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LEI Nº 14.010, DE 10 DE JUNHO DE 2020: ESTABELECE REGIME JURÍDICO EMERGENCIAL NO PERÍODO DA PANDEMIA DO CORONAVÍRUS (COVID-19)

LEI Nº 14.010, DE 10 DE JUNHO DE 2020: ESTABELECE REGIME JURÍDICO EMERGENCIAL NO PERÍODO DA PANDEMIA DO CORONAVÍRUS (COVID-19)

Luís Rodolfo Cruz e Creuz

Aline Cruvinel

SUMÁRIO: Marco temporal; Prescrição e decadência; Assembleia por meios eletrônicos; Revisão e rescisão de contratos (vetado); Relações de consumo; Locações de imóveis urbanos (vetado); Usucapião; Restrições impostas pelo síndico em condomínios edilícios (vetado); Assembleias em condomínios edilícios; Regime concorrencial; Direito de família e sucessões; Diretrizes de mobilidade urbana (vetado); Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais; Considerações finais.

Após complicada tramitação no Congresso Nacional, foi promulgada e publicada a Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020 (“Lei nº 14.010/2020”), que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (covid-19). O Projeto de Lei nº 1.179/2020 (PL 1.179/2020) foi criado com o auxílio de professores da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo e protocolado no Senado Federal em 31 de março de 2020, pelo Senador Antonio Anastasia (PSD/MG). A lei difere do projeto original, considerando que diversos artigos foram vetados pelo Presidente da República, especialmente com fundamento no interesse público. De toda forma, a Lei nº 14.010/2020 traz alterações temporárias nas relações jurídicas de direito privado em razão da pandemia.

Avaliamos cada tema abordado pelo PL, em confronto com a Lei nº 14.010/2020, ressalvando que, em decorrência dos vetos apresentados, o tema retornará, ainda, ao Congresso Nacional para que os parlamentares deliberem sobre a manutenção ou retirada dos artigos vetados. Independentemente dessa situação, a lei encontra-se em pleno vigor desde a data de publicação.

MARCO TEMPORAL

As normas instituídas pela Lei nº 14.010/2020 terão caráter transitório e emergencial para regulares relações jurídicas de direito privado no período da pandemia do coronavírus (covid-19), considerando-se o marco inicial 20 de março de 2020. Tal marco é a data da publicação do Decreto Legislativo nº 6, como termo inicial dos eventos derivados da pandemia. Importante salientar que a suspensão da aplicação das normas referidas na lei não implica sua revogação ou alteração.

PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA

Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da vigência da lei até 30 de outubro de 2020. A regra aplica-se igualmente à decadência, conforme ressalva prevista no art. 207 do Código Civil. As regras do RJET não atingiram aquelas hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional.

ASSEMBLEIA POR MEIOS ELETRÔNICOS

O art. 4º, que restringia a realização de assembleias, foi vetado pelo Presidente. Contudo, restou publicado o art. 5º, que informa que as assembleias podem ser realizadas por meio eletrônico, independentemente de previsão nos atos constitutivos da pessoa jurídica. O veto, na prática, torna a norma em sintonia com outra que já havia sido publicada pelo Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia (“DREI“), que havia divulgado a Instrução Normativa DREI nº 79/2020 (“IN 79/2020“), que dispõe e regulamenta a participação e votação a distância em reuniões e assembleias de sociedades anônimas fechadas, limitadas e cooperativas.

O artigo vetado determinava que devem ser observadas as restrições à realização de reuniões e assembleias presenciais, observadas as determinações sanitárias das autoridades locais. Na prática, a previsão era redundante, dado que as próprias normas estaduais e municipais já estão realizando tal vedação, além da possibilidade de votação e assembleias a distância mencionada acima.

REVISÃO E RESCISÃO DE CONTRATOS (VETADO)

Foi vetado todo o capítulo da resolução e revisão dos contratos de direito privado.

Foi vetada disposição que determinava que as consequências decorrentes da pandemia do coronavírus (covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil (“Art. 393 O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado“), não terão efeitos jurídicos retroativos (art. 6º). Também foi vetado artigo que determinava que não fosse considerados fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos artigos do Código Civil que estabelecem a revisão do contrato por onerosidade excessiva, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário (art. 7º). E, ainda, estabelecia que o Código do Consumidor – CDC e a Lei de Locações não se submeteriam a essas regras.

As razões do veto apontaram que “o ordenamento jurídico brasileiro já dispõe de mecanismos apropriados para modulação das obrigações contratuais em situação excepcionais, como os institutos da força maior e do caso fortuito e teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva”.

RELAÇÕES DE CONSUMO

Até 30 de outubro de 2020, fica suspensa a aplicação do direito de arrependimento em 7 (sete) dias, estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor, na hipótese de produto ou serviço adquirido por entrega domiciliar (delivery). Ou seja, o direito de arrependimento relativo às compras realizadas de forma não presencial fica suspenso até 30 de outubro de 2020 para casos de delivery de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos.

LOCAÇÕES DE IMÓVEIS URBANOS (VETADO)

O art. 9º previa que não seria concedida liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo até 31 de dezembro de 2020. A regra se aplicaria apenas às ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2020. O veto fundamentou-se na busca pelo equilíbrio entre os direitos do credor e do devedor – dado que haveria despejo no caso de dívida, e não por mera vontade do dono do imóvel. Segundo as razões do veto, a

Propositura legislativa, ao vedar a concessão de liminar nas ações de despejo, contraria o interesse público por suspender um dos instrumentos de coerção ao pagamento das obrigações pactuadas na avença de locação (o despejo), por um prazo substancialmente longo, dando-se, portanto, proteção excessiva ao devedor em detrimento do credor, além de promover o incentivo ao inadimplemento e em desconsideração da realidade de diversos locadores que dependem do recebimento de alugueis como forma complementar ou, até mesmo, exclusiva de renda para o sustento próprio.

Ademais, segundo diversas decisões judiciais já passadas, verificamos que, na prática, está ocorrendo uma busca por composição e acordos, o que certamente é mais produtivo aos envolvidos.

USUCAPIÃO

Suspendem-se os prazos de aquisição para a propriedade imobiliária ou mobiliária, nas diversas espécies de usucapião, até 30 de outubro de 2020. A regra, na prática, sintoniza-se com a anterior, sobre prescrição e decadência.

RESTRIÇÕES IMPOSTAS PELO SÍNDICO EM CONDOMÍNIOS EDILÍCIOS (VETADO)

Tema polêmico e controverso, o art. 11 da norma outorgava poderes excepcionais aos síndicos para restringir o uso de áreas comuns e para proibir festas, inclusive nas áreas de propriedade exclusiva dos condôminos. Vale ressaltar, contudo, que desde o início da quarentena, na prática, observou-se o fechamento de áreas comuns nos edifícios, já realizado pelos síndicos e administradores – medida consensualmente realizada (ainda que com reclamações).

A norma previa que, em caráter emergencial, o síndico poderia (i) restringir a utilização das áreas comuns para evitar a contaminação do coronavírus, respeitado o acesso à propriedade exclusiva, e (ii) restringir ou proibir a realização de reuniões, festividades, uso dos abrigos de veículos por terceiros, inclusive nas áreas de propriedade exclusiva dos condôminos, como medida provisoriamente necessária para evitar a propagação do covid-19, vedada qualquer restrição ao uso exclusivo pelos condôminos e pelo possuidor direto de cada unidade. Havia a ressalva de não aplicação da regra para casos de atendimento médico, obras de natureza estrutural ou a realização de benfeitorias necessárias.

Nas razões do veto, ficou assentado que a proposta legislativa, “ao conceder poderes excepcionais para os síndicos suspenderem o uso de áreas comuns e particulares, retira a autonomia e a necessidade das deliberações por assembleia, em conformidade com seus estatutos, limitando a vontade coletiva dos condôminos“. Sem prejuízo, destacamos que sempre há possibilidade de criação consensual de regras pelos próprios condôminos.

ASSEMBLEIAS EM CONDOMÍNIOS EDILÍCIOS

Assim como autorizado para pessoas jurídicas, aos condomínios edilícios foi autorizado que a assembleia condominial e a respectiva votação podem ocorrer, em caráter emergencial, por meios virtuais, caso em que a manifestação de vontade de cada condômino por esse meio será equiparada, para todos os efeitos jurídicos, à sua assinatura presencial. É obrigatória, sob pena de destituição do síndico, a prestação de contas regular de seus atos de administração.

REGIME CONCORRENCIAL

Além de mudanças temporárias, fica suspensa a aplicação de determinados pontos da Lei Antitruste, até 31 de outubro de 2020, no tocante à caracterização de infração da ordem econômica, relacionada aos seguintes atos: (i) vender mercadoria ou prestar serviços injustificadamente abaixo do preço de custo; (ii) cessar, parcial ou totalmente, as atividades da empresa sem justa causa comprovada. As demais infrações da lei praticadas a partir de 20 de março de 2020 serão apreciadas pelo órgão competente levando em conta o cenário extraordinário decorrente da pandemia do coronavírus. Vale destacar que, no histórico de investigações do Cade, não há referência à condenação por quaisquer dessas duas práticas, em passado recente – especialmente pela dificuldade de demonstração e provas.

DIREITO DE FAMÍLIA E SUCESSÕES

Estabeleceu-se determinação de que a prisão civil por dívida alimentícia deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações. Para a instauração do processo de inventário e de partilha, o prazo do Código de Processo Civil, relativamente às sucessões abertas a partir de 1º de fevereiro de 2020, ficará suspenso a partir da vigência desta lei até 30 de outubro de 2020.

DIRETRIZES DE MOBILIDADE URBANA (VETADO)

Foi vetado todo o capítulo das diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana.

A regra dos arts. 17 e 18 – vetados – afetava especialmente os aplicativos, de entrega e transporte, ao determinar a redução em ao menos 15{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} (quinze por cento) da taxa cobrada dos motoristas pelos aplicativos de transporte e serviços de táxi e de serviços de entrega (delivery), inclusive por aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede, de comidas, alimentos, remédios e congêneres.

Na prática, a norma buscava artificialmente aumentar a remuneração dos motoristas e entregadores e, segundo razões de veto, viola “o princípio constitucional da livre iniciativa” encontrariam o interesse público, pois provocam efeitos nocivos sobre o livre funcionamento dos mercados afetados pelo projeto bem mais duradouros que a vigência da medida gerando, por consequência, impactos nocivos à concorrência, prejudicando os usuários dos serviços de aplicativos, além de produzir incentivos para a prática de condutas colusivas entre empresas, uma vez que estabelece uma forma de restrição ou controle de preços praticados aos usuários.

A pedido do Ministério da Infraestrutura, foi vetado, também, o art. 19, que alocava ao Conselho Nacional de Trânsito (Contran) a possibilidade de editar normas que prevejam medidas excepcionais de flexibilização do cumprimento do disposto no Código de Trânsito sobre transportes. O fundamento do veto está na violação do princípio da interdependência e harmonia entre os poderes, pois estaria o Poder Legislativo determinando que o Executivo exerça função que lhe incumbe (segundo, inclusive, jurisprudência citada).

LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS

A aplicação das sanções administrativas, previstas nos arts. 52, 53 e 54 da LGPD, só passa a valer a partir de agosto de 2021, de modo a não onerar as empresas em face das enormes dificuldades técnicas econômicas advindas da pandemia.

Assim, a LGPD entrará em vigor no dia 3 de maio de 2021 (para tudo o que não for relacionado à Autoridade Nacional ANPD – que já está vigente e para sanções administrativas), e os artigos relacionados à aplicação de multas e sanções administrativas terão vigência a partir de 1º de agosto de 2021. Mas certamente poderá ocorrer alguma modificação a depender do resultado das deliberações e votação da MP 959/2020 (ou mesmo que ela perca validade). Caso venha a “caducar” no dia 28.08.2020, voltará a ter sua vigência definida em 16.08.2020.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não obstante o novo regramento é sempre importante conceituar devidamente os institutos do “caso fortuito” e “força maior“. Segundo pontual referência, caso fortuito é o evento proveniente de ato humano, imprevisível e inevitável, que impede o cumprimento de uma obrigação, como greve, guerra, entre outros. Não se confunde com força maior, que é um evento previsível ou imprevisível, porém inevitável, decorrente das forças da natureza. (Nota Técnica Jurídica nº 2 da FIEMG – 1º de julho de 2020)

Ressaltamos, ainda, a importância e atual necessidade de incentivo e fomento da negociação, acordos específicos e mediação, buscando demonstrar às partes a validade e benefícios da autocomposição para resolução dos conflitos, em função dos impasses surgidos em decorrência da crise da covid-19.