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A MITIGAÇÃO DO PROCESSO CIVIL NO DIREITO DE FAMÍLIA

A MITIGAÇÃO DO PROCESSO CIVIL NO DIREITO DE FAMÍLIA

Denise Damo Comel

Todo homem, quando nasce, ensina Washington de Barros Monteiro, “torna-se membro integrante de uma entidade natural, o organismo familiar. A ela conserva-se ligado durante toda a existência, embora venha a constituir nova família. O entrelaçamento das múltiplas relações, estabelecidas entre os componentes da referida entidade, origina um complexo de disposições, pessoais e patrimoniais, que formam o objeto do Direito de Família”.([1])

Diz-se que o Direito de Família é o mais sensível dos ramos do Direito Civil, pois além de conter as normas que protegem a família, como base da sociedade (CF, art. 226, caput), regulamenta o estado da pessoa, desde o nascimento (inclusive antes) até a morte. Com efeito, no Direito de Família estão regulados, dentre outros, o casamento e o divórcio, a união estável, o parentesco, o poder familiar e todas as situações dele decorrentes, como guarda, visitas e alimentos aos filhos menores. É possível dizer, portanto, que seu objeto é a existência das pessoas.

Destarte, vários são os princípios constitucionais que norteiam as relações familiares, dentre os quais se destacam o da dignidade da pessoa humana, como fundamento da República (CF, art. 1º, III), da proteção integral da criança e do adolescente (CF, art. 227, caput), da igualdade entre homem e mulher (CF, arts. 5º, I, e 226, § 5º), da igualdade entre os filhos (CF, art. 227, § 6º), como, também o princípio da entidade familiar plural, não mais singular (CF, art. 226, § 3º).

Já o processo civil é instrumento da jurisdição. Consiste, “por sua própria natureza e finalidade, um instrumento a serviço do direito material”, sendo que todos os seus institutos básicos são concebidos e justificam-se no quadro das instituições do Estado pela necessidade de garantir a autoridade do ordenamento jurídico.([2]) Tem a finalidade de assegurar o direito objetivo ao caso concreto, na eventual lesão. É um meio de proteção do direito individual.

Por sua vez, embora não haja um processo civil próprio para as questões de família, senão que um corpo único, aplicável, de regra, a todos os conflitos no âmbito do Direito Civil, com exceção, por evidente, das leis esparsas, o legislador, em algumas situações, oferece soluções diferenciadas para as demandas do foro familiarista.

É o caso, no Código de Processo Civil, do privilégio de foro da mulher para a ação de divórcio e do alimentando para as ações de alimentos (art. 100, I e II); a regra de citação pessoal e de intervenção obrigatória do Ministério Público nas ações de estado (art. 222, “a” e art. 82, II); o segredo de justiça nas demandas que dizem respeito a casamento, filiação, divórcio, alimentos e guarda de menores (art. 155, II), como exceção ao princípio da publicidade dos atos processuais, dentre outros. Já na legislação esparsa igualmente são encontradas situações de quebra de paradigmas processuais, como por exemplo, o arbitramento de alimentos provisórios ainda que não haja pedido expresso (Lei nº 5.478/68, art. 4º), norma que, num primeiro exame, afigura-se violação do princípio da inércia da jurisdição, além da relativização da coisa julgada na ação de alimentos (Lei nº 5.478/68, art. 15).

Os tribunais têm seguido a mesma linha, não sendo raro encontrar decisões que implicam em quebra de regras processuais. Colhe-se, por exemplo, da jurisprudência dominante do Tribunal de Justiça do Paraná, a possibilidade de a mulher reclamar, em nome próprio, alimentos para filho comum em ação de divórcio (“Na ação de divórcio, a mulher é parte legítima para pleitear, em favor dos filhos menores, a pensão alimentícia” – TJPR, ac. 2524/7ª), solução que viola, em tese, o princípio da ação.

Ainda, a possibilidade de homologar acordo em que uma das partes não esteja representada por advogado (“É válido acordo firmado pelas partes, homologado pelo juiz, que põe fim à ação de investigação de paternidade, mesmo que não seja assinado pelo advogado de uma das partes” – TJPR, cf. acórdãos nºs 2332/7ª e 318/8ª), o que implica em reconhecer capacidade postulatória com violação do princípio da indispensabilidade do advogado à administração da justiça (CPC, art. 36; CF, art. 133).([3]) Mais, a condenação em alimentos em ação de investigação de paternidade sem que haja pedido expresso (“Sempre que for julgada procedente a ação de investigação de paternidade, o juiz deve conceder alimentos, mesmo não havendo pedido formulado na inicial” – TJPR, cf. acórdãos nºs 2475/7ª e 1816/8ª), consistindo a hipótese, em última análise, em decisão extra petita.([4])

Veja-se que os julgados citados tratam de jurisprudência dominante, quer dizer, não consistem em situações isoladas, mas em decisões reiteradas, por entendimento consolidado no Tribunal de Justiça do Paraná que, seguramente, não diverge da jurisprudência nacional.([5])

Nesse contexto, firma-se cada vez mais o entendimento de que quando se trata de conflito no âmbito do Direito de Família, há necessidade de sobrepor questões de caráter material em face de regras de natureza formal e instrumental.

A propósito, então, o poder geral de cautela do juiz, instituído no art. 798 do CPC, pode ser concebido mais como um dever do que uma faculdade, impondo-se-lhe maior obrigação de atuação de ofício, até mesmo para tomar postura mais ativa na gestão processual. Aliás, é do conhecimento dos que militam nas varas da família que em ações que tecnicamente deveriam seguir o rito ordinário, a designação prévia e imediata de audiência preliminar de conciliação (que bem pode ser fundamentada no art. 125, IV, do CPC), postergando-se o oferecimento de defesa para momento posterior, afigura-se solução mais adequada e muitas vezes suficiente para resolver intrincados conflitos, evitando a demora do processo formal, além de maiores desgastes da família, até mesmo sob o aspecto financeiro.([6]) Também na produção da prova, deverá intervir de modo mais ativo, particularmente diante da parte manifestamente hipossuficiente e nos casos que versam sobre direitos indisponíveis, de modo a assegurar às partes igualdade de tratamento (CPC, art. 125, I).

O advogado, indispensável à administração da justiça, de profissional litigante na defesa dos interesses de seu constituinte, pode, e até deve, ter uma postura de agente negociador, atuando nos interesses da família como um todo, mais do que focado apenas no êxito da pretensão de seu cliente. Mesmo porque, no fundo e na forma, nos litígios de família não há vencedor ou vencido, tudo girando em torno da reconstrução da família em crise, administrando os recursos que ela tem, dentro de suas possibilidades reais e concretas. Desempenha, assim, relevante papel para a Justiça, notadamente quando diante do princípio da prevalência dos interesses dos filhos, crianças e adolescentes.

Sobressai, ainda, a questão da interdisciplinariedade, uma vez que muitos conflitos de natureza familiar não são passíveis de solução apenas na esfera técnico-jurídica, condicionados que estão ora a aspectos eminentemente pessoais (questões emocionais, doenças psíquicas, como neurose e depressão, drogadição, alcoolismo, dentre outros), ora a questões sociais ou financeiras. Não raro, há necessidade de que sejam buscadas soluções fora do Direito, para as quais nem sempre o processo civil oferece o melhor caminho e a necessária solução. Sem dizer, da sólida formação humana e equilíbrio emocional que se exige do operador do direito, para que sua condição pessoal não interfira negativamente em sua atuação profissional/funcional.

Com efeito, por onde quer se olhe, a conclusão que se tem é de que o processo civil deve, efetivamente, ser visto com outros olhos pelo operador do Direito de Família. A natureza, a relevância e a especialidade das questões tuteladas, autorizam, seguramente, a mitigação dos princípios gerais do processo civil, sempre que houver confronto entre o formalismo, o rigor da norma processual e o direito de natureza pessoal, familiar e social a ser tutelado.

REFERÊNCIAS

CAMBI, Accácio. Jurisprudência predominante, em matéria de família, pesquisada nos julgados das 7ª e 8ª Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Paraná, no período de 01.08.2003 a 01.08.2004. Paraná Judiciário, Curitiba: Imprensa Oficial, v. 54, jul./dez. p. 65-77, 2004.

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo et al. Teoria geral do processo. 6. ed. ampl. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988.

MEDINA, José Miguel Garcia. Código de Processo Civil comentado: com remissões e notas comparativas ao projeto do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: direito de família. 37. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2004.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

[1] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: direito de família. 37. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 1.

[2] CINTRA, Antonio Carlos de Araújo et al. Teoria geral do processo. 6. ed. ampl. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 15.

[3] “A Constituição de 1988 erigiu a princípio constitucional a indispensabilidade e a imunidade do advogado, prescrevendo em seu art. 133: ‘O advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 437.

[4] CAMBI, Accácio. Jurisprudência predominante, em matéria de família, pesquisada nos julgados das 7ª e 8ª Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Paraná, no período de 01.08.2003 a 01.08.2004. Paraná Judiciário, Curitiba: Imprensa Oficial, v. 54, jul./dez. p. 65-77, 2004.

[5] A propósito, em rápida pesquisa na internet, foram encontrados dois julgados do Superior Tribunal de Justiça que também revelam quebra de paradigmas processuais, quais sejam: STJ – REsp 1046130/MG, em que foi reconhecida legitimidade da mãe para pleitear em nome próprio alimentos aos filhos menores em ação de reconhecimento e dissolução de união estável; STJ – AgRg-RMS 30.752/SP, que refere a atribuição de efeitos de decisão cautelar de separação de corpos após a extinção do processo. Novamente no Tribunal de Justiça do Paraná, encontrou-se hipótese de concessão de cautelar de separação de corpos após o divórcio (TJPR – AI 0650291-8). Há, até mesmo, enunciados do Tribunal de Justiça de São Paulo para as Varas da Família, a respeito de medidas cautelares típicas, dando conta de que os efeitos da liminar não cessam se não foi ajuizada ação principal no prazo de 30 dias, nos termos do que prescreve o art. 808, I, do CPC (En. 38: A liminar concedida em ação cautelar de separação de corpos não se submete à perda de eficácia prevista no art. 808, I, do Código de Processo Civil; En. 36: A liminar concedida em ação cautelar de busca e apreensão de menor não se submete à perda de eficácia prevista no art. 808, I, do Código de Processo Civil).

[6] Inclusive é o novo rito do procedimento comum, no novo Código de Processo Civil, Lei nº 13.105. O juiz, ao receber a inicial, designará audiência de conciliação (art. 334), sendo que na hipótese de não haver composição amigável o réu poderá oferecer contestação no prazo de quinze dias, contados da audiência (art. 335). (MEDINA, José Miguel Garcia. Código de Processo Civil comentado: com remissões e notas comparativas ao projeto do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011).