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JULGAMENTO FATIADO DA LIDE… BREVES CONSIDERAÇÕES

JULGAMENTO FATIADO DA LIDE… BREVES CONSIDERAÇÕES

Fábio Cenci

O atual código de processo civil encontra-se em vias de ser substituído por uma nova norma. Respectivo projeto (aprovado por ambas as casas legislativas) será em breve remetido à sanção presidencial, este que elenca algumas modificações significativas, sendo uma delas (objeto destes rabiscos), a possibilidade do julgamento parcelado da lide em primeira instância, e algumas possíveis repercussões.

Abrimos parênteses para discordar da necessidade de uma nova normatização processual civil (ao menos da forma que foi apresentada), ousando plagiar o Prof. Alfredo Buzaid: “Aos iniciarmos os estudos depararam-se-nos duas sugestões: rever o Código vigente ou elaborar Código novo. A primeira tinha a vantagem de não interromper a continuidade legislativa. O plano de trabalho, bem que compreendendo a quase totalidade dos preceitos legais, cingir-se-ia a manter tudo quanto estava conforme com os enunciados da ciência, emendando o que fosse necessário, preenchendo lacunas e suprimindo o supérfluo, o que retarda o andamento dos feitos. Mas a pouco nos convencemos de que era mais difícil corrigir o Código velho que escrever um novo. A emenda ao Código atual requereria um concerto de opiniões, precisamente nos pontos em que a fidelidade aos princípios não tolera transigência. E quando a dissensão é insuperável, a tendência é de resolvê-la mediante concessões, que não raro sacrificam a verdade científica a mera razões de oportunidade. O reformador não deve olvidar que, por mais velho que seja um edifício, sempre se obtêm, quando demolido, materiais para construções futuras.” [1]

É sabido que os ensinamentos trazidos pelo Prof. Enrico Tullio Liebman ecoaram no Brasil, sendo que um daqueles que tiveram a oportunidade de estudar com o eminente professor, ao ser provocado para incrementar a normatização processual civil, viu-se diante da situação acima exposta, tendo então optado pela criação de uma nova legislação, ao invés de reformar a existente (anteprojeto que contou com o auxílio de ilustres juristas, sendo um deles o Professor Sérgio Luis Monteiro Salles, eminente processualista, que sempre fez questão de ensinar a seus alunos a sistemática processual, como forma de entender direito processual civil). Ao certo tal opção teve, dentre outras causas, a impossibilidade de equalizar a norma existente, com as inovações trazidas pelo Prof. Liebman; a nova teoria estudada divergia daquela que alicerçava aquele código de processo civil.

Pois bem, foram apresentados novos conceitos, novas teorias de natureza processual, a ponto de, semelhante ao que fez o Prof. Buzaid, ao invés de adequar à norma existente (sim, já muito modificada), construir nova legislação processual?

Fechados os parênteses, dentre as inovações elencadas em citado projeto de lei, uma delas diz respeito à possibilidade de o magistrado parcelar o julgamento da lide. O julgador de primeira instância, diante de vários pedidos cumulados, entendendo que um ou alguns deles (que não a totalidade) encontra(m)-se apto(s) para julgamento (quer por se tratar de matéria exclusivamente de direito, quer pela carga probatória até então produzida ser suficiente para a formação de seu livre convencimento), profere decisão, resolvendo tais capítulos, sendo que os demais serão futuramente julgados.

O julgamento parcelado da lide foi objeto de debate quando da promulgação da lei 11.232/05 (que criou a fase processual do cumprimento de sentença). Citada norma, ao alterar, em especial os artigos 162 e 463 do CPC, possibilitou, no entender de alguns respeitados doutrinadores, a possibilidade do julgamento parcelado.

Neste sentido, transcrevemos o entendimento do professor Sérgio Gilberto Porto [2]: “A lei 11.232/2006 alterou, dentre várias outras modificações introduzidas, o § 1°, do artigo 162, do CPC, cambiando a definição de que sentença é o ato pelo qual o juízo põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa para o ato do juiz que implica em alguma das situações previstas nos artigos 267 e 269, do CPC. As primeiras reflexões sobre o tema sinalizam à existência da ideia de que se promoveu a revisão no conceito de sentença, deixando esta de ser um ato através do qual o juízo põe termo ao processo e passando a ser um ato onde o juízo, ao decidir, configura: (a) a extinção do processo, sem exame de mérito ou (b) a resolução do mérito da causa, sem por termo ao processo. Dito de outro modo: nem sempre a sentença – agora através de sua nova concepção legal – cumpre e esgota integralmente o ofício jurisdicional. À evidência, no limite da instância em que é proferida! Assim, resulta claro o propósito inicial da revisão promovida: desconstruir a ideia de que a sentença é sempre um ato final, na medida em que, hoje, ao contrário de ontem, permite-se a prolação de sentença (em sentido amplo) sem que isto represente o encerramento (a) da causa e (b) do processo, na instância que se encontra.

Da mesma forma, o professor Marcus Vinícius Rios Gonçalves [3]: “Com a nova redação do art. 162, parágrafo 1º, a aptidão de extinguir o processo deixou de ser característica essencial da sentença, que existirá quando o juiz resolver o mérito, na forma do art. 269, ainda que, com isso, o processo não se extinga.”

Tal hipótese não vingou (acertadamente no nosso entender), contudo, foi textualmente inserida pelo legislador no mencionado projeto que visa criar o novo CPC.

O artigo 351 do possível novo CPC prevê: “Ocorrendo qualquer das hipóteses previstas nos arts. 482 e 484, incisos II e III, o juiz proferirá sentença. Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput pode dizer respeito a apenas parcela do processo, caso em que será impugnável por agravo de instrumento”.

A possível nova lei quebra uma importante norma processual civil, tão estudada nos bancos acadêmicos, qual seja: dá sentença cabe apelação e da decisão interlocutória cabe agravo. Contudo, o objeto principal nesta oportunidade é debater outra consequência advinda do julgamento parcelado da lide.

Partimos de um exemplo para discorrer acerca da problemática proporcionada pela proposta de julgamento parcelado da lide: i) Tício relata em sua causa de pedir que Gaio cometeu ato ilícito, e deste, proporcionou ao titular da pretensão dois pedidos: i) indenização por  danos materiais; ii) danos morais.

O magistrado, entendendo que pela carga probatória produzida até então, os danos morais encontram-se prescritos (situação diversa no que toca aos danos materiais), e profere decisão julgando improcedente o capítulo que trata dos danos morais, e agenda audiência de instrução, com a finalidade de finalizar a instrução referente aos danos materiais.

Diante desta situação, cabe a Tício (autor e sucumbente), nos termos do transcrito art. 351 de projeto do novo CPC, interpor recurso agravo por instrumento da decisão que julgou improcedente o capítulo que tratou dos danos morais.

Imaginemos que a Corte Estadual, ao julgar o recurso de Tício, entende inexistir a figura da prescrição e, logo em seguida, com base no art. 1010 § 4º da possível nova lei, julga improcedente o mérito, no que toca aos danos morais.

Tício, neste instante interpõe recurso especial, debatendo que, ao contrário do decidido pela Corte Estadual, a conduta de Gaio deve ser entendida como ato ilícito, e pede a reforma do v. acórdão, com a finalidade de que seja o réu/recorrido condenado em danos morais.

Neste intervalo o juiz de primeira instância julga o outro capítulo do processo, e reconhece ter ocorrido ato ilícito, e condenada Gaio no pagamento de danos materiais. Gaio interpõe recurso (de apelação) debatendo que, por não se tratar de ato ilícito (agiu no exercício regular de seu direito), não há que se falar em danos materiais.

Durante a tramitação do recurso de apelação, o recurso especial apresentado por Tício é conhecido pela instância extraordinária, que entendeu por bem dar provimento a ele, reconhecendo a conduta ilícita de Gaio e, por conseguinte, o condena no pagamento de danos morais.

Antes do trânsito em julgado do acórdão proferido pelo STJ, a Corte Paulista dá provimento ao recurso de Gaio, e reforma a decisão de primeira instância (não existe ato ilícito), restando a Tício, novamente a interposição de  novo recurso especial.

Ocorre que o novo recurso extremo interposto de Tício não é conhecido, visto ele, por equívoco, não ter recolhido as custas atinentes ao preparo, senão em razão de qualquer outro pressuposto de admissibilidade atinente a esta modalidade de recurso (em especial por conta da jurisprudência defensiva), decisão esta que desafiou agravo, este julgado improvido pelo STJ, culminando no trânsito em julgado da decisão proferida pela Corte Estadual.

Pois bem, existem duas decisões de mérito acobertadas pelas características do caso julgado versando sobre a mesma questão, contudo, totalmente contraditórias, visto que o STJ entendeu trata-se de ato ilícito, e por conta disso é devida a condenação moral, e o tribunal estadual entendeu ser indevida a condenação em danos materiais, visto que o mesmo fato, ao contrário do entendimento da superior corte, não se caracteriza como ato ilícito.

Imaginemos os tumultos processuais advindos do antes exposto!

Claro que existem instrumentos capazes de evitar discorrido caos (como no caso do art. 931 de ventilado projeto de lei), contudo, ao menos no nosso sentir, levando-se em conta a subjetividade na interpretação da norma processual garantida ao julgador, não será surpresa alguma a concretização da situação debatida nestes rabiscos.

Desta feita, ao menos no nosso sentir, a norma processual não pode trazer insegurança jurídica ao cidadão, tampouco ser responsabilizada pela atual morosidade que acomete o judiciário brasileiro. Afinal não é culpa do atual CPC o fato de processos aguardarem julgamento por meses/anos, tendo em vista o volume de demandas em tramitação, combinado com o diminuto número de servidores e magistrados para resolvê-los.

 

Notas:

1 – Exposição de motivos da lei 6015/73

2 – Texto disponível em – http://www.tex.pro.br/wwwroot/00/00nova_definicao_SP.php – no dia 03.12.2008, às 18 horas e 59 minutos.

3 – Op cit pág. 2.