado, que é o beneficiário pelo pagamento do crédito inscrito na cártula; (iii) ser unilateral, por não haver contraprestação por parte de quem se beneficia da garantia; (iv) ser abstrato e, portanto, sua existência é desatrelada da dívida principal; (v) sua forma ser escrita e ocorrer no corpo do título de crédito garantido ou em folha anexa (= um alongamento do título); (vi) é personalíssima ou intuitu personae.

O CCB/2002 também tratou do aval, que está topologicamente localizado em trecho legislativo relativo à disciplina geral dos títulos de créditos, o que mostra a pertinência com as relações cambiárias em geral, não apenas com um ou algumas espécies de cártulas creditícias. Enuncia o Codex Civil que “o pagamento de título de crédito, que contenha obrigação [rectius, dívida] de pagar soma determinada, pode ser garantido por aval’’ (art. 897).

Anteriormente à vigência do CCB/2002 havia a LUG, que servia como instrumento jurídico central no tema dos títulos de créditos, mas cuja amplitude era demasiada reduzida, porquanto tratava das letras de câmbio e das notas promissórias, o que poderia levar a uma compreensão de que o aval caberia apenas às espécies de títulos regidas. De acordo com a LUG, “o pagamento de uma letra pode ser no todo ou em parte garantido por aval. Esta garantia é dada por um terceiro ou mesmo por um signatário da letra’’ (art. 30).

Como denominador comum principal aval e fiança consistem em uma espécie de garantia, a garantia pessoal ou fidejussória, que se contrapõe às garantias reais: a primeira espécie determina que o setor patrimonial de certo sujeito de direitos responde pela dívida constante noutra relação jurídica, enquanto a segunda determina que certa coisa, móvel ou imóvel, constante no setor patrimonial de alguém servirá como elemento minimizador do risco que recai sobre o credor[9]

Algumas diferenças entre aval e fiança merecem ser destacadas[10]: a primeira diz respeito aos títulos de créditos, a segunda às relações civis em geral; a primeira é ato autônomo e a desconstituição da relação principal não lhe afeta, enquanto a segunda segue o destino da relação garantida; aval garante apenas dívidas líquidas, enquanto afiançar pode envolver dívidas líquidas e ilíquidas (estas só poderão ser exigidas quando liquidadas); avalizar é garantia feita perante pessoa indeterminada, quem porta o título ao tempo do vencimento do título de crédito, afiançar é promessa a pessoa determinada, o credor afiançado; o avalista é tratado tal qual o devedor principal e, por isso, não tem o benefício de ordem, benefício este que ordinariamente comporta ao fiador; o aval é puro e simples, enquanto a fiança pode conter condição, termo ou encargo.

A última categoria a ser referida na primeira exposição introdutória é a dívida solidária. De acordo com F. C. Pontes de Miranda[11], Paulo Lobo[12] e Orlando Gomes[13], solidariedade se dá quando há pluralidade de credores ou devedores na mesma relação, cada um com direito ou dever à dívida toda. O CCB/2002 define a solidariedade: “Há solidariedade, quando na mesma obrigação [= relação obrigacional] concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda’’ (art. 264).

Conhecido por ser um orientador léxico-jurídico, o Código Civil de Portugal também definiu a solidariedade:

A obrigação [rectius, dívida] é solidária, quando cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera, ou quando cada um dos credores tem a faculdade [rectius, pretensão] de exigir, por si só, a prestação integral e esta libera o devedor para com todos eles. (art. 512º) Ao contrário da fiança e do aval, que são negócios jurídicos, a solidariedade decorre ou da vontade das partes ou de específica previsão legal, o que mostra um feixe de origens em detrimento das outras das categorias negociais citadas. É o que consta no Código Civil brasileiro de 2002 (“Art. 263. A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes’’) e no Código Civil de Portugal (“Art. 513º: A solidariedade de devedores ou credores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes’’).

No que diz respeito à solidariedade oriunda da vontade das partes, importante destacarem a constatação de F. C. Pontes de Miranda[14] de que não se exige cláusula explícita: a lei não estatui que a solidariedade dependa de expressa previsão, o que resulta na possibilidade de se extrair o débito solidário de condutas concludentes (= manifestação de vontade) ou de categórica exteriorização de vontade (= declaração de vontade).

Igualmente, a solidariedade se desdobra em duas espécies, que podem constar isolada ou conjuntamente na relação jurídica obrigacional[15]: (i) a espécie ativa, que compreende uma pluralidade de credores em que cada um tem seu direito a toda a dívida; e (ii) a espécie passiva, que compreende uma pluralidade de devedores em que cada um tem seu débito a realizar a prestação integralmente.

Orlando Gomes[16] ensina que, nas dívidas solidárias, há duas relações, quais sejam, uma relação externa, travada entre credor ou credores e devedor ou devedores, e outra relação interna, que vislumbra como cada membro de um dos polos (= credores ou devedores) se relaciona.

Como última colocação acerca da solidariedade, nasce a seguinte dúvida: cada membro de um polo tem posição jurídica própria, ou o polo (= pluralidade de credores ou devedores) tem um crédito ou débito em comum?

Uma primeira teoria é a unitarista, que entende que há pluralidade de sujeitos que titularizam uma posição jurídica subjetiva[17]. Outra corrente é a pluralista, que entende que cada membro do polo da relação tem uma posição jurídica própria e que elas se enfeixam ou unificam em uma relação jurídica[18].

Em conformidade com o que leciona Paulo Lôbo[19], do que se depreende dos arts. 264, 265, 266 e 275 do CCB/2002, ao contrário do que pensa Orlando Gomes[20], permitem extrair a pluralidade de posições jurídicas ostentadas pelos membros de um mesmo polo da relação. Essa lógica se extrai do que consta como disciplina geral da solidariedade, no art. 266, que estabelece que “a obrigação [rectius, dívida] solidária pode ser pura e simples para um dos cocredores ou codevedores, e condicional, ou a prazo, ou pagável em lugar diferente, para o outro’’. Se cada integrante pode ter um tratamento diferenciado ao haver para Alguma inclusão de elemento particular (termo, condição ou encargo) e para outros, não, então fica clara a existência de um débito ou um crédito para cada componente do polo devedor ou do polo credor.

Na vigência de codificação civil anterior, F. C. Pontes de Miranda[21] deixava clara a absorção da tese pluralista das dívidas ao expor que irradiam em uma mesma relação jurídica obrigacional créditos e débitos para cada um dos integrantes do polo credor ou devedor.

Feitas as linhas gerais sobre a primeira exposição introdutória, cabe agora prenunciar o desenvolvimento do texto, que é a segunda exposição inaugural.

Em um primeiro momento, serão tratadas certas perspectivas tanto no âmbito judicial quanto doutrinário no que diz respeito à qualificação do fiador que renuncia ao benefício de ordem, ao avalista e ao devedor solidário (= solidariedade passiva), figuras que, segundo essas maiorias, são muito íntimas. O segundo momento se debruçará em criticar essa visão doutrinal e judicial, esclarecendo detalhes fundamentais de cada um dos regimes jurídicos e com resultados práticos distintos para cada categoria tratada.

 

1 PANORAMA DOUTRINÁRIO E JURISPRUDENCIAL SOBRE AVALISTA E FIADOR QUE RENUNCIA AO BENEFÍCIO DE ORDEM

Previamente ao tema, o CCB/2002 enuncia que é regra da fiança a existência do benefício de ordem, isto é, deve-se esgotar o patrimônio do devedor principal e constatar sua insuficiência para buscar no setor patrimonial do fiador a satisfação do interesse creditício: “O fiador demandado pelo pagamento da dívida tem direito a exigir, até a contestação da lide, que sejam primeiro executados os bens do devedor’’ (art. 827 do Código Civil brasileiro). É essa figura que será relacionada ao aval e à solidariedade passiva frente aos posicionamentos doutrinal e jurisprudencial.

No que diz respeito à relação entre fiador renunciante ao benefício de ordem e devedor principal, tal situação é, para Orlando Gomes[22], um caso em que o fiador se torna um devedor solidário, concorrendo com o devedor principal frente ao credor afiançado. Tal posicionamento decorre de previsão constante no CCB/2002, que determina que “não aproveita este benefício [de ordem] ao fiador: I – se ele o renunciou expressamente’’ (art. 828, I). Isso não pode ser confundido com o inciso II do art. 828, pois, a partir do momento em que o fiador aceita ser devedor solidário, o regime jurídico se desloca das disposições contratuais para um mais amplo, aquele constante nos arts. 264 e seguintes do Código Civil do Brasil[23].

A mesma ideia de solidariedade se aplica ao avalista, ainda mais diante da previsão do CCB/2002 de que “o avalista equipara-se àquele cujo nome indicar; na falta de indicação, ao emitente ou devedor final’’ (art. 899), bem como da LUG, que enuncia que “o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada’’ (art. 32).

Especificamente sobre o avalista, o Superior Tribunal de Justiça (AgR-AgRg-AREsp 683.915/MT) apreciou caso concreto no qual houve procedimento de busca e apreensão contra o avalista, após interpelado extrajudicialmente o devedor principal. Em sua conclusão, a Corte da Cidadania entendeu que não houve demonstração da divergência jurisprudencial, eis que o avalista é considerado tal qual o devedor principal, conforme constou na ementa a seguir:

Agravo regimental no agravo regimental no agravo em recurso especial.

Alienação fiduciária. Ação de busca e apreensão. Legitimidade passiva avalista. Devedor solidário. Acórdão em harmonia com a jurisprudência desta Corte.

Agravo improvido. 1. O Colegiado estadual concluiu pela legitimidade do ora agravante (avalista – devedor solidário) para figurar no polo passivo da ação de busca e apreensão, em perfeita harmonia com a jurisprudência desta Corte. Precedentes.

Agravo regimental improvido. (grifos nossos)

Ainda sobre o avalista, o TJRS (AC 70073245722) analisou caso de cobrança no qual o avalista sustentou sua ilegitimidade passiva mediante alegação de vício de consentimento na realização do negócio unilateral. Além de repelir a pretensão recursal deduzida pelo garantidor do título de crédito, o Tribunal gaúcho fez constar expressamente que o prestador do aval é devedor solidário:

Apelação cível. Ação de cobrança. Negócios jurídicos bancários. Ilegitimidade passiva. Avalista. Devedor solidário. O réu/avalista sustentou pela ilegitimidade passiva, alegando coação e vício de consentimento. Nesse sentido, passível de anulação dos termos contratados. Porém o réu/avalista não comprovou durante o deslinde do processo, ter ocorrido coação. O avalista responde solidariamente pelos débitos, uma vez tendo assinado a cédula de crédito, objeto da lide. Apelo desprovido. (grifos nossos)

Sobre a fiança, o TJMG (AC 1.0024.13.122441-2/001) apreciou questão na qual os garantidores pessoais renunciaram ao benefício de ordem, o que os tornou concorrentes, e não subsidiários, com os devedores principais da locação celebrada. No teor da ementa, ficou refletido o entendimento do colegiado de que os fiadores em comento são tratados como devedores solidários:

Apelação. Ação de cobrança. Contrato de aluguel. Parcelas inadimplidas.

Fiador. Devedor solidário. Obrigação. Legitimidade. Vigência do contrato. Procedência do pedido. Sentença mantida. Mantém-se a sentença que reconhece a legitimidade do fiador/devedor solidário para figurar no polo passivo de ação que tem por finalidade o recebimento dos valores devidos e não pagos, referentes a contrato de aluguel, se os valores cobrados se referem ao período de vigência do contrato e se a ação foi distribuída, do mesmo modo, ainda na vigência do instrumento. Recurso não provido. (grifos nossos)

Os casos tratados não diziam respeito à aplicação do art. 828, II, do CCB/2002, e sim trataram de delinear o quadro fáctico em relação tão somente à renúncia do benefício de ordem, por parte do fiador, ou da aplicação literal de disposição específica para o avalista.

O que se vê é uma tendência de tratar o avalista e o fiador renunciante do benefício de ordem como devedores solidários, aplicando este regime jurídico em detrimento daqueles, o que é um erro, eis que existem determinadas consequências das disciplinas negociais que se afastam da constante na solidariedade, o que será objeto do item a seguir.

 

2 DISTINÇÕES DOS REGIMES JURÍDICOS APLICÁVEIS

Apesar do tratamento de solidariedade passiva dispensada ao avalista e ao fiador renunciante ao benefício de ordem, tais regimes contemplam traços distintivos fundamentais e consequências contrastantes.

Como mencionado, uma primeira distinção é a localização topológica: (i) a fiança está no campo contratual; (ii) o aval consta na disciplina dos títulos de créditos; e (iii) a solidariedade passiva situa-se na parte mais ampla dos Direitos das Obrigações. A decorrência é que a terceira categoria tem mais abrangência do que as outras duas e pode ser aplicada aos campos dos contratos, da responsabilidade civil, dos títulos de créditos e dos atos unilaterais.

Em uma locação pode ser que os inquilinos sejam devedores solidários, o que viabiliza ao locatário a exigência dos aluguéis pendentes de um dos membros do polo passivo; o CDC, no seu art. 12, prevê como regra a responsabilidade objetiva e solidária daqueles que compõem a chamada cadeia de fornecimento em relação por fato do produto ou do serviço; uma promessa de recompensa que os promitentes se comprometem, solidariamente, a pagar a recompensa.

A segunda distinção é quanto à origem de cada categoria tratada: (i) as garantias fidejussórias decorrem da vontade, por meio de um negócio jurídico unilateral ou bilateral; e (ii) a solidariedade passiva advém ou da vontade das partes ou de previsão legal. Aqui importa destacar que o primeiro grupo decorre de exteriorização volitiva, enquanto o item (ii) mostra uma categoria jurídica que pode, inclusive, ir de encontro à vontade, o que fica claro em questões de responsabilidade civil: a título de custos, conviria a quem se imputa o dever derivado indenizatório não se exigir a totalidade da indenização, e sim uma parcela dela.

A terceira diferença diz respeito ao interesse ostentado pelos figurantes: (i) conforme Marcelo Fortes Barbosa Filho[24], Paulo Lôbo[25] e F. C. Pontes de Miranda[26], o avalista e o fiador têm um dever ou interesse jurídico subordinado próprio, a saber, o de prometer o adimplemento pelo devedor principal; (ii) a solidariedade passiva, apesar da tese da pluralidade, mostra que o devedor ostenta um dever mais amplo, cuja promessa seja de qualquer espécie. É dizer: as garantias pessoais mostram um paralelismo entre a posição jurídica passiva do devedor principal em realizar a prestação e a posição jurídica de terceiros de que o devedor principal cumpra o que deve, enquanto a solidariedade mostra um devedor cuja posição jurídica pode ser principal ou acessória, com um campo de promessas muito maiores do que as do fiador e do avalista.

Atrelado à diferença acima que se pode extrair outra forma de estremar, qual seja, a da função: (i) a fiança e o aval são dívidas de garantia, que são, de acordo com Fábio Konder Comparato[27], meios através dos quais são reduzidos ou até eliminados os riscos que recaem sobre o credor; (ii) já a solidariedade passiva é mais ampla e pode se amoldar como dívidas de meio, de resultado ou até de garantia[28].

Outro distintivo é o regime do regresso: (i) tanto o fiador quanto o avalista têm direito de regresso contra o devedor principal de acordo com a extensão do que adimplido. Por exemplo, o garantidor que pagou R$ 1.000,00 em razão da fiança prestada terá direito de regresso dessa mesma quantia contra o devedor principal; (ii) o devedor solidário que adimple para além da sua quota, ao contrário das garantias pessoais, tem direito de regresso contra os demais codevedores no limite do que extrapolado o dever próprio e das quotas de cada codevedor. Por exemplo, Mévio, Tício e Gaio são devedores solidários da quantia de R$ 900,00 a Primo, o qual recebe de Mévio a íntegra do que devido: nesse caso,

Mévio tem direito de regresso contra Tício e Gaio tão somente de R$ 600,00, pois cada um tinha na relação uma quota de R$ 300,00 a ser paga ao credor.

Paulo Lôbo[29] e Luiz Emygdio Franco Rosa Júnior[30] indicam uma distinção que pode ser denominada como aquela relacionada à extensão: (i) as garantias pessoais podem ser parciais e, portanto, abranger parte do débito; e (ii) a solidariedade passiva incorre no dever de prestar a integralidade.

Analisando comparativamente os arts. 819 e 898 com o art. 265 do CCB/2002, vê-se que outro contraste é a forma: (i) as garantias pessoais exigem suporte documental específico: a fiança escrita em um contrato apartado ou numa cláusula, o aval por meio de simples assinatura no título; e (ii) a dívida solidária decorre de previsão legal ou da vontade das partes, sendo que esta vontade, como exposto, pode advir de declaração ou manifestação de vontade, o que permite tal regime para casos cuja forma não foi escrita.

O CCB/2002 permite discernir as categorias jurídicas em comento sob a óptica do sujeito casado: (i) consoante o art. 1.647, III, é requisito de validade a chamada outorga uxória (= dada pela esposa) ou marital (= dada pelo marido)

para que o outro cônjuge preste fiança ou aval, ou seja, “ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta: […] III – prestar fiança ou aval’’; (ii) não consta nem nas disposições gerais nem no trecho específico que a solidariedade passiva exige o assentimento conjugal, ainda mais se observado que ser devedor solidário nem sempre decorre da vontade.

 

CONCLUSÕES

O que consta de uma forma mais ou menos homogênea nas relações obrigacionais negociais levadas ao Judiciário é que existe um tratamento do avalista e do fiador que renuncia ao benefício de ordem como espécies de devedores solidários. Apesar das vantagens trazidas ao credor, que pode direcionar sua pretensão material contra qualquer devedor, no caso em que há pluralidade no polo do débito, existem algumas colocações que identificam grandes diferenças entre os regimes das garantias pessoais e da solidariedade passiva.

A fiança é definida como o contrato por meio do qual uma pessoa, o fiador, garante, total ou parcialmente, com seu setor patrimonial a dívida de outrem, o devedor, em caso de inadimplemento em prol do credor, o afiançado. Apesar de ser um negócio bilateral, seus efeitos são unilaterais, eis que apenas o devedor tem débitos, enquanto o devedor principal é alheio ao ato e o credor afiançado é contraparte beneficiária.

O aval é um negócio jurídico unilateral por meio do qual um sujeito estranho à relação cartular assume o dever de garantir, total ou parcialmente, o cumprimento do título de crédito.

A solidariedade em sua amplitude se dá quando há pluralidade de credores ou devedores na mesma relação, cada um com direito ou dever à dívida toda. Suas espécies são a (i) espécie ativa, que compreende uma pluralidade de credores em que cada um tem seu direito a toda a dívida; e a (ii) espécie passiva, que compreende uma pluralidade de devedores em que cada um tem seu débito a realizar a prestação integralmente.

A partir dos lineamentos terminológicos que se viu uma proximidade entre as três figuras, em especial por estarem dentro do amplo regime do Direito das Obrigações e envolverem sujeitos que constam no polo passivo da relação jurídica obrigacional. Por outro lado, algumas – não todas – distinções foram suscitadas, sendo oito no total.

A primeira é topológica e diz respeito à localização da solidariedade passiva em campo mais amplo do Livro I da Parte Especial do CCB/2002, na parte prévia e que trata das dívidas em geral, sem muita distinção das suas fontes, enquanto as garantias pessoais constam em setor mais específico, a fiança como espécie obrigacional contratual e o aval como ato negocial atrelado aos títulos de créditos.

A segunda distinção trata das fontes ou da origem, sendo que solidariedade advém ou da vontade das partes ou de previsão legal, enquanto as garantias fidejussórias decorrem da vontade, por meio de um negócio jurídico unilateral ou bilateral.

A terceira diferença é a da qualificação do débito, sendo que a solidariedade passiva mostra um campo mais amplo de qualificação, pois pode dizer respeito a diversas espécies de promessas, enquanto o avalista e o fiador têm um dever muito específico, a saber, o de prometer o adimplemento pelo devedor principal.

Uma quarta distinção trata da função: a solidariedade passiva é mais ampla e pode se amoldar como dívidas de meio, de resultado ou até de garantia, enquanto a fiança e o aval são dívidas de garantia, meios através dos quais são reduzidos ou até eliminados os riscos que recaem sobre o credor.

A quinta forma de estremar é em relação ao regime do regresso, porque o devedor solidário que adimple para além da sua quota tem direito de regresso pelo que excedeu sua parte e no limite da quota dos demais codevedores, enquanto as garantias pessoais mostram que o regresso contra o devedor principal é pela integralidade do que pago, sendo que o cumprimento integral dá direito à totalidade do que adimplido.

A sexta distinção trata da extensão, eis que as garantias pessoais podem ser parciais e, portanto, abranger parte do débito, enquanto a solidariedade passiva incorre no dever de prestar a integralidade.

Como sétima diferença, está aquela atrelada à forma, porquanto a dívida solidária decorre de previsão legal ou da vontade das partes, o que não exige, necessariamente, a forma escrita, enquanto as garantias pessoais exigem suporte documental específico, a escrita: a fiança em um contrato apartado ou numa cláusula, o aval por meio de simples assinatura no título.

A oitava diferença é visualizada sob a óptica do sujeito casado, pois o CCB/2002 não estabelece como requisito de validade para a constituição de uma dívida solidária a exigência do assentimento conjugal, ainda mais se observado que ser devedor solidário nem sempre decorre da vontade, enquanto impõe como requisito de validade das garantias pessoais a chamada outorga uxória (= dada pela esposa) ou marital (= dada pelo marido).

 

REFERÊNCIAS

BARBOSA FILHO, Marcelo Fortes. Comentário ao art. 897. In: PELUSO, Cezar (Org.) et

  1. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 14. ed. Barueri: Manole, 2020.

COMPARATO, Fábio Konder. Ensaios e pareceres de direito empresarial. Rio de Janeiro:

Forense, 1978.

DEL NERO, João Alberto Schützer. Conversão substancial do negócio jurídico.

Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

GOMES, Orlando. Obrigações. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

LÔBO, Paulo. Direito civil: contratos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

______. Direito civil: obrigações. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo:

Revista dos Tribunais, t. XX, 2012.

______. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, t. XXII, 2012.

______. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, t. XXXIV, 2012.

______. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, t. XLIV, 2012.

ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco. Títulos de crédito. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

 

 

[1] Lista de abreviaturas: Agravo Regimental – AgRg; Apelação Cível – AC; Agravo em Recurso Especial – AREsp; Código Civil brasileiro de 2002 – CCB/2002; Código Civil de Portugal – CCP; Código de Defesa do Consumidor – CDC; Lei Uniforme de Genebra – LUG; Superior Tribunal de Justiça – STJ; Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – TJRS; Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG

[2] DEL NERO, João Alberto Schützer. Conversão substancial do negócio jurídico. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 12-31.

[3] LÔBO, Paulo. Direito civil: contratos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 418

[4] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, t. XLIV, 2012. p. 185, p. 201.

[5] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Op. cit., t. XLIV, p. 199 e ss.; LÔBO, Paulo. Direito civil: contratos. Op. cit., p. 418-419.

[6] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, t. XXXIV, 2012. p. 378-379; ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco. Títulos de crédito. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 279; LÔBO, Paulo. Direito civil: contratos. Op. cit., p. 420.

[7] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Op. cit., t. XXXIV, p. 378-385

[8] ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco. Títulos de crédito. Op. cit., p. 279-285

[9] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, t. XX, 2012. p. 61 e ss.

[10] ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco. Títulos de crédito. Op. cit., p. 281-282; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Op. cit., t. XLIV, p. 221.

[11] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, t. XXII, 2012. p. 415-416.

[12] LÔBO, Paulo. Direito civil: obrigações. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 136.

[13] LÔBO, Paulo. Obrigações. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 79.

[14] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Op. cit., t. XXII, p. 419-420.

[15] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Op. cit., t. XXII, p. 422 e ss.; GOMES, Orlando. Obrigações. Op. cit., p. 84 e ss.; LÔBO, Paulo. Direito civil: obrigações. Op. cit., p. 139 e ss.

[16] GOMES, Orlando. Obrigações. Op. cit., p. 82-84

[17] GOMES, Orlando. Obrigações. Op. cit., p. 83; LÔBO, Paulo. Direito civil: obrigações. Op. cit., p. 137.

[18] GOMES, Orlando. Obrigações. Op. cit., p. 83; LÔBO, Paulo. Direito civil: obrigações. Op. cit., p. 137

[19] LÔBO, Paulo. Direito civil: obrigações. Op. cit., p. 137.

[20] GOMES, Orlando. Obrigações. Op. cit., p. 84.

[21] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Op. cit., t. XXII, p. 417-418.

[22] GOMES, Orlando. Obrigações. Op. cit., p. 88

[23] LÔBO, Paulo. Direito civil: contratos. Op. cit., p. 420; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Op. cit., t. XLIV, p. 212-213.

[24] BARBOSA FILHO, Marcelo Fortes. Comentário ao art. 897. In: PELUSO, Cezar (Org.) et al. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 14. ed. Barueri: Manole, 2020. p. 900.

[25] LÔBO, Paulo. Direito civil: contratos. Op. cit., p. 420

[26] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Op. cit., t. XLIV, p. 185-189

[27] COMPARATO, Fábio Konder. Ensaios e pareceres de direito empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 536 e ss.

[28] Ibidem, p. 520 e ss

[29] LÔBO, Paulo. Direito civil: obrigações. Op. cit., p. 147

[30] ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco. Títulos de crédito. Op. cit., p. 289-291.