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JUSTA EXPECTATIVA CONTRATUAL E PERDA DA CONFIANCA NO CUMPRIMENTO DOS CONTRATOS IMOBILIÁRIOS

JUSTA EXPECTATIVA CONTRATUAL E PERDA DA CONFIANCA NO CUMPRIMENTO DOS CONTRATOS IMOBILIÁRIOS

Paulo Roberto Athie Piccelli

 

Nos compromissos de compra e venda de imóveis, a confiança não se limita à entrega da unidade ou ao pagamento do preço. O consumidor, na condição de compromissário comprador, deposita legítima expectativa de que a incorporadora — compromissária vendedora — cumprirá não apenas a prestação principal, mas também os deveres anexos de cooperação, lealdade e informação, inerentes à boa-fé objetiva [1].

Quando tais deveres são violados — seja pela omissão de prazos, pela ausência de atos de execução do empreendimento ou por condutas contrárias ao cumprimento da obrigação — a expectativa do adquirente é frustrada. Nesse momento, rompe-se a confiança [2]: não apenas no cumprimento da prestação em si, mas na própria seriedade da vendedora. A frustração da expectativa e o abalo da confiança tornam-se, assim, elementos centrais na análise do inadimplemento contratual.

Essa lógica reflete um princípio que atravessa séculos: da fides romana à treue medieval, a palavra empenhada continua a ser o alicerce das relações negociais, especialmente nas operações imobiliárias, em que o consumidor compromissário aposta sua confiança no projeto e na incorporadora que o promete.

Tanto nas negociações preliminares quanto após a celebração do contrato, é possível que uma das partes adote postura desleal, buscando apenas o próprio interesse e causando prejuízos ao outro contratante [3]. O depósito de confiança é, aqui, o eixo central: o compromissário comprador, ao assumir o pagamento das parcelas, acredita que o passo seguinte será a escritura definitiva. A vendedora, por sua vez, confia que o adquirente honrará o preço ajustado [4].

Essa confiança recíproca é tutelada pelo direito porque se ancora em expectativas legítimas, racionais e objetivamente compreensíveis. A boa-fé, portanto, não protege esperanças vagas ou ilusórias, mas apenas expectativas justificadas pelo vínculo obrigacional. É nesse equilíbrio que reside a verdadeira segurança das relações contratuais.

As partes, desde a negociação, têm o dever de não violar expectativas recíprocas legitimamente criadas pelos seus próprios atos. A expectativa será justa ou não. Essa “justiça”, no entanto, só existe quando os elementos que acompanham as declarações comprovam fundadas razões para que a parte atingida acreditasse na solidez das intenções da parte adversa [5].

Deveres laterais de conduta

Imagine-se a hipótese em que a incorporadora, compromissária vendedora, desde o início sabe que não conseguirá cumprir o prazo de entrega, mas ainda assim assegura ao compromissário comprador que honrará o contrato. Embora a prestação seja objetivamente possível e ainda útil, a violação da confiança pode levá-lo a resolver o negócio, pois não lhe convém manter o patrimônio imobilizado nas mãos de quem rompeu a lealdade.

Nem toda expectativa, contudo, será juridicamente legítima. É indispensável analisar o caso concreto e suas circunstâncias, desde a fase pré-contratual, para diferenciar esperanças meramente subjetivas da legítima expectativa tutelada pelo direito. Como observou Ruy Rosado de Aguiar Júnior, não se trata dos desejos do contratante, mas da expectativa fundada em dados objetivos fornecidos pelo contrato [6].

Essa legítima expectativa nasce da aparência de seriedade, firmeza e comprometimento de uma das partes quanto à celebração ou ao cumprimento do contrato. Quando o rompimento é abrupto, frustra-se a expectativa racionalmente cultivada pelo outro contratante, gerando consequências jurídicas relevantes.

Como ensina Karl Larenz, a relação obrigacional não se limita à entrega do bem ou ao pagamento do preço. Ela abrange também deveres laterais de conduta — lealdade, informação, cooperação — cuja violação pode representar verdadeira quebra da confiança depositada, abalando a própria essência do vínculo contratual [7].

O contrato de compra e venda gera direito pessoal entre as partes, mas não se reduz a preço e registro, trata-se de relação pautada por critérios de cooperação [8]. Isso significa que, além da prestação central, existem deveres mútuos: ao vendedor, cuidar do bem até a entrega e informar riscos relevantes; ao comprador, comunicar alterações de sua condição financeira ou providenciar documentos para financiamento.

O cumprimento contratual, desde a formação até a execução, é um processo de colaboração. Envolve prestações principais, mas também interesses de proteção, expectativas legítimas e deveres de cooperação que instrumentalizam a relação.

Os deveres laterais dizem respeito não ao que prestar, mas a como prestar. São eles que asseguram lealdade, cooperação e informação para que o contrato alcance plenamente sua função [9]. Judith Martins-Costa reforça a distinção entre deveres primários, secundários e anexos, destacando que é nesses últimos que a boa-fé se concretiza [10].

Esses deveres podem impor condutas positivas, como informar, ou negativas, como não frustrar injustificadamente a confiança gerada [11]. Para António Menezes Cordeiro, sua função é proteger as partes e assegurar a efetividade do contrato. A violação desses deveres, portanto, gera frustração da legítima expectativa e compromete toda a relação obrigacional [12].

No mercado imobiliário, isso é evidente. O compromissário comprador deve declarar corretamente sua condição financeira, sob pena de frustrar a expectativa empenhada pela incorporadora. Já a compromissária vendedora deve informar atrasos ou riscos que possam comprometer a entrega da unidade. Quando omissões ocorrem, a confiança se rompe e as consequências vão da indenização à resolução do contrato, inclusive por inadimplemento antecipado, como no caso de obras paralisadas onde o adquirente não tem notícia de evolução da incorporação.

Verdadeiro ativo

A título ilustrativo, o Tribunal de Justiça de São Paulo enfrentou situação semelhante ao julgar a Apelação n. 1011552-48.2019.8.26.0011 [13]. Nesse caso, o compromissário comprador havia firmado contrato com previsão de entrega em 1/1/2020, acrescido do prazo de tolerância de 180 dias. Antes mesmo do vencimento, em setembro de 2019, a construtora notificou o adquirente informando novo cronograma: a emissão do habite-se passaria para dezembro de 2020.

O comprador, não anuindo à alteração, propôs ação de resolução por inadimplemento antecipado, fundamentando-se na declaração de não cumprimento da construtora. Esta, em sua defesa, alegou que o compromissário não poderia reclamar, pois havia deixado de pagar parcelas do contrato.

O relator, desembargador Francisco Loureiro [14], manteve a sentença de primeira instância e reconheceu o inadimplemento da construtora [15], determinando a devolução integral dos valores pagos. Amparado em Ruy Rosado de Aguiar Júnior [16], aplicou a teoria do inadimplemento antecipado, entendendo que a declaração de alteração do prazo configurava quebra da confiança. Destacou, ainda, que o compromissário comprador [17] pode suspender o pagamento quando houver fundado receio de não receber a unidade, aplicando-se, nesse ponto, a exceção do contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus[18].

Novamente, vê-se que o elemento decisivo foi a perda da confiança: embora a construtora não tenha declarado abertamente que não cumpriria, a simples dilação do prazo representou violação da legítima expectativa e fundamento suficiente para a resolução do contrato.

A quebra da confiança atinge até a função social do contrato, pois não há valor social em um vínculo destituído de fidúcia [19]. Ruy Rosado de Aguiar Júnior acrescenta que a quebra antecipada pode decorrer de ações — como vender algo que não poderá ser entregue — ou de omissões, como a ausência de medidas indispensáveis ao cumprimento [20].

Em última análise, a confiança é o verdadeiro ativo que sustenta os contratos. Quando ela se rompe, não se perde apenas a expectativa de uma prestação, mas o próprio valor social do negócio jurídico.

O contrato é muito mais que um papel assinado: é uma aposta recíproca de confiança. No compromisso de compra e venda, o bem mais valioso não é o imóvel em si, mas a palavra empenhada que, quando se quebra, não há cláusula que a substitua — e é o Direito que deve intervir para restaurar o equilíbrio e proteger a confiança que move o mercado.

[1] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para sua aplicação. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 86.

[2] CARDOSO, Luiz Philipe Tavares de Azevedo. Inadimplemento antecipado do contrato no direito civil brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2015, p.115.

[3] ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 2019, p. 106.

[4] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para sua aplicação. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 442.

[5] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para sua aplicação. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2018p. 442.

[6] AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. 2. ed. Rio de Janeiro: AIDE, 2004, p. 134.

[7]LARENZ, Karl. Derecho de oblizaciones. t. I. Trad. espanhola de Jaime Santos Briz. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1958, p. 37.

[8] SILVA, Jorge Cesar Ferreira da. Inadimplemento das obrigações. In: REALE, Miguel; MARTINS-COSTA, Judith (coord.). Biblioteca Estudos de Direito Civil – estudos em homenagem a Miguel Reale, v. VII. São Paulo: RT, 2006, p. 31.

[9] COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das obrigações. 12. ed. Coimbra: Almedina, 2018, p. 103.

[10] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para sua aplicação. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 241.

[11]TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos do direito civil: contratos. v. 3. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 49.

[12] MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de direito civil. t. IX. Direito das obrigações: cumprimento e não-cumprimento, transmissão, modificação e extinção. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2017, p. 72.

[13] COMPROMISSO DE VENDA E COMPRA. Pedido de resolução formulado pelo promissário comprador. Envio de notificação pela construtora ao autor informando a dilação do prazo previsto em contrato de entrega da unidade habitacional adquirida. Inadimplemento antecipado do contrato pela construtora. Suspensão do pagamento do preço pelo autor justificada, diante da informação expressa de que a obra não seria concluída no prazo previsto. Aplicabilidade da exceptio non adimpleti contractus. Efeito ex tunc da sentença resolutória. Restituição atualizada da totalidade das parcelas pagas. Impossibilidade de retenção de qualquer percentual do preço recebido pela requerida, devido ao fato da extinção do contrato ser imputável à promitente vendedora. Juros de mora a contar da citação, por se tratar de indenização por mora imputável à construtora, e não de resolução por fato imputável ao promissário comprador. Sentença mantida. Recurso improvido. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação Cível 1011552-48.2019.8.26.0011, Rel. Francisco Loureiro, 1ª Câmara de Direito Privado, Foro Regional XI Pinheiros, 4ª Vara Cível, j. 24-06-2020, Registro: 24-06-2020.

[14] Francisco Eduardo Loureiro já tratou sobre a resolução da promessa fundamentada no inadimplemento antecipado, em obra sobre a responsabilidade civil do compromisso de venda e compra. Questão ligada à entrega da posse do imóvel, interessante e atual, a ser abordada como pressuposto da resolução, é a da quebra antecipada do contrato. Há situações nas quais se deduz, conclusivamente, que o contrato não será cumprido, de forma que não seria razoável aguardar o vencimento da prestação, ou obrigar o contratante fiel a cumprir, desde logo, a prestação correspectiva. Não há, propriamente, quebra da prestação principal, ainda não vencida, mas quebra da confiança no cumprimento futuro, pautada em elementos objetivos e razoáveis. Admite-se, nestes casos, resolução do contrato, desde que logo. Tomem-se como exemplos casos recentes em que se contratou a aquisição futura de apartamento, a ser construído, mediante pagamento parcelado.Aproximando-se a data da entrega da unidade, sem que nem as fundações do edifício estivessem concluídas, razoável supor que a unidade não seria entregue na data aprazada, ou próxima. Viável a resolução, abrindo desde logo ao adquirente a possibilidade de reaver os valores pagos e de exonerar-se dos pagamentos vincendos. LOUREIRO, Francisco Eduardo. Responsabilidade civil no compromisso de compra e venda. In: SILVA, Regina Beatriz Tavares da (coord.). Responsabilidade civil e sua repercussão nos tribunais. 2. ed. São Paulo, Saraiva (Coleção FGVLaw), 2009, p. 225- 226.

[15] Agostinho Alvim distingue o inadimplemento absoluto do inadimplemento relativo, este último, “a falta de cumprimento da obrigação no lugar, no tempo, ou na forma convencionados, subsistindo, em todo o caso, a possibilidade de cumprimento”. Enquanto o primeiro se configura com a impossibilidade do credor em receber a prestação, por exemplo, no perecimento da coisa. ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 7.

[16] AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. 2. ed. Rio de Janeiro: AIDE, 2004.

[17] Sobre a declaração de não cumprimento, relevante o julgado de relatoria de José Osório de Azevedo Júnior: BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação com Revisão 9077057-83.1996.8.26.0000, Rel. José Osório de Azevedo Júnior, 4ª Câmara de Direito Privado, Foro Regional II – Santo Amaro – 3ª Vara Cível, j. n/a. Registro 16-07-1998.

[18] Trecho do voto: Como visto, o inadimplemento da ré é anterior ao do autor, primeiro houve notificação acerca da impossibilidade de entrega do imóvel na data aprazada, fato apto a justificar a suspensão do pagamento das parcelas do preço por exceção do contrato não cumprido. Com efeito, pela regra da exceptio non adimpleti contractus, aplicável aos contratos sinalagmáticos como o presente, com fundamento no art. 477 do CC/2002 pode o réu recusar-se ao cumprimento de sua obrigação até que o vendedor satisfaça a sua. Como é sabido, a exceção do contrato não cumprido representa um processo lógico de assegurar, mediante cumprimento simultâneo, o equilíbrio em que assenta o esquema do contrato bilateral. Conforme explica José João Abrantes, em outras palavras, “significa isto que, no interior da economia contratual, a obrigação de cada um dos contraentes funciona como contrapartida ou como contrapeso da outra. A obrigação de cada um dos contraentes aparece como equivalente da assumida pelo outro”. ABRANTES, José João. A excepção do não cumprimento do contrato no direito civil português. Coimbra: Almedina, 1986, p. 40; LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. v. I. Madrid, 1953, p. 266.

[19] CARDOSO, Luiz Philipe Tavares de Azevedo. Inadimplemento antecipado do contrato no direito civil brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 121.

[20]  AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. 2. ed. Rio de Janeiro: AIDE, 2004, p. 126-127.

REFERÊNCIAS

https://www.conjur.com.br/2025-ago-29/justa-expectativa-contratual-e-perda-da-confianca-no-cumprimento-dos-contratos-imobiliarios/