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A JUSFUNDAMENTAÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA (CONSTITUCIONAL) PARA ALÉM DOS DESEJOS DO FILHO

A JUSFUNDAMENTAÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA (CONSTITUCIONAL) PARA ALÉM DOS DESEJOS DO FILHO

Bruno Albergaria

Isabela Cristina Cunha de Resende

SUMÁRIO: 1 Considerações Iniciais. 2 Breve Análise do Conceito de Família; 2.1 Do Conceito de Família Antes da Constituição de 1988; 2.2 O Conceito de Família Pós-Constituição de 1988 ante a Inclusão do Afeto; 2.3 A Paternidade Afetiva e Biológica na Construção do Moderno Conceito de Família. 3 Análise Jurisprudencial. 4 Do Possível Desrespeito ao Princípio da Isonomia. 5 Considerações Finais. 6 Referências Bibliográficas.

                                  

1 Considerações Iniciais            

“‘Se desejo, logo existo’. Se existo e desejo, posso estabelecer e construir família de diferentes formas. Sexo, casamento e reprodução já não são mais os esteios que sustentam o direito de família. Esses elementos desatrelaram-se. Portanto, o princípio jurídico da afetividade é o grande norteador de todo o direito de família contemporâneo, ao lado, obviamente, do macroprincípio da dignidade da pessoa humana.” (PEREIRA, 2010, p. 30)

O conceito de família é um paradoxo para sua compreensão. Dessa intrínseca complexidade verifica-se, inclusive, que não existe, na busca do seu conceito, uma uniformidade nas ditas ciências sociais (antropologia, sociologia, psicologia, et coetera). Como não poderia ser, também dentro do próprio ordenamento jurídico existem divergências entre o entendimento do que seria família, como, ex vi, ocorre no direito penal e fiscal (VENOSA, 2006, p. 1-4).

A CRFB/88, por trazer preceitos gerais, não a define, apesar de regulá-la e protegê-la (vide Capítulo VII, arts. 226 e ss.); a legislação infraconstitucional, que deveria trazer os preceitos específicos, por regular as relações familiares, também não o faz. De fato, o atual Código Civil, em seu Livro IV, que trata do direito de família, em nenhum de seus dispositivos aduz, precisamente, qual o conceito de família, refutando o legislador a interpretação autêntica[1]. Assim, exige-se a colmatação conceitual na doutrina e na jurisprudência.

Evoca-se, com efeito, uma abordagem das mutações sofridas ao longo do tempo, no Brasil, do conceito de família, fazendo a transição de família tradicional, anterior à Constituição de 1988, composta por pais e filhos (critério biológico), para o conceito moderno, considerado aqui como o pós-Constituição (critério biológico e afeto). Ainda nesse tópico, analisar-se-á a inserção do afeto para se estabelecer novos conceitos de famílias. Finalmente, verificar-se-á que o próprio conceito de família modificou-se com a inserção da paternidade afetiva (sem negar a paternidade biológica) (BRASIL, 1988).

Ademais, nesse imbróglio jurídico, exsurge uma pormenorizada análise jurisprudencial das decisões dos Tribunais estaduais e superiores, em especial a desconsideração do interesse do pai em detrimento do pleito do filho. De fato, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) decidiu que:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE C/C ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. PATERNIDADE BIOLÓGICA. COMPROVAÇÃO POR EXAME DE DNA. ART. 333, I, DO CPC. PREVALÊNCIA, NO CASO CONCRETO, SOBRE A PATERNIDADE AFETIVA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. RECURSO DESPROVIDO.      

  1. Embora não negue que tanto o vínculo biológico quanto o afetivo possuem notável importância no âmbito do direito de família, é inadequado estabelecer uma ordem de prevalência entre ambos aprioristicamente, devendo o impasse ser solucionado à luz do princípio do melhor interesse da prole, o que somente é aferível a partir do exame do caso concreto e de todas as peculiaridades que o envolvem.
  2. No caso, a necessidade psicológica demonstrada pelo autor recomenda que a paternidade biológica, devidamente comprovada por meio de exame de DNA, prevaleça sobre a paternidade socioafetiva, com a conseguinte anulação do registro civil.
  3. Recurso desprovido.” (TJMG, AC 10303080076746/001, Relª Desª Teresa Cristina Alvarenga Peixoto, 2013) (grifo nosso)

Diante deste julgado, o objetivo deste artigo é combater a não observância do princípio da isonomia e efetiva (des)proteção da família, não considerados nas ações de investigação de paternidade.

Nesse diapasão, em sequência, abordar-se-á o princípio da isonomia constitucional, nos termos do art. 5º da Constituição e sua possível não observância nesses julgados (BRASIL, 1988).

Ressalta-se que o objetivo desta investigação não é discutir acerca de qual paternidade deverá prevalecer, nem mesmo adentrar no âmbito das questões específicas relativas à paternidade biológica e afetiva; mas, apenas, utilizar-se destes conceitos para demonstrar quão levianas tem sido as decisões em relação ao pai e a todo o instituto família em si.

Ainda, não foram encontrados trabalhos em que tenha se analisado estas decisões, buscando uma abordagem crítica à quebra da igualdade entre pais e filhos. Contudo, apesar da dificuldade encontrada, buscou-se apoio na doutrina e na jurisprudência especializadas no macrotema “família“, para que fosse possível alcançar o objetivo final.

Por fim, as justificativas dessa pesquisa são as consequências advindas da possível quebra do princípio da isonomia para a sociedade, haja vista que a não observância dos anseios da família como um todo e a supremacia do interesse da prole em relação ao pai pode ocasionar prejuízos irremediáveis para o seio jurídico-social.

2 Breve Análise do Conceito de Família       

Desde os primórdios, a família é objeto de estudo das diversas civilizações, dada a sua importância como primeiro passo na formação do ser humano enquanto necessitado de socialização. Haja vista que, em sua estrutura, o indivíduo viverá os fatos mais determinantes de sua vida, tais como o nascimento e a morte (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 2).

Notável, portanto, considerar que a família é estrutura sintetizadora da formação humana e de sua preparação para absorver a superveniente vida coletiva, nesse sentido: “é certo que o ser humano nasce incerto no seio familiar – estrutura básica social -, onde se inicia a moldagem de suas potencialidades com propósito da convivência em sociedade e da busca de sua realização pessoal” (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 8).

Assim, considerando a vida em intensa socialização, percebe-se diversas mudanças lineares do conceito de família, anteriores e posteriores à Constituição brasileira, sendo necessária esta análise para fins de estudo.

2.1 Do Conceito de Família Antes da Constituição de 1988                               

Preliminarmente, mister ressaltar que o direito brasileiro adotava, antes da CRFB/88, o conceito ortodoxo de família, em sentido estrito, qual seja o de que a família era aquela formada pelo agrupamento de pessoas unidas por laços matrimoniais e de filiação; portanto, unicamente pelos cônjuges e pela prole (DINIZ, 2007, p. 9). É o que determinava, por exemplo, o art. 167 da Constituição de 1967 [2].

Ainda, com o casamento os ascendentes, descendentes e colaterais do cônjuge são incorporados ao seio familiar, denominando-se parentes por afinidade, além do cônjuge, que não é considerado parente (VENOSA, 2006, p. 2).

Nesse diapasão, para os tradicionalistas, eram considerados os vínculos de sangue e de afinidade jurídica, exclusivamente para conceituar família, sendo excluído o afeto.

Em que pese o elemento biológico ser o norteador do direito de família tradicional, como demonstrado acima, necessário esclarecer que o vínculo sanguíneo, por si só, não bastava para que o filho fosse considerado parte integrante da família.

De fato, além dos laços sanguíneos, era preciso que este filho fosse nascido de um casamento legítimo[3], pois anteriormente à Constituição de 1988, não havia igualdade entre os filhos havidos dentro e fora do casamento, sendo estes últimos, tidos como ilegítimos (BRASIL, 1988).

Por essa proteção especial ao casamento, antes da Constituição de 1988, o Código Civil de 1916, lei especial que regulamentava os ditames das relações familiares, não reconhecia também a união estável, sendo esta considerada família ilegítima (BRASIL, 1916).

Em assim sendo, conforme assevera Sílvio de Salvo Venosa, “muitos foram os que entenderam, até as últimas décadas, que a união sem casamento era fenômeno estranho ao direito de família, gerando apenas os efeitos obrigacionais” (2006, p. 23).

Acrescenta-se que, apesar de o Estado ser laico, o legislador civilista ainda estava preso aos preceitos e dogmas religiosos. O casamento era instituição sagrada, indissolúvel, portanto, aqueles que não seguiam estes preceitos, de certa forma mereciam uma punição.

Destarte, como a união estável e a filiação ilegítima feriam a família tradicional, em especial o instituto do casamento, não eram amparados de forma igualitária pelo Código Civil brasileiro de 1916.

Em que pese o objetivo deste trabalho não ser analisar profundamente a história do direito de família, é importante destacar esta desigualdade advinda da família tradicional, através de marcos como a desigualdade entre os filhos, o desamparo da união estável e a relevância do matrimônio.

O exame destes exemplos demonstra claramente que a família tradicional estava presa a um modelo taxativo, padrão, sendo que tudo aquilo que fosse diverso a este modelo não era considerado como família. Este arranjo, conforme demonstrado, era constituído pelo pai, esposa, filhos havidos no casamento e os parentes do cônjuge, sem quaisquer acréscimos.

Contudo, engessar um conceito inerentemente social é o mesmo que coibir direitos. Nesse sentido, o conceito de família não pode ser considerado imutável, tendo em vista que, conforme mudam os valores de determinado contexto histórico, faz-se necessária à mudança de seu conceito. Assim, asseveram Cristiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald (2010, p. 5):

Composta por seres humanos, decorre, por conseguinte, uma mutabilidade inexorável na compreensão da família, apresentando-se sob tantas e diversas formas quantas forem a possibilidade de se relacionar, ou melhor, de expressar amor e afeto. A família, enfim, não traz consigo a pretensão de inalterabilidade conceitual. Ao revés, seus elementos fundantes variam de acordo com os valores e ideias predominantes em cada momento histórico.”

Assim, este conceito fechado era insatisfatório para a sociedade, por não acompanhar os fenômenos sociais, razão pela qual se viu iminente a necessidade de mudança, para que o direito ficasse em consonância com a sociedade como um todo, advindo, portanto, com a Constituição de 1988.

                                   

2.2 O Conceito de Família Pós-Constituição de 1988 ante a Inclusão do Afeto

Com as inovações trazidas pela Constituição de 1988, bem como com o distanciamento do modelo patriarcal, é nítida a transição da estrutura nuclear de família para o pluralista, ou seja, não existe mais um modelo único. Na verdade, não é mais possível padronizar a família, tampouco conceituá-la taxativamente. Nesse sentido, nas lições de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010, p. 1-10):

É inegável que a multiplicidade e a variedade de fatores (de diversas matizes) não permitem fixar um modelo familiar uniforme, sendo mister compreender a família de acordo com os movimentos que constituem as relações sociais ao longo do tempo.”

A família não pode mais ser considerada somente uma ligação de indivíduos por vínculos de sangue, passando a ser vista com base na essência da afetividade entre seus membros, em decorrência das relações construídas pelo convívio.

Portanto, para que os novos modelos de família fossem amparados, era preciso “reconhecer o afeto como identificador dos vínculos familiares“, segundo Maria Berenice Dias (2010). Ainda, para esta doutrinadora, o vínculo de filiação desgarrou-se da verdade biológica e registral para ser norteado pelo afeto, resolvendo os impasses criados ao não reconhecimento de outros tipos de família.

Ressalta-se que a inclusão do afeto surgiu com a necessidade do direito em acompanhar os fatos sociais, sendo que se o direito agisse de modo diverso, a família não seria amparada de forma justa.

 Não obstante ter se tornado difícil o conceito de família, no contexto atual da sociedade, se o vínculo tem como pilar o afeto, não se pode deixar de atribuir o status de família, fazendo jus à proteção estatal, já que a Carta Magna, no art. 1º, inciso III, consagra o princípio da dignidade da pessoa humana (DINIZ, 2010).

Especificamente, a Carta Magna dispõe de forma explicita e implícita sobre preceitos que surgem como defensores da família enquanto instituição, de forma a garantir, por intermédio de princípios e direitos fundamentais, a continuidade e preservação da família.

Assim, a hermenêutica constitucional permite a interpretação restritiva apenas quando esta consta expressamente da norma, ou seja, quando a Constituição pretende elencar certos direitos à um grupo específico, traz no corpo da norma. A título de exemplo, a expressão “homem e mulher” trazida no art. 226, § 3º [4], restringe os direitos apenas a este grupo de pessoas.

Em contrapartida, se no art. 226 da referida Lei o legislador constituinte utiliza a expressão “família“, sem conceituá-la, intencionalmente, buscou o amparo de todo e qualquer arranjo familiar, inclusive os baseados no afeto, razão pela qual este é amparado indiretamente pela Carta Magna.

Com o afeto sendo o pilar do direito das famílias e o surgimento dos novos arranjos sociais, tornou-se possível a paternidade socioafetiva, sem que se fizesse preciso o vínculo de sangue para unir as pessoas, sendo esta reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência pátria [5].

2.3 A Paternidade Afetiva e Biológica na Construção do Moderno Conceito de Família  

O direito moderno criou a paternidade afetiva para suprir as lacunas de quem quer apenas um pai (visão do filho) ou de quem quer apenas ser pai (visão do pai). Devido a este surgimento, colocou-se em questão se as paternidades afetiva e biológica estariam em pé de igualdade.

Contudo, esta discussão não condiz com os preceitos constitucionais, já que a Carta Magna traz diversos dispositivos de interpretação aberta, no que tange à família. Observa-se que o legislador constituinte teve a intenção de estender a interpretação dos conceitos de família, bem como o de paternidade, visando sua ampla proteção.

Nesse contexto, a Carta Magna, em seu art. 226, § 7º, adotou a expressão “paternidade responsável’’, em vez de “paternidade afetiva e biológica“. Destarte, não há que se falar em prevalência de uma em relação à outra. Haja vista que quando o poder constituinte visa restringir a interpretação da norma o faz em seu próprio texto, não sendo o caso deste artigo.

O mesmo ocorre no art. 227 da Constituição, pois este somente traz as atribuições das responsabilidades da educação e criação do menor, sem especializar se ficam a cargo do pai afetivo ou biológico, demonstrando mais uma vez que a Carta Magna amparou ambos.

Ainda, importante ressaltar que restringir a interpretação constitucional implicaria na irremediável restrição de direitos, além da limitação de princípios fundamentais, como o princípio da dignidade da pessoa humana, não sendo esta a intenção do poder constituinte.

Esclarecida a igualdade existente entre a paternidade afetiva e biológica, necessário dizer que ser pai não implica apenas em afeto, por isso uma vez constituída a paternidade, não pode levianamente ser desconstituída apenas por simples vontade do pai ou do filho.

Há de se considerar que a constituição da paternidade afetiva, tal como da biológica, atinge as relações de parentesco, as obrigações inerentes ao direito de família (pensão, visita e guarda), os direitos sucessórios, entre outros.

Ocorre que, com a inovação trazida pela paternidade afetiva, ficou em voga crescente número de casos de ações de investigação de paternidade, objetivando a alteração do registro civil, em favor do pai biológico ou o contrário.

Em tese, seriam três possíveis soluções para esta demanda judicial: desconstituição da paternidade afetiva em favor da biológica, a não alteração desta situação ou, até mesmo, a dupla paternidade.

As hipóteses apresentadas, apesar de impactarem de modo diverso na vida de pais e filhos, trazem à luz o questionamento central deste trabalho. O embasamento das decisões reiteradas dos Tribunais, para decidir este tipo de conflito, têm sido o melhor interesse da prole, sendo ignorado o interesse paterno e, por consequência, a instituição família, havendo possível desrespeito ao princípio da igualdade.

3 Análise Jurisprudencial          

As decisões reiteradas de um Tribunal são fonte secundária do direito, ou seja, quando a norma se faz insuficiente, deve-se buscar outras fontes para interpretá-la.

Contudo, como é difícil ao direito acompanhar os fatos sociais, as grandes inovações interpretativas são trazidas justamente nas jurisprudências, que apesar de serem inferiores a norma legal, quando advindas de um Tribunal superior ou mesmo pacificadas em um Tribunal estadual, criam precedentes interpretativos, absorvendo status de lei.

Dito isso, as jurisprudências tem grande relevância ao direito. Assim, para o presente trabalho, a jurisprudência não tem observado, salvo melhor juízo, os direitos e garantias fundamentais da família, por entenderem que o princípio do melhor interesse da prole é, sempre, o norteador de toda e qualquer decisão no que tange à constituição ou desconstituição da paternidade afetiva ou biológica.

Ao adotar esta presunção, tem se considerado o que é melhor para o interesse do filho, possivelmente quebrando a isonomia de direitos, sem sequer apreciar os anseios do pai, de modo a criar uma situação de hierarquia entre interesses dos pais e dos filhos.

Neste sentido, destaca-se decisão reproduzida anteriormente da ilustre Desembargadora do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Teresa Cristina Alvarenga (TJMG, AC 10303080076746/001, 2013).

Conforme se depreende do julgado citado, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais cria precedente para que os conflitos existentes entre paternidade afetiva e biológica sejam decididos “à luz do princípio do melhor interesse da prole“. Ainda, acrescenta que os anseios psicológicos do filho pela busca da paternidade biológica prevalecem à afetiva.

O que se discute neste trabalho não é que uma paternidade seja superior à outra, ou mesmo qual seria a mais adequada. Na verdade, esse julgado confirma a crítica feita ao Judiciário de que não se considera o interesse do pai, nem do instituto família, para basear as decisões e sim um único integrante de seu seio familiar, qual seja o filho.

Segundo Sílvio de Salvo Venosa, “a família nunca é titular de direitos. Os titulares serão sempre seus membros individualmente considerados” (2006, p. 8). Necessário esclarecer que merece especial proteção estatal, sendo, sim, os titulares de direitos seus membros, por isso se deve analisar cada caso sob a ótica de cada um dos membros.

Assim, quando se analisa o direito do pai e do filho, está se protegendo a família e garantindo os direitos de cada membro individualmente.

No que tange ao Superior Tribunal de Justiça, por ora chamado STJ, especificamente quanto à desconstituição/constituição da paternidade, este também abarca suas decisões no princípio do melhor interesse do filho, mesmo que não diga expressamente no julgado.

A título de exemplo, recentemente a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, em 17.10.2013, que “paternidade socioafetiva não afasta o direito ao reconhecimento do vínculo biológico“, mas já decidiu o contrário, em 13.09.2011, que “pai biológico não consegue alterar certidão de menor registrado pelo pai afetivo“, conforme se verifica nas decisões abaixo:

Se é o próprio filho quem busca o reconhecimento do vínculo biológico com outrem, porque durante toda a sua vida foi induzido a acreditar em uma verdade que lhe foi imposta por aqueles que o registraram, não é razoável que se lhe imponha a prevalência da paternidade socioafetiva, a fim de impedir sua pretensão“, assinalou a Ministra.

Analisando as peculiaridades do caso, a Relatora constatou que o pai afetivo sempre manteve comportamento de pai na vida social e familiar, desde a gestação até os dias atuais; agiu como pai atencioso, cuidadoso e com profundo vínculo afetivo com a menor, que hoje já é adolescente. Ele ainda manteve o desejo de garantir o vínculo paterno-filial, mesmo após saber que não era pai biológico, sem ter havido enfraquecimento na relação com a menina. Por outro lado, a Relatora observou que o pai biológico, ao saber da paternidade, deixou passar mais de três anos sem manifestar interesse afetivo pela filha, mesmo sabendo que era criada por outra pessoa. A Ministra considerou esse tempo mais do que suficiente para consolidar a paternidade socioafetiva com a criança. “Esse período de inércia afetiva demonstra evidente menoscabo do genitor em relação à paternidade“, concluiu Nancy Andrighi.

Observa-se que, no primeiro julgado, o Superior Tribunal de Justiça adota o entendimento de que se o filho busca a paternidade biológica, não se pode lhe impor a paternidade socioafetiva. Assim, existe a prevalência da paternidade afetiva em face da biológica, fundamentando-se no melhor interesse do menor, conforme se vê no dizeres da Ministra Andrighi:

É importante frisar que, conquanto tenha a recorrida usufruído de uma relação socioafetiva com seu pai registrário, nada lhe retira o direito, em havendo sua insurgência, ao tomar conhecimento de sua real história, de ter acesso à verdade biológica que lhe foi usurpada, desde o nascimento até a idade madura.”

Ainda, nota-se que existe a prevalência do pai biológico em razão do pai afetivo, desrespeitando o art. 226, caput e § 7º, da Constituição (BRASIL, 1988), este que, como tratado acima, não faz distinções entre os conceitos de família e paternidade. Independente disso, como se percebe, mais uma vez o pai não tem seus interesses atendidos.

Em contrapartida, o mesmo Superior Tribunal de Justiça, na segunda decisão, mantém a paternidade afetiva em detrimento da biológica, por entender que houve inércia afetiva por parte do pai biológico. Nota-se que neste caso o pai biológico foi quem buscou o reconhecimento da paternidade.

Torna-se clarividente o conflito existente entre as decisões: quando a busca pela paternidade biológica é do filho, o preceito do Superior Tribunal de Justiça é pelo reconhecimento da paternidade biológica e desconstituição da paternidade afetiva; já quando a busca é pelo pai, decide-se pela paternidade socioafetiva.

Pelo exposto, foram avaliados os interesses do filho, mesmo que tenham impactos jurídicos diversos, já que um decide pela paternidade afetiva e o outro pela biológica. Nesse sentido, a consequência destas decisões tem sido a possível quebra do princípio da isonomia, como será demonstrado.

4 Do Possível Desrespeito ao Princípio da Isonomia       

O art. 5º, caput, da Constituição Federal, traz o princípio da isonomia, com a sua máxima “todos são iguais perante a lei“, induzindo a interpretação de que não pode haver tratamento diferenciado entre os indivíduos, a não ser que estes indivíduos estejam em situação de desigualdade e seja necessário dar certas regalias para os colocarem em grau de igualdade, como brilhantemente diz Rui Barbosa (1920):

A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade (…). Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real.”

No que tange ao direito de família, este princípio é de suma importância, pois demonstra que se deve respeitar a igualdade entre os entes integrantes da instituição família, havendo reciprocidade nos deveres e nos direitos entre os mesmos.

Esta reciprocidade está prevista no art. 229 da Carta Magna, que determina que um pai tem o dever de criar e educar os filhos tal como os filhos têm o dever de fazer o mesmo pelos pais, em sua velhice ou outra necessidade semelhante. Veja-se: “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade” (BRASIL, 1988).

Nesse sentido, sempre que uma decisão é tomada em relação à paternidade, deve-se respeitar a igualdade entre pais e filhos, levando-se em consideração o que é melhor tanto para um quanto para outro.

Destarte, ao quebrar a isonomia existente entre o pai e o filho, torna-se pressuposto que o filho tem mais direitos do que o pai, desrespeitando a instituição família como um todo.

O grande problema é que esta quebra da igualdade está presente nas decisões reiteradas dos Tribunais, de forma explícita, ao valorizar o princípio do melhor interesse da prole/menor em detrimento ao direito de paternidade, está se dizendo que um direito é mais importante que o outro. Em decorrência desta desigualdade, verifica-se o registro de diversas jurisprudências apresentadas neste trabalho desrespeitam o princípio da isonomia, concluindo-se pelo descaso aos interesses inerentes ao pai e a todo o instituto família.

5 Considerações Finais

Sem dúvida, a maior inovação trazida ao direito de família foi a consolidação do elemento afeto como norteador das relações familiares, pois permitiu que todos os modelos de família fossem considerados como tal.

Por isso, o legislador constitucional foi sábio quando não definiu o conceito de família em seu art. 226, pois teve a intenção de proteger todos os modelos de famílias existentes, trazendo igualdade entre os mesmos.

Inclusive, em tese, a paternidade afetiva e biológica estão em pé de igualdade, no que tange ao amparo constitucional.

Contudo, o poder constituinte não poderia prever como o direito de família jurisprudencial seria tendencioso à proteção dos desejos do filho em relação ao pai. Infelizmente, o art. 226 da Constituição se mostrou insuficiente para amparar os desejos do pai.

Por outro lado, o princípio da isonomia, trazido no art. 5º, caput, norteador de todas as searas do direito, não se mostrou também suficiente para driblar a exacerbada proteção despendida aos filhos.

A triste realidade do Judiciário brasileiro demonstra que o pai já entra em desvantagem quando configura o polo passivo ou ativo de uma ação de investigação de paternidade.

As jurisprudências analisadas demonstram que o elemento fundamental para basear a decisão é: quem buscou a desconstituição da paternidade afetiva/biológica ou vice-versa? Se a resposta foi o filho, então a decisão será favorável ao mesmo; mas se a resposta for o “pai“, será analisado o caso sob o olhar do filho e consequentemente decidir o que é melhor para o mesmo.

Esta análise nos faz refletir sobre a diferença essencial entre ter um pai e ser um pai. Já que ter um pai implica em benefícios, em escolhas, em quebras de princípios constitucionais para consagrar-se a qualquer custo este direito, enquanto ser um pai implica em obrigações, mas não em direitos, ante ao descaso dos Tribunais com o mesmo.

Assim, é notável a quebra do princípio da isonomia, norma constitucional amparada pelo art. 5º, caput, sem que haja qualquer justificativa, vez que não se aplica neste caso a desigualdade dos desiguais para buscar a efetiva igualdade entre os iguais.

A análise de qualquer decisão deve ser feita sob o olhar tanto do pai quanto do filho, sem que o fundamento seja tendencioso a uma das partes, sob tudo levando-se em consideração o instituto família como um todo.

Esta disparidade pode criar precedentes para que o direto não cumpra o seu papel perante a sociedade, ou seja, mesmo que nem sempre seja possível ter uma decisão justa, deve-se chegar o mais próximo disso possível.

Ademais, devemos considerar os precedentes criados com estas decisões, já que está se criando no âmbito jurídico enorme insegurança.

Portanto, este trabalho deixa como reflexão a necessidade de que sejam avaliados todos os lados em um conflito, precisamente a busca efetiva pela adequada prestação jurisdicional. Em assim sendo, para que isto seja possível, faz-se necessário o respeito ao princípio da isonomia nas questões relativas a pais e filhos e não a prevalência dos desejos do filho sob os anseios do pai.

6 Referências Bibliográficas                             

ALBERGARIA, Bruno. Instituições de direito. São Paulo: Atlas, 2008.

BARBOSA, Rui. Oração aos moços. Discurso na Faculdade de Direito de São Paulo, 1920 (escrito para os formandos da turma de 1920). Editado em livro, 1921.

BRASIL. Código Civil. Distrito Federal: Senado, 2002.

______. Constituição da República Federativa do Brasil. Distrito Federal: Senado, 1988.

BYNDER, Herbert. Émile Durkheim and the sociology of family. In: Journal of Marriage and Family, v. 31, n. 3, ago. 1969, p. 527-533.

DIAS, Maria Berenice. As famílias e seus direitos. Disponível em: <http://www.mariaberenice.com.br/uploads/14_as_fam{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}EDlias_e_seus_direitos.pdf>. Acesso em: 25 abr. 2014.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Trad. Maria Cristina de Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

RAMOS FILHA, Iaci Gomes da Silva. Paternidade socioafetiva e a impossibilidade de sua desconstituição posterior. Monografia apresentada à banca examinadora do Centro de Ensino Superior do Amapá/CEAP.

Sites:

<http://jus.com.br/artigos/9093/principios-constitucionais-do-direito-de-familia#ixzz30Jg9ywkn>. Acesso em: 30 mar. 2014.

<http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI141202,61044Pai+biologico+nao+consegue+alterar+certidao+de+menor+registrada+pelo>. Acesso em: 15 mar. 2014.

<http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/destaquesNewsletter.php?sigla=newsletterPortalInternacionalJurisprudencia&idConteudo=195011>. Acesso em: 27 abr. 2014.

<http://jus.com.br/artigos/9093/principios-constitucionais-do-direito-de-familia>. Acesso em: 15 abr. 2014.

<http://www.pesquisedireito.com/artigos/civil/a-familia-conc-evol>. Acesso em: 20 abr. 2014.

<http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11585&revista_caderno=14>. Acesso em: 21 abr. 2014.

<http://www.conjur.com.br/2013-out-18/paternidade-socioafetiva-nao-afasta-reconhecimento-vinculo-biologico>. Acesso em: 24 fev. 2014.

[1] Por interpretação autêntica entende-se quando a própria lei explica o seu conceito ou como deverá ser (ALBERGARIA, 2008, p. 23-24).

[2] Verbis: “Art. 167. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos”.

[3] Ver o art. 337 do CC/1916: “Art. 337. São legítimos os filhos concebidos na constância do casamento, ainda que anulado, ou nulo, se contraiu de boa fé”.

[4] Ressalta-se que referido artigo já teve sua interpretação ampliada pelo Supremo Tribunal na ADPF 132/RJ e na ADI 4.277/DF, sendo reconhecida a união estável entre casais homoafetivos nos dias atuais. Contudo, fora utilizado apenas para ilustrar o raciocínio construído.

[5] Sobre o tema: STJ, REsp 1.059.214/RS, 2008/0111832-2, 2012. RAMOS FILHA, Iaci Gomes da Silva. Paternidade socioafetiva e a impossibilidade de sua desconstituição posterior. Monografia apresentada à banca examinadora do Centro de Ensino Superior do Amapá/CEAP.