LOCAÇÕES POR AIRBNB EM CONDOMÍNIOS RESIDENCIAIS
Thyago Garcia
Introdução
A definição mais comum para “BnB” é “Bed And Breakfast“, que em tradução literal para o português significa “Cama e Café-da-manhã”. É, em resumo, um formato de alojamento cujos recursos são focados na experiência do pernoite. Oferecem um bom lugar para dormir e um café da manhã satisfatório, sem oferecer os demais recursos para entreter seus hospedes durantes o restante do dia, como normalmente oferecido em hotéis convencionais.
Desde 2008, o termo BnB tornou-se largamente reconhecido como parte do nome “Airbnb”, uma empresa estadunidense que permite que pessoas comuns possam oferecer online, acomodações temporárias para viajantes e turistas. O aplicativo abrange, atualmente, mais de 500 mil anúncios em mais de 35.000 cidades, espalhadas por 192 países no mundo. Desde sua criação, em novembro de 2008, mais de 25 milhões de reservas foram agendadas via Airbnb.
Contudo, especialmente em tempos de pandemia, centenas de cidades implementaram ou reforçaram restrições pré-existentes para locações de curto prazo. Cidades como Barcelona, Amsterdã, Paris e Veneza, na Europa, Washington D.C., Los Angeles e Santa Monica, nos Estados Unidos, e a imensa maioria das cidades no Japão, possuem limitações quanto ao tempo que um imóvel residencial pode ser locado no sistema “BnB”, bem como obrigam os anfitriões a formalizarem cadastros na prefeitura local, e que mantenham níveis sanitários equiparáveis a hotéis, sob pena de multa e embargo da atividade.
No Brasil ainda não há legislação que regulamente o Airbnb. No entanto, em abril de 2021, como se viu estampado nos principais jornais, revistas e sites jurídicos do Brasil, o egrégio Superior Tribunal de Justiça (STJ) teria, por ocasião do julgamento do RE 1.819.075-RS, decidido que os condomínios poderiam proibir as locações efetuadas por meio de aplicativos.
“Não obstante os argumentos trazidos na defesa, tenho que o negócio jurídico proposto pela requerida Mônica a terceiros não se amolda à locação residencial (art. 47 da Lei de Locações) ou mesmo à locação por temporada (art. 48 e ss, do mesmo diploma legal retro mencionado). A um, porque esta última ‘estabelece prazo máximo de 90 dias; a dois, porque o oferecimento de serviços não está incluído no rol de direitos e deveres de locador e locatário (arts. 22 a 26 da Lei 8.245/91).
Nesse passo, respeitado posicionamento em contrário, entendo que a relação jurídica analisada é atípica, assemelhando-se ao contrato de hospedagem […].
[…]
Assim, assiste razão à parte autora quanto à descaracterização da finalidade exclusivamente residencial das unidades condominiais, porquanto o negócio proposto pela ré Mônica assemelha-se à atividade de hospedagem, a qual reflete, inclusive, na seara administrativa e tributária, podendo ser caracterizada como comercial.”
Encerrou o julgado com uma importante observação:
“[…] Importante, aqui, esclarecer que não há óbice à locação dos imóveis de propriedade da ré, dado o exercício do direito de propriedade. O que não pode ser admitido, em face da expressa disposição da Convenção Condominial (art. 4º – fl. 14), é a alteração do contrato típico em comento, a qual restou evidenciada pela prova coligida aos autos. Dito de outro modo, a abstenção que ora se reconhece não atinge o direito de disposição do patrimônio da parte ré à locação disciplinada pela Lei 8.245/91, dentro dos parâmetros ali estabelecidos.”
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, por sua vez, confirmando integralmente a r. decisão de primeiro grau, decidiu nos seguintes termos:
Embora peculiar a situação narrada nos autos, o importante para a solução da lide é que a própria demandada MÔNICA reconhece ter utilizado as unidades condominiais de que é proprietária como se um “hostel” fosse.
Ademais, admitiu fornecer serviço de lavanderia – lavava as roupas em sua residência e entregava posteriormente -, sendo que também efetivou modificações estruturais no apartamento (fl. 61 e 64) para poder alojar um número maior de pessoas, além de disponibilizar serviço de conexão à internet como forma de “agregar valor” a sua atividade.
Note-se que não há vinculação entre os “clientes” dos réus.
Ora, a ausência de vinculação entre os “clientes”, a reforma do apartamento no sentido criar novos quartos e acomodar mais pessoas e o fornecimento de serviços é suficiente para caracterizar contrato de hospedagem, afastando a incidência de contrato de locação.
Não bastasse, a alta rotatividade de pessoas também é indício da alegada hospedagem, o que não é permitido pela convenção do condomínio.
Similarmente ao Magistrado de piso, aquela colenda Câmara assim obtemperou:
“[…] Note-se que não se está negando à demandada a livre disposição de suas unidades, art. 1.335 do CC e art. 19 da Lei Federal 4.591/64, que dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias.
Porém, não há como ignorar que a disponibilização temporária e onerosa das unidades para terceiros, da forma como vinha sendo feita pela demandante – com o fornecimento de serviços e alta rotatividade de pessoas – é capaz de configurar a existência de contrato atípico de hospedagem, e não um contrato de locação, ainda que por temporada.
Tal circunstância, repita-se, implica afronta à norma do condomínio quanto à destinação exclusivamente residencial das unidades.”
Assim, nos termos do apurado pelas instâncias ordinárias, tem-se que os condôminos, proprietários de duas unidades imobiliárias no condomínio edilício COORIGHA, estariam promovendo, de modo informal e simplificado, a locação parcial desses dois apartamentos, alugando separadamente, por curtas temporadas, quartos ali existentes para diferentes pessoas sem vínculo entre si, em geral jovens em busca de hospedagem, atraídos pelos baixos preços cobrados.
O ministro Raul Araújo, da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o caso, aproveitou para relembrar as conceituações acerca de domicílio, residência, morada e hospedagem, de modo a que se possa concluir se as contratações impugnadas pelo promovente, ora recorrido, nos moldes em que realizadas pelos recorrentes, segundo reconhecido pelas instâncias ordinárias, desvirtuavam ou não a finalidade residencial prevista para o Condomínio.
Segundo o ínclito ministro, os conceitos de residência e de domicílio se relacionam, estando, ambos, em maior ou menor grau, ligados às concepções de permanência habitual e de definitividade anímica, afastando-se das ideias de eventualidade ou transitoriedade.
Citando FLÁVIO TARTUCE, pontuou que o domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo. Residência, por sua vez, é o lugar de morada normal, o local em que a pessoa estabelece uma habitação. Não é qualquer residência que faz o domicílio, porém a residência definitiva.
É permitido que a pessoa natural, tendo diversas residências onde alternadamente viva, considerarem-se todas seu domicílio. “Viver” é estabelecer relações sociais, vínculos afetivos, vínculos de trabalho naquela residência. É tornar aquela residência o seu lar.
Já na moradia, há uma mera situação de fato, tratando-se do local onde a pessoa é encontrada ocasionalmente, não havendo ânimo de permanência. Os conceitos de domicílio e residência (CC/2002, arts. 70 a 78), centrados na ideia de permanência e habitualidade, não se coadunam com as características de transitoriedade, eventualidade e temporariedade efêmera, presentes na hospedagem, que por sua vez destina-se à habitação temporária (Lei do Inquilinato Comentada / doutrina e pratica: Sílvio de Salvo Venosa. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2020 – p. 33), o que, portanto, se afasta do conceito de residência previsto na Lei civil.
Não se desconhece, por certo, a possibilidade, sempre aventada pela doutrina, de que a hospedagem possa realizar-se, também, de forma mais permanente, a ponto de poder constituir, eventualmente, residência ou domicílio do hóspede, conforme muito bem lembrado pelo grande jurista PONTES DE MIRANDA:
“A hospedaria pode ser a residência ou o domicílio do hóspede. O hóspede de passagem, que permanece alguns dias no hotel como poderia ter preferido outro, ou que nêle está porque não encontrou outro, não reside nêle. Mora, não reside. (Tomo I, § 73, 2,; cf. §§ 71, 72 e 73, 1). A morada é fáctica; a residência é ato-fato jurídico (Tomo II, § 159, in fine). A constituição de domicílio é ato jurídico stricto sensu. São fatos, êsses, dignos de tôda a atenção. O que só se pode passar no domicílio, e não na residência, ou na morada, somente se tem por válido ou eficaz se no domicilio foi feito. […]
Pode-se somente morar, pode-se residir e pode-se ter domicílio no hotel, ou na estalagem, ou no albergue, ou na casa de pensão, ou no pouso.” (Direito das obrigações: contrato de seguro (continuação), seguro… /Pontes de Miranda; atualizado por Bruno Miragem. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. – (coleção Tratado de Direito Privado: parte especial; 46 – p. 379)
Não é essa, contudo, a hipótese que foi debatida nos autos.
Com efeito, o que se discute no caso é justamente o caráter efêmero e transitório das hospedagens realizadas pelos recorrentes, sendo certo que a queixa do Condomínio se refere expressamente à “alta rotatividade de pessoas” , na prática frequente e continuada de, mediante remuneração, admitirem e acolherem terceiros, estranhos entre si, em cômodos existentes nos apartamentos, por curtos períodos de tempo, com considerável rotatividade de ocupantes, ameaçando potencialmente a segurança das moradias situadas no edifício residencial.
Pontuou o ministro do STJ que a locação por temporada não prevê aluguel informal e fracionado, de quartos existentes num imóvel, para hospedagem de distintas pessoas sem vínculo entre si, mas sim a locação plena e formalizada de imóvel adequado a servir de residência temporária para determinado locatário e, por óbvio, seus familiares ou amigos, por prazo não superior a noventa dias.
Assim, concluiu que se mostrava correto o entendimento das instâncias ordinárias de que os negócios jurídicos realizados pelos recorrentes não se enquadram nas hipóteses de locação previstas na Lei 8.245/91, configurando, na prática, contrato atípico de hospedagem.
Com efeito, a própria Lei do Inquilinato, Lei 8.245/91, ao delimitar seu campo de aplicação, exclui expressamente de seu alcance algumas espécies de locação, nos seguintes termos:
Art. 1º A locação de imóvel urbano regula-se pelo disposto nesta lei:
Parágrafo único. Continuam regulados pelo Código Civil e pelas leis especiais:
a) as locações:
de imóveis de propriedade da União, dos Estados e dos Municípios, de suas autarquias e fundações públicas;
de vagas autônomas de garagem ou de espaços para estacionamento de veículos;
de espaços destinados à publicidade;
em apart-hotéis, hotéis-residência ou equiparados, assim considerados aqueles que prestam serviços regulares a seus usuários e como tais sejam autorizados a funcionar;
Por sua vez, a Lei 11.771/2008, ao dispor sobre a Política Nacional do Turismo e outras disposições correlatas, refere ao turismo e à atividade de hospedagem, nos seguintes termos:
Art. 23. Consideram-se meios de hospedagem os empreendimentos ou estabelecimentos, independentemente de sua forma de constituição, destinados a prestar serviços de alojamento temporário, ofertados em unidades de freqüência individual e de uso exclusivo do hóspede, bem como outros serviços necessários aos usuários, denominados de serviços de hospedagem, mediante adoção de instrumento contratual, tácito ou expresso, e cobrança de diária.
1º Os empreendimentos ou estabelecimentos de hospedagem que explorem ou administrem, em condomínios residenciais, a prestação de serviços de hospedagem em unidades mobiliadas e equipadas, bem como outros serviços oferecidos a hóspedes, estão sujeitos ao cadastro de que trata esta Lei e ao seu regulamento.
2º Considera-se prestação de serviços de hospedagem em tempo compartilhado a administração de intercâmbio, entendida como organização e permuta de períodos de ocupação entre cessionários de unidades habitacionais de distintos meios de hospedagem.
3º Não descaracteriza a prestação de serviços de hospedagem a divisão do empreendimento em unidades hoteleiras, assim entendida a atribuição de natureza jurídica autônoma às unidades habitacionais que o compõem, sob titularidade de diversas pessoas, desde que sua destinação funcional seja apenas e exclusivamente a de meio de hospedagem.
4º Entende-se por diária o preço de hospedagem correspondente à utilização da unidade habitacional e dos serviços incluídos, no período de 24 (vinte e quatro) horas, compreendido nos horários fixados para entrada e saída de hóspedes.
Assim, o primeiro ponto importante da referida decisão é que no caso prático, restou definido que a condômina não estava locando sua unidade por temporada, mas sim realizando serviços atípicos de hospedagem.
Passou-se assim ao examine se o contrato atípico de hospedagem caracterizaria destinação comercial ou não residencial aos imóveis, de modo a contrariar a convenção condominial que prevê destinação residencial para os apartamentos.
Segundo o ministro, o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor livremente da coisa, desde que em consonância com suas finalidades econômicas e sociais, conforme dispõe do art. 1.228 do Código Civil de 2002.
No caso específico de unidade condominial, devem ser observadas as regras dos arts. 1.332 a 1.336 do CC/2002, que, por um lado, reconhecem ao proprietário o direito de usar, fruir e dispor livremente de sua unidade e, de outro, impõem o dever de observar sua destinação e usá-la de maneira não abusiva, com respeito à Convenção Condominial.
Em outras palavras, o proprietário de imóvel em condomínio edilício pode, em princípio, usar e fruir de sua unidade da forma como melhor lhe aprouver, desde que em consonância com a legislação e as regras e convenções condominiais.
São de aplicação geral a todos os proprietários de imóveis, de quaisquer natureza, aquelas limitações inerentes aos direitos de vizinhança, que caracterizem uso anormal da propriedade, como dispõe o Código Civil em seus:
Art. 1.277. O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha.
Parágrafo único. Proíbem-se as interferências considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança.
Art. 1.278. O direito a que se refere o artigo antecedente não prevalece quando as interferências forem justificadas por interesse público, caso em que o proprietário ou o possuidor, causador delas, pagará ao vizinho indenização cabal.
Art. 1.279. Ainda que por decisão judicial devam ser toleradas as interferências, poderá o vizinho exigir a sua redução, ou eliminação, quando estas se tornarem possíveis.
Atento a esses aspectos inerentes, o Código Civil, nos artigos transcritos, concede autonomia e força normativa à convenção de condomínio regularmente aprovada e registrada no Cartório de Registro de Imóveis competente.
Portanto, existindo na Convenção de Condomínio regra impondo destinação residencial, mostra-se indevido o uso das unidades particulares que, por sua natureza, implique o desvirtuamento daquela finalidade residencial (CC/2002, arts. 1.332, III, e 1.336, IV).
Nessa linha de intelecção, foi julgada procedente a pretensão do condomínio edilício Autor de, com base na Convenção condominial, vedar o uso das unidades condominiais para fins de hospedagem remunerada, com múltipla e concomitante locação de aposentos existentes nos apartamentos, a diferentes pessoas, por curta temporada, pois a forma de utilização do imóvel pretendida pelos condôminos altera a finalidade residencial do Edifício, exigindo relevantes adaptações na estrutura de controle de entrada e saída de pessoas e veículos do prédio, sob pena de ensejar potencial ameaça à segurança e ao sossego de todos.
Apenas para ilustrar e facilitar a compreensão, exemplificou o Ministro:
“[…] o ingresso equivocado de pessoas, devido a compreensível engano do porteiro pela dificuldade de controle de movimentação de entrada e saída, disponibiliza para aproveitadores oportunidade para arrombamento fácil de apartamentos fechados em razão de viagem de condômino ou para outras formas de roubo, até mais violentas. Sem falar em outros crimes.”
Apoiaram o voto do Min. Raul Araújo a Sr.ª Min. Maria Isabel Gallotti e o Sr. Min. Antonio Carlos Ferreira, sendo vencido o relator, Min. Ministro Raul Araújo.
Conclusão
No tratamento da hipótese narrada, não só o relator classificou essa locação como um “contrato de hospedagem atípico”, como o ministro Antônio Carlos Ferreira fez questão de mencionar em seu voto que: “a tese e a antítese sustentadas pelas partes litigantes tratam, exclusivamente, da qualificação dos serviços fornecidos pela recorrente, discussão que não sofre influência pela forma com que são oferecidos ou contratados, se por meio de aplicativo ou mesmo por qualquer outra modalidade (imobiliária, anúncio em jornais, panfletagem etc.).”
Verificou-se, no caso prático, mau uso da propriedade privada, conflitando com a convenção daquele edifício e ocasionando desconforto aos demais condôminos, não guardando, todavia, qualquer relação com o meio utilizado (aplicativo), tanto que o Airbnb sequer era parte original do processo.
Repita-se: a questão enfrentada não é a legalidade ou não das locações por aplicativo, porque a forma utilizada para firmar uma locação, seja online ou presencial, não desvirtua a relação jurídica. Também não foi debatida a legalidade das hospedagens atípicas, primeiro porque a Lei expressamente as autoriza, e segundo, porque conforme pontuado pela Suprema Corte em ocasião anterior: “nós temos de aceitar como uma inexorabilidade do progresso social o fato de que há novas tecnologias disputando mercado com as formas de tradicionais de oferecimento de determinados serviços. (…) O desafio do Estado está em como acomodar a inovação com os mercados pré-existentes, e penso que a proibição da atividade na tentativa de contenção do processo de mudança, evidentemente, não é o caminho, até porque acho que seria como tentar aparar vento com as mãos.” (Min. Luis Roberto Barroso, RE 1.054.110/SP).