A METAMORFOSE DO RECURSO ESPECIAL
Daniel Ustárroz
No sistema de justiça civil brasileiro, uma das grandes mudanças realizadas pela Constituição Federal de 1988 foi à criação do Superior Tribunal de Justiça. Imaginava-se que a atuação do STJ, com o objetivo de uniformizar a interpretação do direito infraconstitucional, também iria viabilizar a consolidação do Supremo Tribunal Federal no controle de constitucionalidade.
A instalação do STJ, composto por “no mínimo” 33 ministros, gerou grande expectativa na comunidade jurídica. Na década de 1990, quando recém iniciavam os seus trabalhos, observava-se uma grande preocupação dos advogados em conhecer o seu funcionamento e, principalmente, em identificar formas de acessar a Corte.
Não raro, professores nas universidades afirmavam que o Direito seria mais democrático se todas as partes pudessem acessar as Cortes de Brasília. Esse seria um reflexo da “Constituição Cidadã”.
O STJ atua, no plano jurisdicional, por três órgãos: a Corte Especial, as Seções e as Turmas. Advogados que militam no direito público costumam estar atentos à realidade da 1ª Seção, composta pela 1ª e 2ª Turmas. Colegas que atuam no direito privado observam o comportamento da 2ª Seção, cujos membros são oriundos da 3ª e da 4ª Turmas, ao passo que os procuradores que se dedicam ao direito penal acompanham a 3ª Seção, composta pela 5ª e 6ª Turmas. Em casos ainda mais relevantes, a Corte Especial é acionada para superar divergência entre distintas turmas e seções.
Dentro do amplo leque de competências do STJ, previsto no art. 105 do texto constitucional, sobressai o papel do recurso especial na atuação da Corte.
Especialmente nesta última década, quiçá pelo acesso que todos os advogados têm à pesquisa de jurisprudência, observa-se uma mudança no papel desempenhado pelo recurso especial. Antes ele servia apenas às partes envolvidas no caso sub judice. Hoje, ele reflete acórdãos pretéritos e serve de termômetro para casos futuros.
Com efeito, o art. 927 do Código de Processo Civil de 2015 determinou a observância por todos os juízes das pronúncias do STJ, nos julgamentos do incidente de assunção de competência, de recurso especial repetitivo e aos enunciados de súmula. Essa vinculação, esboçada no final da vigência do CPC anterior, gerou consequências práticas importantes.
Por ilustração, os advogados, quando consultados por seus clientes, normalmente recorrem de imediato à pesquisa de jurisprudência e não mais à legislação. Ainda, a maior parte dos colegas se sente mais feliz em encontrar uma ementa, um acórdão, que sirva de farol para a decisão do seu caso concreto do que um artigo de lei.
Nos gabinetes dos tribunais, a situação é semelhante. Os casos concretos submetidos a julgamento, em geral, têm a solução dada pela proximidade com casos já julgados. Apenas quando não localizados processos semelhantes, costuma ser realizada uma pesquisa aprofundada nas demais fontes do Direito.
Alega-se que o volume de recursos é alto, e a sociedade demanda respostas jurisdicionais céleres.
No caso específico do STJ, esse contexto determinou uma especial preocupação com a instrução e o julgamento dos recursos repetitivos, pois o seu acórdão será seguido pelos tribunais inferiores. Aliás, com o objetivo de racionalizar a prestação jurisdicional, a lei prescreveu que os casos análogos (milhões de processos) aguardem nos tribunais inferiores a elaboração do paradigma. Assim, ao invés de subirem a Brasília, permitirão a retratação das câmaras e turmas da segunda instância, com a uniformização da aplicação do direito.
Essa “nova realidade” dividiu a advocacia. De um lado, encontro colegas satisfeitos pela circunstância de que, nos casos semelhantes, a resposta jurisdicional ficou parecida. Referem que o “sobrestamento” já no primeiro grau propicia economia de energia e tempo.
De outro, converso todas as semanas com amigos que lamentam as soluções encontradas pelo STJ, sem considerar todos os ângulos de análise; afinal, por mais rica que seja a fundamentação do recurso especial afetado, nunca ela será capaz de abranger todas as teses envolvidas. Ademais, não são poucos os advogados que bradam por equívocos dos tribunais inferiores e juízes de primeiro grau na interpretação do alcance do paradigma.
Talvez o fenômeno acima não seja eliminável, pois sempre a parte sucumbente reclamará de sua sorte. Seria importante, contudo, criar mecanismos mais claros para que os Tribunais de Brasília possam identificar e delimitar o alcance dos julgados, a fim de orientar a atuação dos juízes e dos Tribunais.
A histórica “Súmula nº 7/STJ”: “A pretensão de alterar tal entendimento demandaria o revolvimento de matéria fático-probatória dos autos, o que é inviável em sede de recurso especial, conforme dispõe a Súmula nº 7 do STJ” (AgInt-AREsp 1781413/SP, 4ª T., Rel. Min. Raul Araújo, DJe 18.06.2021).
Deficiência de fundamentação: Súmula nº 284/STF: “A falta de indicação, pela parte recorrente, de quais dispositivos legais teriam sido violados pelo acórdão recorrido implica deficiência da fundamentação do recurso especial, incidindo o teor da Súmula nº 284 do STF, por analogia” (AgInt-AREsp 1810465/MG, 4ª T., Rel. Min. Marco Buzzi, DJe 11.06.2021).
Ausência de prequestionamento: “A simples oposição de embargos de declaração, sem que a matéria tenha sido efetivamente discutida e decidida pela Corte a quo, não é suficiente para caracterizar o requisito do prequestionamento. Aplica-se, no ponto, o Enunciado sumular nº 211 do STJ” (AgInt-REsp 1923985/RJ, 3ª T., Rel. Min. Moura Ribeiro, DJe 18.06.2021).
Se tivesse maior espaço, poderia arrolar dezenas de outras orientações que fulminam os recursos. Segundo dados oficiais, o STJ apreciou 495.497 processos em 2020. A imensa maioria não atraiu qualquer interesse da comunidade, nem colaborou para a formação de jurisprudência, pois – repita-se – versou apenas sobre a ausência de pressupostos de admissibilidade. Por exemplo, a Corte informa que 92{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} dos agravos não foram conhecidos ou providos, por exemplo.
Não me parece positivo para as pessoas um sistema processual tão complexo. Tampouco é interessante um sistema de administração de justiça que permita, em tese, qualquer caso ascender até Brasília. Considero provável que essa realidade seja modificada, especialmente a partir da percepção dos operadores mais jovens no sentido de que resolver o caso não é uma atribuição exclusiva dos juízes (menos ainda dos ministros) e que – na medida do possível – o diálogo entre os operadores facilita a composição, em qualquer fase do processo, ou antes, dele.
Se essa percepção se confirmar, observaremos, nos próximos anos, uma redução no volume de recursos julgados pelo STJ e, quem sabe, dedicaremos maior atenção aos julgamentos mais importantes, isto é, aqueles que impactam a vida das pessoas e dos operadores.