LIVRE EXECUÇÃO PROPOSTA PELO CREDOR FIDUCIÁRIO E SUJEIÇÃO DO CRÉDITO À RECUPERAÇÃO JUDICIAL
Isabela Sousa Bestetti
A ação do credor fiduciário de ingressar com a livre execução de bens da recuperanda em detrimento da excussão da garantia pode impactar diretamente na sujeição do seu crédito à recuperação judicial.
A alienação fiduciária é espécie de garantia prestada com a finalidade de resguardar o credor em caso de inadimplemento. Todavia, há a possibilidade do credor se valer de outros meios para satisfação da obrigação, ignorando a garantia prestada e executando o negócio jurídico em sua totalidade. Neste caso, ele pode se valer de todos os meios previstos em leis para se excutir bens, tais como arresto e/ou penhora.
Dentro do cenário da recuperação judicial, a lei 11.101/05 em seu art. 49, § 3º tratou expressamente da posição do credor fiduciário. Com exceção à regra geral do caput do art. 49, os créditos com garantia fiduciária não se submetem aos efeitos recuperacionais, ainda que constituídos antes do pedido de recuperação judicial.
O motivo pelo qual tal crédito não se sujeita aos efeitos recuperacionais parece simples: o bem dado em alienação fiduciária está sob a propriedade resolúvel do credor, não sendo mais a devedora em recuperação sua proprietária. Inclusive, a devedora apenas se torna a proprietária plena e única possuidora da coisa ante a quitação da obrigação, caso contrário a propriedade consolida-se em favor do credor.
Entretanto, a problemática que aqui se instaura é que a depender da interpretação que se fizer, acerca da renúncia ou não da garantia fiduciária ante a propositura de livre execução em detrimento da excussão da garantia, a concursalidade ou extraconcursalidade do crédito será diretamente influenciada.
A interpretação de que a propositura de livre execução não implica em renúncia à garantia fiduciária, mas tão somente é um exercício regular de direito do credor encontra robusto respaldo no art. 5º do decreto lei 911/69 e no art. 5º, inciso II, da CF/88.
O art. 5º do decreto que dispõe sobre o instituto da alienação fiduciária determina: “se o credor preferir recorrer à ação executiva, direta ou a convertida na forma do art. 4º, ou, se for o caso ao executivo fiscal, serão penhorados, a critério do autor da ação, bens do devedor quantos bastem para assegurar a execução“.
Dessa maneira, pelo texto legal, fica consignado ao credor optar pela via jurídica da execução direta, mesmo sendo a obrigação garantida fiduciariamente.
A fundamentação constitucional vem através do princípio da legalidade, disposto no art. 5º, inciso II, da CF/88, dado que é assegurado o direito de fazer ou deixar de fazer tudo que não for vedado em virtude de lei.
Nesse caso, entende-se que ao optar pela livre execução está o credor no seu exercício regular de direito, pois não há qualquer vedação legal nesse sentido, podendo este se valer de todos os instrumentos e meios jurídicos para busca de seu direito, utilizando a estratégia que melhor lhe convir.
Como consequência e complementação desses argumentos tem-se a não aplicação da máxima “electa una via, non datur regressus ad alteram“, a qual impõe uma escolha ao interessado quando o sistema jurídico lhe oferte direitos de natureza alternativa.
Sobre isso, leciona Moacyr Amaral Santos[1]:
“Um mesmo conflito de interesses pode admitir mais de um tipo de composição. Isto é, a lei, ao regular um determinado conflito de interesses, poderá dar-lhes diferentes e distintas composições, uma das quais apenas é ou poderá ser suficiente à satisfação do direito subjetivo. Se a lei atribui ao titular da pretensão à faculdade de optar por uma das modalidades de composição, está conferindo-lhe o direito de ajuizar a ação que mais lhe convenha, de ordinário com abandono das outras”
O desembargador Cerqueira Leite, em julgamento do agravo de instrumento 2032861-10.2020.8.26.0000[2] discorreu sobre o tema.
Além desse respaldo legislativo existem os argumentos especiais, que tratam do debate dentro do cenário de recuperação judicial. Por este ângulo, a maior premissa é a de que não se pode cogitar que o credor fiduciário teria por conduta omissiva, qual seja, não excutir a garantia, aderido tacitamente ao quadro geral de credores.
O grande cerne da questão não é a possibilidade de se operar a renúncia como um todo, mas sim a presunção de que estaria o credor renunciando a garantia tacitamente diante da propositura de ação de execução, em detrimento da excussão da garantia fiduciária.
E sobre isso, a vertente que está em análise se pauta no disposto no art. 66-B, §5º, da lei 4.728/65 e no art. 1.436 do CC.
Levando em consideração que o art. 66-B, §5º, da lei 4.728/65 determina que se aplicam à alienação fiduciária o disposto no art. 1.436 do CC, a garantia somente se extingue com a renúncia expressa. Operando-se sua presunção somente nas hipóteses previstas no § 1º do mesmo dispositivo.
Assim sendo, conclui-se que não estando entre elas o caso em análise, quando o credor optar pela livre execução em detrimento da excussão da garantia, não há incidência da renúncia tácita, detendo o credor a sua posição privilegiada descrita no art. 49, § 3º da lei recuperacional.
Diante de tais argumentos conclui-se que este trata-se de um posicionamento extremamente positivista e, pode-se dizer até processualmente e juridicamente mais adequado, uma vez que com base no regramento jurídico e na interpretação normativa entende ser impraticável que se interprete que há abdicação da garantia sem que haja qualquer dispositivo que preveja tal situação.
Todavia, embora essa visão positivista tenha robusta fundamentação, a argumentação de que a livre execução poderá importar na sujeição do crédito aos efeitos recuperacionais é inovadora, possuindo também embasamento expressivo.
O que se alega em primeiro plano é que ao optar o credor pelo caminho da livre execução, todos os bens da recuperanda podem ser afetados, prejudicando a finalidade do processo recuperacional, qual seja o processo de soerguimento.
Por não compor o patrimônio da recuperanda, o bem garantidor não é considerado na apuração do cenário econômico da devedora e, consequentemente, é também desconsiderado como ativo a ser executado pelo credor. Diante disso, a livre execução recai sobre bens livres e desembaraçados que são de propriedade da recuperanda, de forma que o bem dado exclusivamente para salvaguardar a obrigação e que já encontra sob propriedade do credor é desconsiderado.
O desembargador Cerqueira Leite, discorreu sobre o assunto:
“O que a lei garante, portanto, são os direitos de propriedade e os procedimentos da legislação respectiva sobre alienação fiduciária.
A lei não os garante quando o credor fiduciário faz opção pelo procedimento da execução por quantia certa, no qual os bens gravados com a alienação fiduciária não serão penhorados, em se tratando de bens da propriedade resolúvel do exequente, isto é, bens que não estão no domínio da executada em recuperação judicial, e sim excutidos outros bens livres e desembaraçados.
Essa excussão de bens do domínio da recuperanda é que não pode ser admitida, na medida em que é obstáculo à efetiva reorganização da empresa.
A Lei nº. 11.101/05 pretende propiciar à empresa os meios de retornar ao mercado em condições de competitividade, fim alcançável contanto que a sua situação patrimonial seja preservada. O credor fiduciário ou extraconcursal que opta pela execução não pode se valer dessa condição que põe em risco a viabilidade da empresa recuperanda.”
Não se pode deixar observar que recaindo a livre execução sobre todo o patrimônio da devedora, há um prejuízo econômico e jurídico para todos os credores, que serão afetados pelo atingimento do patrimônio da recuperanda.
Aliado a isso, tem-se que a extraconcursalidade do crédito está intrinsecamente relacionada com a excussão do bem dado em fidúcia, pois a exceção prevista não pode ser aplicada irrestritamente. É necessário que o credor mantenha sua posição de
fiduciário promovendo a excussão da garantia para, somente assim, ser reconhecida a extraconcursalidade do crédito.
O desembargador Fortes Barbosa em julgamento do agravo de instrumento 2034109-11.2020.8.26.0000[3] discorreu sobre a questão.
A máxima que se aplica a este posicionamento é a venire contra factum proprium, ou seja, vedação do comportamento contraditório.
A constituição da garantia fiduciária possui finalidade única de salvaguardar o adimplemento da obrigação, gerando expectativas, ante o inadimplemento, de que o comportamento do credor será de excutir especificamente o bem alienado fiduciariamente ou exigir sua execução.
Ao ajuizar ação de execução estaria o credor agindo de forma contraditória ao anteriormente pactuado, sendo passível o entendimento de que houve a violação do art. 422, do CC.
No mais, tem-se que basta a demonstração de vontade do credor de querer satisfazer a obrigação por outros meios para que haja renúncia da garantia fiduciária e consequentemente a sujeição do crédito à recuperação judicial. Essa demonstração de vontade, por assim dizer, é o evidente interesse do credor na satisfação do crédito através de medidas constritivas sobre patrimônio dos executados, desconsiderando as garantias fiduciárias.
O respaldo legislativo para esse fundamento decorre do art. 66-B, §5º, da lei 4.728/65, já mencionado em capítulo anterior, entretanto, neste momento, a interpretação do dispositivo se dá em sentido oposto ao anteriormente explanado.
O art. 66-B, §5º, da lei 4.728/65 dispõe que aplicam-se alienação fiduciária os arts. 1.421, 1.425, 1.426, 1.435 e 1.436 do CC. Embora determine o art. 1.436 do CC que a garantia somente se extingue com a renúncia expressa, o § 1º dispõe que presume-se a renúncia quando o credor anuir à substituição por outra garantia.
Ora, optando o credor pelo ajuizamento da livre execução da dívida, através da constrição de qualquer bem em nome da recuperanda, está este demonstrando seu interesse de satisfação do crédito por outro meio que não a garantia fiduciária, anuindo com a sua substituição por garantia diversa e, consequentemente, enquadrando-se na hipótese de incidência da renúncia tácita prevista no art. 1.436, § 1º do CC.
O desembargador Alexandre Lazzarini, em julgamento do agravo de instrumento 2100475-37.2017.8.26.0000[4] também tratou sobre a temática.
Conforme lecionam Tereza Arruda Alvim Wambier, Maria Lucia Lins Conceição, Leonardo Ferres da Silva Ribeiro e Rogerio Licastro Torres de Melo[5], “o titular de uma garantia real tem direito de preferência sobre o bem dado em garantia, mas pode abrir mão desse direito“.
Assim sendo, a interpretação da renúncia da também possui expressivo embasamento, o que leva a inferir que não há um posicionamento correto a ser seguido. Tampouco há um direito, do credor ou do devedor, que deve sobressair sobre o outro.
Há diversos fatores que precisam ser considerados. O cenário de cada devedora é especial, assim como o porte da recuperação judicial é único, a ação de execução proposta pelo credor possui suas especificidades e a obrigação garantida fiduciariamente é exclusiva, motivo pelo qual a análise casuística é o que determinará a interpretação a ser adotada.
Em razão disso, o que se depreende de imediato é a impossibilidade de que se entenda que a livre execução proposta pelo credor implica, automaticamente, em renúncia a garantia fiduciária. Dessa forma, não se pode admitir que a opção por uma das modalidades de composição implique imediatamente em prejuízo do credor. O ordenamento jurídico, ao garantir ao credor a oportunidade de ajuizar a ação que mais lhe convenha não pode puni-lo por optar por determinada via processual.
Todavia, também não se pode tolerar que as ações do credor prejudiquem a viabilidade da recuperação judicial da devedora. Nesse sentido, a execução geral proposta pelo credor, em detrimento da garantia fiduciária, acende um alerta de que eventualmente haja desinteresse do credor nesse resguardo e, a considerar as circunstâncias, cabível que se entenda pela renúncia deste à garantia fiduciária.
Do mesmo modo que não se pode admitir a renúncia automática da garantia fiduciária apenas pela propositura da ação de execução pelo credor, não se pode admitir que o credor comportasse o melhor de cada uma das vias, qual seja executar todo patrimônio da devedora, sem mencionar a garantia fiduciária e ostentar a posição de credor extraconcursal.
Assim sendo, cabível a interpretação pela renúncia à garantia fiduciária quando o credor alegar ser detentor de crédito extraconcursal, em razão da garantia fiduciária e, concomitantemente, na livre execução perseguir todos os outros bens possíveis da recuperanda, sem fazer qualquer menção a garantia fiduciária.
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GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito das Coisas. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, v.5.
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link: https://www.migalhas.com.br/depeso/367625/livre-execucao-e-sujeicao-do-credito-a-recuperacao-judicial
[1] SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. Vol. 1. 6ª ed. São Paulo; Saraiva. 1978 p. 158.
[2] “Nada é novo nesse terreno. O fato é que o credor fiduciário é titular de créditos de natureza distinta e não renuncia a um deles se no concurso eletivo de ação opta por aquela que, em teoria, assegura brevidade à satisfação de um crédito que extinguirá o outro.
[…]
Ao ajuizar a execução o credor fiduciário não perde a garantia da propriedade fiduciária e essa circunstância não o submete aos efeitos da recuperação judicial da devedora fiduciante; o crédito ainda tem o caráter extraconcursal e legitima o prosseguimento do processo de execução.”
TJSP – AI nº 2032861-10.2020.8.26.0000, Rel. Cerqueira Leite, 12ª Câmara de Direito Privado, julgado em 03/02/2021.
[3] “Houve, concretamente, a opção pelo ajuizamento de ação de execução com, frise-se, total desconsideração da garantia fiduciária e, nestas circunstâncias, esta Câmara Reservada tem esposado o entendimento de que o credor abriu mão da garantia fiduciária, dada a incompatibilidade manifesta de seu comportamento processual, que afasta a aplicação do artigo 49, § 3º da Lei 11.101/2005 e converte o credor fiduciário num credor quirografário, garantido genericamente pelo patrimônio do devedor.
Para satisfação de seu crédito, por meio de execução das garantias fiduciárias, o banco recorrido deveria, necessariamente, se desejasse manter a posição de exclusão do procedimento concursal tendente à redefinição do conteúdo de obrigações privadas, atuar frente aos bens alienados em seu favor. O domínio resolúvel do imóvel ou a cessão fiduciária dos direitos creditórios foram constituídos com o propósito de se salvaguardar a posição do credor e, frente à pendência da recuperação judicial, a cobrança pela via executiva gera uma conjuntura de grave incompatibilidade, em que há, com prejuízo jurídico e econômico efetivo para todos os demais credores, uma atuação sobre o patrimônio geral da devedora, provocando uma automática liberação da garantia.”
TJSP – AI nº 2034109-11.2020.8.26.0000, Rel. Fortes Barbosa, 1ª Câmara Reservada de Direito
Empresarial, julgado em 23/07/2020.
[4] “[…] não é crível que, ao optar pela execução comum da integralidade do débito, com pedidos de atos constritivos sobre os patrimônios dos devedores e coobrigados, em detrimento das garantias fiduciárias, não estivesse plenamente ciente de sua escolha e estratégia processual, com a renúncia da execução das próprias garantias.”
TJSP – AI nº 2100475-37.2017.8.26.0000, Rel. Alexandre Lazzarini, 1ª Câmara Reservada de Direito
Empresarial, julgado em 26/03/2018.
[5] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Primeiros comentários ao novo Código de processo civil: artigo por artigo: de acordo com a Lei 13.256/2016. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. 1.197.