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NOÇÕES GERAIS E COMPATIBILIDADE DA DELAÇÃO PREMIADA TIPIFICADA NA LEI Nº 12.850/2013 COM OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

NOÇÕES GERAIS E COMPATIBILIDADE DA DELAÇÃO PREMIADA TIPIFICADA NA LEI Nº 12.850/2013 COM OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

NOÇÕES GERAIS E COMPATIBILIDADE DA DELAÇÃO PREMIADA TIPIFICADA NA LEI Nº 12.850/2013 COM OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

Rafael Niebuhr Maia de Oliveira

Egon Augusto Telles

Gabriel Marques

SUMÁRIO: Introdução; 1 Aspectos históricos; 1.1 A delação premiada na legislação brasileira contemporânea; 1.2 A colaboração premiada tipificada na Lei nº 12.850/2013; 2 Limites ao poder punitivo do Estado em razão das garantias constitucionais do acusado no processo penal brasileiro; 3 O princípio do contraditório e da ampla defesa e delação premiada; Considerações finais; Referências.

 

INTRODUÇÃO

A delação premiada, também conhecida como colaboração premiada, é um meio extraordinário para a obtenção de provas. Geralmente está relacionada aos crimes de maior potencial ofensivo ou cuja descoberta dos crimes torna-se inviável através dos meios ordinários de investigação. O instituto da delação premiada tem gerado bastante discussão na sociedade, doutrina e jurisprudência brasileira, devido ao seu meio questionável de aquisição de informações relevantes à investigação.

O objetivo do presente trabalho é estudar os aspectos gerais do instituto processual penal da delação premiada, bem como aquela tipificada na lei das organizações criminosas (Lei nº 12.850/2013) e sua compatibilidade com os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório no processo penal brasileiro.

Para tanto, parte-se da problemática que envolve a compatibilização da delação premiada conforme vem sendo aplicada pelo procedimento tipificado na nova lei de organizações criminosas e para o qual se estabelece a seguinte hipótese: há direitos e garantias fundamentais assegurados pela Carta Magna sendo violados pelos concedentes dos benefícios da delação?

Justifica-se a escolha do tema pela sua atualidade, os inúmeros acordos de delação que estão sendo concedidos nos escândalos da Petrobrás e escândalos de corrupção na casa legislativa federal.

No desenvolvimento desta pesquisa, será utilizado o método indutivo. Na investigação, fez-se uso da técnica do referente, das categorias e do conceito operacional, por meio de pesquisa bibliográfica, cujas referências das obras citadas serão colacionadas ao final. Os pressupostos conceituais serão trazidos ao decorrer do desenvolvimento da pesquisa, através de notas de rodapé, assim como as referências ao longo do texto.

1 ASPECTOS HISTÓRICOS

O instituto da delação premiada não parece ser uma criação recente dos legisladores contemporâneos; pelo contrário, precede a criação de qualquer sistema processual, encontrando-se vestígios do instituto desde a Antiguidade, passando pela Idade Média, pela Modernidade, até culminar como é conhecida hoje, passando por inúmeras modificações, tanto em sua forma quanto em seu conteúdo.

A “delação premiada” no Direito brasileiro surgiu nas Ordenações Filipinas, onde, no Título VI do “Código Filipino“, trazia o crime de “Lesa Magestade“. Nesse crime era encontrada a delação que estava cravada em seu item 12; e no Título CXVI, por sua vez, tratava sobre o tema, com a denominação de “Como se perdoará aos malfeitores que derem outros á prisão“, detinha uma abrangência tão extensa que poderia ser concedido aquele que delatasse seus companheiros poderia receber com prêmio até o perdão judicial.[1]

No Brasil, a primeira lei que disciplinou de forma expressa o instituto da delação premiada foi a Lei nº 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos), que, em seu art. 8º, parágrafo único, estabelecia que o participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou a quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá pena reduzida de um a dois terços[2].

Com o advento da Lei nº 9.269/1996, o crime de extorsão mediante sequestro, tipificado no art. 159 do CP, passou a contar com a delação premiada a fim de cessar a prática delituosa. O instituto foi incluído em seu § 4º com a seguinte redação: “§ 4º Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços“.

Pode-se vislumbrar que, com o passar dos anos, a delação premiada foi ganhando espaço no ordenamento jurídico brasileiro, sendo abordada em várias outras leis, com diferentes benefícios, diferentes requisitos para obtenção, diferentes sujeitos, entre outras peculiaridades, as quais se procurará abordar ao longo desta pesquisa.

1.1 A delação premiada na legislação brasileira contemporânea

Posteriormente, à disposição na Lei de Crimes Hediondos, supra-abordada, a delação premiada foi prevista em vários outros dispositivos legais, com diferentes tipos de benefícios. Pode-se destacar a primeira lei que tratou sobre crime organizado (Lei nº 9.034/1995), que, em seu art. 6º, previa a redução da pena, de um a dois terços, quando a colaboração espontânea do agente levava ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria. Ressalta-se, contudo, que essa lei foi totalmente revogada pela atual lei de organizações criminosas.

Por sua vez, a Lei de Lavagem de Capitais (Lei nº 9.613/1998), aprimorada pela Lei nº 12.683/2012[3], prevê, em seu art. 1º, § 5º, a redução da pena de um a dois terços e a possibilidade de ser cumprida em regime aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá-la (perdão judicial) ou substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime.

A colaboração premiada volta a ser abordada junto à Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Lei nº 9.807/1999), no capítulo que trata da proteção aos réus colaboradores, em que dispõe, em seu art. 13[4], que o juiz poderá, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a consequente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado na identificação dos demais coautores ou partícipes da ação criminosa ou a localização da vítima com a sua integridade física preservada, ou ainda quando haja a recuperação total ou parcial do produto do crime.

Observa-se que a referida lei avança nas benesses oferecidas ao réu colaborador, prevendo, inclusive, o benefício máximo do perdão judicial, que é um benefício em que o juiz tem a faculdade de concessão, conforme o dispositivo legal analisado.

Acerca do perdão judicial, lecionam Miguel e Pequeno:

Neste instituto, o Magistrado, não obstante comprovada a prática da infração penal pelo réu, deixa de lhe aplicar a pena em face de justificadas circunstâncias. O Estado renuncia, por intermédio da declaração do juiz, na própria sentença, a pretensão de imposição das penas. Incorporado ao nosso sistema legal, o perdão judicial, previsto na Lei nº 9.807/1999, somente deve ser aplicado ao crime do qual o delator for coautor ou partícipe. O perdão é causa extintiva de punibilidade, conforme se extrai dos arts. 107, IX, e 120 do CP e é também circunstância de caráter pessoal e, portanto, incomunicável. […]. (Miguel; Pequeno, 2000, p. 439)

Todavia, enquanto se pode observar o perdão judicial como uma opção do Magistrado, ou direito subjetivo do réu, o mesmo não ocorre quanto à redução da pena, em caso de condenação, do indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime.

Mesma conclusão se tira no caso de colaboração para localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, em que será direito objetivo do colaborador ter direito à redução da pena de um a dois terços, não sendo facultado ao juiz negar-lhe tal benesse, desde que evidenciada sua colaboração nos termos da lei. Este é o entendimento de Bittar[5]:

[…] nas hipóteses em que o réu atenda aos requisitos e pressupostos da delação premiada, não poderá o Magistrado ignorar os beneplácitos mais favoráveis e disciplinados nos arts. 13 e 14 da Lei nº 9.807/1999, aplicável também à Lei nº 11.343/2006 e a qualquer outro diploma repressivo legal brasileiro.

Já a antiga Lei Antitóxicos (Lei nº 10.409/2002)[6], revogada in totum pela atual Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006)[7], previa, em seu art. 32, § 2º, a possibilidade de sobrestamento do processo ou a redução da pena em caso de acordo entre o Ministério Público e o indiciado que, espontaneamente, revela-se a existência de organização criminosa, permitindo a prisão de um ou mais dos seus integrantes, ou a apreensão do produto, da substância ou da droga ilícita, ou que, de qualquer modo, contribua para os interesses da Justiça.

A atual lei de drogas também prevê o instituto da delação premiada quando, em seu art. 41, dispõe que, em caso de condenação, pode haver a redução da pena de um a dois terços caso o indiciado ou acusado colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime.

Art. 41. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços.[8]

Analisando o dispositivo legal acima demonstrado, Andreucci explica a figura da colaboração premiada no combate às drogas:

Trouxe a nova lei, nesse artigo, a figura da delação premiada, em que o agente colaborador tem sua pena reduzida quando possibilita a identificação dos demais coautores ou partícipes do crime e a recuperação total ou parcela do produto do crime. A colaboração poderá ocorrer na fase de inquérito policial ou no curso do processo criminal. (Andreucci, 2007, p. 82)

Nota-se que a delação premiada foi amplamente difundida na legislação pátria, sofrendo diversas alterações e complementos até o advento da nova lei de organizações criminosas, a qual abordou, de forma minuciosa, o instituto, agora denominada de colaboração premiada.

1.2 A colaboração premiada tipificada na Lei nº 12.850/2013

A colaboração premiada tipificada na nova lei de organizações criminosas parece ser a forma de colaboração que mais recebeu atenção do legislador, de forma que suas características como meio de concessão, os benefícios, os direitos do delator, definição da autoridade concedente, entre muitos outros aspectos processuais, amplamente abordados e especificados pela lei.

Gurgel e Gurgel exemplificam casos que fizeram essa medida ganhar notoriedade:

A atual Lei de Organizações Criminosas diversificou e ampliou o benefício concedido ao delator, que pode ter como prêmio, dependendo dos efeitos do ato, a isenção de pena pelo perdão judicial ou até mesmo a exclusão do processo. Sua aplicação ganhou notoriedade graças aos escândalos que vieram à tona no atual Governo, como os do “Mensalão” e da “Operação Lava Jato“. […].[9]

Tipificada no capítulo que trata acerca da investigação e dos meios de obtenção da prova, entre o art. 4º ao 7º, a colaboração premiada é um dos meios extraordinários de investigação disponibilizados na lei das organizações criminosas.

Nesse passo, entende-se que o advento da normatização da Lei nº 12.850/1990, além de não revogar os dispositivos anteriores, pode servir de complemento a eles em suas respectivas áreas de aplicação, uma vez que o atual diploma legal normatiza de forma bem mais detalhada os procedimentos para a colaboração. Isso, aliás, era uma lacuna por demais prejudicial à devida aplicação do dito instituto por meio dos diplomas legais que antecederam a atual Lei do Crime Organizado.[10].

Segundo Mendonça, a nova lei de organizações criminosas preencheu lacunas deixadas pela antiga lei que tratava acerca do tema[11]:

A Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013 – criada em substituição à Lei nº 9.034/1995 -, passou a ser, atualmente, o diploma básico de enfrentamento ao crime organizado no Brasil. A nova legislação aperfeiçoou o sistema nacional, tanto no aspecto penal quanto processual. Criou, dentre outros, o tipo penal incriminando a organização criminosa, suprindo finalmente a lacuna do ordenamento jurídico brasileiro. […].

Tem-se, portanto, que o diploma legal tem por objetivo a possibilidade de desmantelamento das organizações criminosas, a descoberta de novos crimes e sua autoria, bem como garantir a punição dos criminosos.

Os benefícios previstos aos colaboradores da investigação, em se tratando da lei de organizações criminosas, podem ser o perdão judicial, a redução da pena ou substituição da pena privativa de liberdade por uma pena restritiva de direitos. Ressalta-se que a nova lei de organizações criminosas não revogou outras formas de delações premiadas; pelo contrário, pode servir como complemento em certas omissões.

2 LIMITES AO PODER PUNITIVO DO ESTADO EM RAZÃO DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO ACUSADO NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO 

Pôde-se notar que a delação premiada é uma forte arma para o combate da criminalidade, em especial àquela oriunda de organizações complexas, estruturadas e organizadas para a prática de crimes. O momento atual em que o país enfrenta com frequentes notícias de membros de organizações criminosas sendo presos, desmantelamentos de organizações criminosas, escândalos de corrupção na Administração Pública sendo descobertos – todos esses fatores indicam a eficácia do instituto.

Um exemplo da eficácia da lei pode ser demonstrado através da notícia publicada no Jornal Gazeta do Povo em 17 de novembro de 2014, com o título “Acordos de delação premiada devem devolver aos cofres públicos R$ 447 milhões[12]“.

Por outro lado, sabe-se que a persecução penal do Estado pode esbarrar nos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, sendo estes protegidos por inúmeras normas e princípios que devem ser respeitados pelo Estado.

A principal fonte dos princípios constitucionais de proteção aos cidadãos é o art. 5º da Constituição da República[13], que possui status de cláusula pétrea, ou seja, são normas intangíveis, que não admitem redução ou extinção de sua aplicabilidade. Dessa forma, não há que se falar em desrespeito, ou sequer mitigação a tais princípios em nome de um “bem maior“, ou qualquer outra justificativa, sob pena de qualquer ato que viole tais princípios estar eivado de inconstitucionalidade.

Ocorre que somente uma sociedade confusa quanto aos seus reais valores pode colocar o jus puniendi do Estado acima dos seus direitos individuais” (Gurgel e Gurgel, 2015, p. 55).

Ao comentar acerca da delação premiada, El Tasse é enfático em afirmar que a delação premiada é um importante meio de investigação; entretanto, salienta que tal meio de investigação não se compatibiliza com uma persecução penal que respeite todas as garantias constitucionais.

A delação premiada não se constitui em um recurso moderno do processo penal, assim como não se apresenta com repercussão de nenhum avanço especial havido na persecução criminal. Em verdade, a delação premiada sempre representou, juntamente com a prática da tortura, uma das ferramentas fundamentais dos processos arbitrários, em especial os medievos de índole inquisitorial.

[…]

Talvez a colaboração do corréu permita a punição de delitos graves em sociedade. Talvez o sistema de delação premiada permita que se aproxime da verdade material sobre determinados crimes, porém não há certeza de que tais objetivos se cumpram, enquanto surge inexorável a certeza de que o sistema em que é incentivada a ação do acusado, em apoio ao Judiciário, produz quebra às garantias constitucionais importantes.[14]

Pacelli[15], tentando dar racionalidade à verdade processual, defende que o processo penal público não pode ser unicamente instrumento de aplicação do direito penal, mas deve, sobretudo, tutelar os direitos fundamentais.

Neste sentido, muito se discute acerca da compatibilização da delação premiada tipificada na lei de organizações criminosas com os princípios constitucionais garantidores de uma defesa justa e legal.

Defensores do instituto, de modo geral, utilizam como justificativa legitimadora da delação o argumento de que os princípios constitucionais são respeitados, porém, de certo modo, flexibilizados. Essa flexibilização justifica-se face ao “custo/benefício processual, ou seja, é necessário que haja a flexibilização de certos princípios no caso concreto para que se alcance um resultado satisfatório“.

E é nesse caminho que Lemos Jr. aponta:

A delação de um investigado sempre existiu por meio do chamamento do corréu ao processo, ou simplesmente por meio da imputação ao corréu no interrogatório judicial. Como se intensificaram os crimes cometidos por organizações criminosas, houve a necessidade de se diversificar e incrementar, com atraso, os meios de provas, dentre eles a eficiente colaboração premiada, agora bem regulamentada pela Lei nº 12.850/2013.

[…]

Não há espaço para debate sobre ética, traição ou moral à vista da aplicação da colaboração premiada, pois a prática criminosa grave ofendeu primeiro tais nobre princípios.

Por sua vez, comentando o instituto da delação premiada, Rieger mira em sentido contrário, imputando que a delação premiada se trata de instituto antiético e imoral:

A maioria dos juristas reconhece, contudo, que a delação dá, sempre mostra da ausência de freis éticos. Apesar disso, alguns aceitam sua aplicação, pois a consideram um mal necessário. Em suma, a delação premiada é um instituto polêmico. É inegavelmente antiético e imoral e não se coaduna com os princípios consagrados na Constituição da República. Deveria, portanto, ser expurgado do Ordenamento Jurídico brasileiro. (Rieger, 2008, p. 10)

Por outro norte, assim como Rieger, a doutrina é prolífera na menção a princípios e garantias violados pelo recurso aos pentiti, podendo, podendo referir-se, entre outros, ao direito ao silêncio, ao papel do interrogatório como meio de defesa, ao nexo retributivo entre pena e delito (Ferrajoli, 2004, p. 624), ao princípio de materialidade (Ferrajoli, 2004, p. 624), à moralidade pública (Coutinho; Carvalho, 2006), à ampla defesa e contraditório (Coutinho; Carvalho, 2006)[16].

Tendo em vista que o tema da presente pesquisa tem por foco os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, a estes princípios será limitada a pesquisa, não abrangendo os demais princípios aplicados aos processos em geral ou os princípios específicos do processo ou da ação penal, entre outros.

3 O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA E DELAÇÃO PREMIADA

Os princípios do contraditório e da ampla defesas são as colunas principais de um Estado Democrático de Direito, traduzindo-se em garantias fundamentais de todo e qualquer cidadão que seja submetido a um procedimento judicial ou administrativo.

Por contraditório entende-se o direito que tem o indivíduo de tomar conhecimento e contraditar tudo o que é levado pela parte adversa ao processo.

É assim: o princípio constitucional do contraditório que impõe a condução dialética do processo (par conditio), significando que, a todo ato produzido pela acusação, caberá igual direito da defesa de se opor, de apresentar suas contrarrazões, de levar ao juiz do feito uma versão ou uma interpretação diversa daquela apontada inicialmente pelo autor. O contraditório assegura, também, a igualdade das partes no processo, pois equipara, no feito, o direito da acusação com o direito da defesa[17].

Conforme leciona Nucci, o contraditório prevê a bilateralidade dos atos processuais, que significa ter o réu sempre o direito de se manifestar quanto ao que for dito e provado pelo autor, produzindo contraprova[18].

Segundo Schimidt, citado por Lescano (2010, p. 15), contraditar é contra-aditar, isto é, afirmar em sentido contrário, contrariar, dimanando dessa garantia a base da intervenção da defesa. O que funda a garantia do contraditório é a proibição ética e jurídica de um julgamento sem oportunizar-se ao acusado a chance para impugnar a prova acusatória e oferecer a sua versão defensiva[19].

Por sua vez, Tourinho, citado por Silva, preconiza que o contraditório no instituto da delação premiada é primordial como valoração de prova[20]:

O contraditório é, pois, essencial para a valoração da prova, em termos tais que a prova que não lhe for submetida não vale para formar a convicção. O fato somente pode ser julgado provado ou não provado após a submissão dos meios de prova ao contraditório em audiência.

Já por ampla defesa entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo omitir-se ou calar-se, se entender necessário[21].

A ampla defesa é a possibilidade que o réu tem, já assegurado pelo contraditório, de lançar utilizar todas as possibilidades de exercício pleno do seu direito de defesa, possibilitando-o trazer ao processo os elementos que julgar necessários ao esclarecimento da verdade.

Posto isso, em primeira análise à Lei nº 12.850/2013, podem-se notar dispositivos incompatíveis com os princípios tratados, eis que, por exemplo, o réu não tem acesso às acusações feitas pelo delator no momento da delação, impossibilitando sua defesa, sendo esta exercida apenas na fase judicial, de forma que a elaboração da defesa resta prejudicada.

A lei também não dispõe da possibilidade de acareação entre o delator e o acusado, sendo que o delator falará em audiência sem contato visual com outros acusados (art. 5º da Lei nº 12.850/2013), de forma que o réu não tem a possibilidade de comprovar fatos contrários, demonstrando que a delação premiada não é plenamente compatível com os princípios da ampla defesa e do contraditório.

Silva[22] entende que a delação não possibilita, de forma plena, o contraditório, uma vez que o delatado não tem acesso a informações importantes.

Sendo a delação o momento em que se colhem as informações do delator a respeito de pessoas, lugares etc., o delatado não tem acesso às acusações, para que delas possa se defender. Somente passada essa fase é que o acusado tem o direito à defesa. Mesmo assim, ele não tem acesso a todos os elementos que, querendo ou não, o incriminam, tais como acesso aos dados do delator, e que seriam importantes como meio de se estabelecer o contraditório. Importa salientar que não existe acareação entre delator e delatado, para que possa ser feita uma análise de todas as informações, referentes à defesa e à acusação.

Aranha, citado por Rossetto, salienta que as informações obtidas por meio de um acordo de delação não deveriam ser úteis como prova, uma vez que não possibilita o contraditório:

[…] assinala tratar-se de prova anômala, totalmente irregular, que surge no interrogatório, peça sem influência das partes, ou na ouvida policial, igualmente sem influência, não havendo contraditório, porque o atingido pela delação nada pode perguntar ou reperguntar. (2001, p. 190)

Embora haja discursos alegando que as provas colhidas na fase investigatória não trazem prejuízos ao réu, eis que não pode haver condenação baseada apenas com elementos de convicção colhidos na fase do inquérito, contudo, na prática, é isso que muita vezes acontece, conforme destaca Vieira:

Investigar com eficiência e respeitar o indivíduo além de possível é uma imposição do estado de direito. Nesse sentido, é necessário garantir que o investigado possa participar, ainda que de maneira moderada, da investigação, pois nela são abrigados também, atos de instrução criminal, alguns inclusive de caráter definitivo. (Vieira, 2006, p. 12)

Conforme se observa, sob a ótica garantista do direito penal, não é possível afirmar que a delação premiada é compatível com o contraditório.

Prieto diz tratar-se de prova anômala e ilícita, não devendo ser admitida como meio de prova.

É, nessa hipótese, realmente uma prova anômala, totalmente irregular, pois viola o princípio do contraditório, uma das bases estruturantes do processo penal. Como a acusação surge, a rigor, no interrogatório em juízo, sem a presença do delatado e de seu defensor, ou na ouvida policial, igualmente sem essa presença de ambos, deixa de existir o contraditório, pois o atingido nada pode perguntar ou reperguntar.[23]

Entretanto, há quem defenda sua compatibilidade constitucional com a delação premiada, sendo que os que assim entendem defendem que o contraditório não se aplica à fase investigatória, sendo admitido apenas na fase processual.

Explanando sobre o tema, Lescano apresenta posições sobre o tema[24]:

Segundo Antônio Scarance Fernandes, só se exige a observância do contraditório, no processo penal, na fase processual, não na fase investigatória. Ao mencionar o contraditório, impõe seja observado em processo judicial ou administrativo, não estando abrangido o inquérito policial. De outra banda, Rogério Lauria Tucci sustenta a necessidade de uma contrariedade efetiva e real em todo o desenrolar da persecução penal e na investigação inclusive, para maior garantia da liberdade e melhor atuação da defesa.

Apesar da divergência doutrinária acerca do tema, extrai-se da jurisprudência majoritária que até mesmo na fase investigatória há a necessidade de se respeitarem os direitos fundamentais do investigado.

Sobre o tema, cabe destacar os ensinamentos do eminente Ministro Celso de Mello[25]:

O indiciado é sujeito de direitos e dispõe de garantias, legais e constitucionais, cuja inobservância, pelos agentes do Estado, além de eventualmente induzir-lhes a responsabilidade penal por abuso de poder, pode gerar a absoluta desvalia das provas ilicitamente obtidas no curso da investigação policial.

A fim de evitar abusos e garantir a ampla defesa e o contraditório na fase investigatória, a Suprema Corte Constitucional editou a Súmula Vinculante nº 14, que assegura o direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judi­ciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa[26].

Destarte, verifica-se que, conforme a maior parte dos autores pesquisados, ao menos pelas regras atuais, há violação ao direito constitucional do acusado ao contraditório e a ampla defesa na delação premiada, devendo esse modo de aquisição das delações sofrer mudanças a fim de que possibilite a garantia dos direitos constitucionais de defesa do delatado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A delação premiada foi inclusa no ordenamento jurídico brasileiro pela primeira vez em 1990, com o advento da lei de crimes hediondos, sendo, com o passar dos anos, adotada por diversas outras leis esparsas, sofrendo, assim, inúmeras alterações e complementações.

A colaboração premiada tipificada na lei de organizações criminosas pode ser oferecida pela autoridade policial ou pelo Ministério Público, que tem por objetivo dar benefícios ao colaborador, desde que auxilie de forma concreta nas investigações, sendo que a autoridade judiciária não participa das negociações, limitando-se a homologar o acordo celebrado entre o colaborador e os investigadores quando obtido um resultado concreto por meios das delações.

A delação premiada tipificada na Lei nº 12.850/2013, apesar de recente, gera muitas controvérsias acerca de sua constitucionalidade, dividindo opiniões e gerando muitos debates.

Segundo a maior parte da doutrina pesquisada, a colaboração premiada (assim denominada na nova lei de organizações criminosas) fere alguns dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, uma vez que não possibilita o delatado de se defender de todas as acusações a ele imputadas, não sendo compatível com o Estado Democrático de Direito.

Com a realização desta pesquisa, confirmou-se a hipótese suscitada, concluindo que o instituto da delação premiada, da forma que é realizada, viola o princípio do contraditório e da ampla defesa, devendo ser modificada a forma de sua concessão, de modo que permita o delatado se defender de todas as acusações que lhe são impostas, sendo possibilitada a produção de contraprovas ou até mesmo da careação do delator.

REFERÊNCIAS

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______. Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8072.htm>. Acesso em: 29 fev. 2016.

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______. Lei nº 10.409, de 11 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10409.htm>. Acesso em: 29 fev. 2016.

______. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em: 29 fev. 2016.

______. Lei nº 12.683, de 3 de março de 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12683.htm>. Acesso em: 29 fev. 2016.

______. Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm>. Acesso em: 29 fev. 2016.

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[1] AQUOTTI, Marcos Vinicius Feltrim; TROMBETA, Mayara Maria Colaço. Delação premiada. Disponível em: <http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/2255/2257. Acesso em: 21 jul. 2015.

[2] BRASIL. Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, art. 8º, parágrafo único.

[3] BRASIL. Lei nº 12.683, de 3 de março de 1998, art. 2º.

[4] BRASIL. Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999, art. 13.

[5] BITTAR, Walter Barbosa. Delação premiada: direito estrangeiro, doutrina e jurisprudência. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 145.

[6] BRASIL. Lei nº 10.409, de 11 de janeiro de 2002.

[7] BRASIL. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006.

[8] BRASIL. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, art. 41, caput.

[9] GURGEL, Sergio Ricardo do Amaral; GURGEL, Juliana Meira Diniz. Delação premiada, ética condenada. Disponível em: <http://www.impetus.com.br/artigo/937/delacao-premiada-etica-condenada>. Acesso em: 2 fev. 2016.

[10] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Nova Lei do Crime Organizado (Lei nº 12.850/13): delegado e colaboração premiada. Disponível em: <http:// eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/121938007/nova-lei-do-crimeorganizado-lei-12850-13-delegado-e-colaboração-premiada>. Acesso em: 21 jan. 2016

[11] MENDONÇA, Andrey Borges de. A colaboração premiada e a nova Lei do Crime Organizado (Lei nº 12.850/2013). Custus Legis, Revista Eletrônica do Ministério Público Federal, v. 4, 2013. Disponível em: <file:///C:/Users/Usuario/Downloads/2013_Direito_Publico_Andrey_delacao_premiada.pdf>. Acesso em: 22 set. 2015.

[12] GAZETA DO POVO, 17 nov. 2014. Produced by Bordin. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/acordos-de-delacao-premiada-devem-devolver-aos-cofres-publicos-r-447-milhoes-eg9i76pnjn3ixehp430vmyf66>. Acesso em: 2 fev. 2016.

[13] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988.

[14] Adel El. Delação premiada: novo passo para um procedimento medieval. Thompson Reuters, Revista dos Tribunais Online, v. 05, 2006. Disponível em: <http://www.esmal.tjal.jus.br/arquivoCurso/2015_05_11_14_08_46_Artigo.dela+{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}BA+{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}FAo.premiada.Adel.Tasse.pdf>. Acesso em: 2 fev. 2016.

[15] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Processo e hermenêutica na tutela penal dos direitos funda­mentais. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 42.

[16] PEREIRA, Frederico Valdez. Compatibilização constitucional da colaboração premiada. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/DPE2014/docs/flavio/valdez.pdf>. Acesso em: 2 fev. 2016.

[17] PAULO Vicente; ALEXANDRINO Marcelo. Direito constitucional descomplicado. 12. ed. São Paulo: Método, 2014. p. 191.

[18] NUCCI, Guilherme de Souza. O valor da confissão como meio de prova no processo penal. São Paulo: RT, 1999. p. 36.

[19] LESCANO, Mariana Doernte. A delação premiada e sua (in)validade á (sic) luz dos princípios constitucionais. PUCRS, 2010. Acesso em: <http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2010_1/mariana_lescano.pdf>. Disponível em: 28 set. 2015.

[20] SILVA, Admaura. A delação premiada na nova Lei do Crime Organizado – Lei nº 12.850/2013. Disponível em: <http://silvamaura.jusbrasil.com.br/artigos/273325253/a-delacao-premiada-na-nova-lei-do-crime-organizado-lei-n-12850-2013?ref=topic_feed>. Acesso em: 15 jan. 2016.

[21] STF, HC 68.929-9/SP, 1ª T., Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça 28.08.1992, p. 13453.

[22] DA SILVA, Jordana Mendes. Delação premiada: uma análise acerca da necessidade de regulamentação específica no direito penal brasileiro. PUCRS, 2012. Acesso em: <http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2012_1/jordana_silva.pdf>. Disponível em: 28 set. 2015.

[23] PRIETO, André Luiz. Delação só é prova quando permitido o contraditório. Conjur, 2008. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2008-set-24/delacao_prova_quando_permitido_contraditorio>. Acesso em: 29 fev. 2016.

[24] LESCANO, Mariana Doernte. A delação premiada e sua (in)validade á (sic) luz dos princípios constitucionais. PUCRS, 2010. Acesso em: <http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2010_1/mariana_lescano.pdf>. Disponível em: 28 set. 2015.

[25] RTJ 168/896-897, Rel. Min. Celso de Mello.

[26] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante nº 14. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario.asp?sumula=1230>. Acesso em: 15 fev. 2016.