JULGAMENTO DO RECURSO EX ART. 105, III, A, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA: SINAIS DE UMA EVOLUÇÃO AUSPICIOSA. [1]
José Carlos Barbosa Moreira
É bem conhecida a questão atinente ao julgamento do recurso especial interposto com invocação do art. 105, nº III, a, da Constituição da República. O texto da Carta autoriza a impugnação por essa via “quando a decisão recorrida contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência”. Encontra paralela a disposição na do art. 102, nº III, a, atinente ao recurso extraordinário, em relação ao qual são estes os dizeres: “quando a decisão recorrida contrariar dispositivo desta Constituição”. De resto, notoriamente, sob os regimes constitucionais anteriores a 1988, todas as hipóteses diziam respeito ao extraordinário, e o problema de que (mais uma vez) nos ocupamos punha-se nos termos adequados à sistemática então em vigor. Feita abstração da competência para o julgamento, agora bipartida, os dados não mudaram, e toda a discussão pode formular-se indiferentemente para ambos os recursos.
A fim de tornar mais cômoda as exposições de preferência vão referir-nos expressamente, em princípio, ao caso de contrariedade da decisão a lei federal. É claro, porém, que o que expusermos valerá, mutatis mutandis, para os outros casos previstos na Constituição, inclusive para o recurso extraordinário ex art. 102, III, a.
Dito isso, é possível enunciar como se segue a questão controvertida. Supondo-se que o Superior Tribunal de Justiça chegue à conclusão de que o acórdão impugnado pelo recorrente não contém o alegado erro, isto é, não contrariou a lei mencionada, que decisão deve proferir? A prática por longo tempo reinante vem consistindo em proclamar que não se conhece do recurso especial[2] – e o mesmo ocorre, desde a vigência das precedentes Constituições, no Supremo Tribunal Federal, quanto à hipótese análoga do recurso extraordinário. De há muito, contudo, essa maneira de julgar é objeto de críticas doutrinárias,[3] e no próprio seio da Corte Suprema algumas vozes muito prestigiosas dela discreparam, para afirmar que a solução correta, aí, é conhecer do recurso e negar-lhe provimento.[4]
Recapitulemos, em síntese, os argumentos com que se tem criticado a prática dominante[5]. Em perspectiva técnica, observa-se que:
a) o modo costumeiro de decidir elimina a distinção, inerente ao julgamento de quaisquer recursos, entre o juízo de admissibilidade – concernente aos requisitos que o recurso há de satisfazer para que o órgão ad quem possa apreciar o conteúdo da impugnação -, e o juízo de mérito – no qual, depois de reconhecida a admissibilidade, o órgão ad quem impugnação é fundada, se a decisão na verdade padece do vício apontado, numa palavra: se o recorrente tem razão;
b) de acordo com a técnica tradicionalmente empregada, no recurso especial ex 105, III, a, o resultado do julgamento oscila entre estas duas únicas possibilidades: ou o Tribunal entende que a impugnação tem fundamento, e nesse caso provê o recurso, ou entende que não o tem, e nesse caso não conhece do recurso. Ora, o esquema assim armado atenta contra a lógica: em primeiro lugar, “não conhecer” de forma alguma é o contrário de “prover”, mas apenas o contrário de “conhecer”; e o contrário de “prover” é “desprover”, jamais “não conhecer” – tudo de acordo com terminologia consagrada e profundamente enraizada na linguagem jurídica brasileira;
d) nos casos em que um tribunal não conhece de determinado recurso, na acepção própria expressão, forçosamente fica por examinar parte da matéria suscitada pelo recorrente (o mérito do recurso), ao passo que, quando se utiliza a fórmula do “não conhecimento” para negar que a decisão impugnada mereça censura, na realidade já se examinou tudo que comportava exame: nada sobrou – o que suscita a pergunta irrespondível: que é, então, que se passaria ainda a examinar, se do recurso se conhecesse?
e) durante o julgamento, se há, no colegiado, quem conclua que o recorrente tem razão e quem conclua que ele não a tem, a prática tradicional dá ensejo a que se profiram, na mesma etapa, com referência ao mesmo thema decidendum, votos no sentido do provimento e votos no sentido do não conhecimento do recurso – o que a rigor deveria configurar este abuso: um ou alguns dos votantes estão a pronunciar-se sobre preliminar, enquanto outro ou outros já se pronunciam sobre o mérito, com estridente infração dos arts. 560 e 561 do Código de Processo Civil; f) na hipótese em foco, sempre conforme a técnica usual, o Tribunal nunca dirá que conhece do recurso e lhe nega provimento – possibilidade que em qualquer outro caso se lhe abre, e parece estranho que se exclua aqui a priori.
A tais argumentos de índole técnica juntam-se outros, extraídos das consequências a que necessariamente leva a aplicação do método habitual. Um deles diz respeito ao recurso especial (ou extraordinário) adesivo. Na conformidade do art. 500, nº III, do diploma de 1973, esse recurso “não será conhecido, se houver desistência do recurso principal, ou se for ele declarado inadmissível ou deserto”. Pois bem: se o Tribunal declara que “não conhece” do recurso principal, isso quer dizer (rectius: deveria querer dizer) que o recurso principal foi declarado inadmissível, logo não se pode conhecer do adesivo. É o que decorre, inexoravelmente, da sistemática adotada no Código – em cujo texto, ninguém duvide cada uma das expressões com que estamos lidando foi empregada em seu autêntico significado Quid iuris, se o Tribunal apreciou toda a matéria suscitada no recurso principal e apurou que não existia o suposto erro, que o recorrente não fazia jus a ser atendido, mas conclui por declarar que “não conhece” daquele recurso? Uma de duas: ou o Tribunal guarda fidelidade à fórmula empregada, e está impedido de conhecer do adesivo; ou então, para deste conhecer, precisa
b) Tribunal admitir que, ao “não conhecer” do recurso principal, nem por isso o declarou inadmissível: o que na verdade fez foi declará-lo infundado. Mas não há saída airosa em nenhuma das pontas do dilema. Realmente: se
c) Tribunal não conhece aí do recurso adesivo, viola a lei, manifesto como é que a situação não se enquadra na moldura do art. 500, nº III, do Código, e lesa direito do recorrente adesivo; se o Tribunal conhece do aludido recurso, os dizeres de sua decisão sobre o principal reclamam um esclarecimento cujo artificialismo não escapará ao mais desatento observador: com efeito, que sentido terá negar conhecimento a recurso que não seja inadmissível?
Mais um problema surge: o da eventual propositura de ação rescisória do acórdão proferido sobre o recurso especial. Qual há de ser o objeto do pedido de rescisão? A que órgão competirá julgar a rescisória? A partir de quando correrá o prazo de decadência do art. 495 do estatuto processual? A solução das duas últimas questões, bem se percebe, depende da resposta que se der à primeira. Ora, a tomar-se ao pé da letra a conclusão do julgamento do Superior Tribunal de Justiça, que dissera não conhecer do recurso especial, então rescindível não será o seu acórdão, por não constituir decisão “de mérito”, consoante exige o art. 485, caput, do Código; rescindível será, sim, o acórdão recorrido, com os corolários inevitáveis quanto à competência e ao prazo decadencial. Acontece que, se o Superior Tribunal de Justiça, embora haja adotado a fórmula do “não conhecimento”, na verdade apreciara o conteúdo da impugnação (isto é, o mérito do recurso), o entendimento por ele consagrado vai sujeitar-se à revisão e à eventual correção… do órgão a quo! Para contornar tal dificuldade, sob o regime constitucional anterior,
d) Supremo Tribunal Federal, a propósito do recurso extraordinário, lançou mão de um subterfúgio: assentou – e incluiu na Súmula da Jurisprudência Predominante (nº 249) – a tese de ser ele mesmo competente para a rescisória “quando, embora não tendo conhecido do recurso extraordinário, ou havendo negado provimento ao agravo, tiver apreciado a questão federal”. Ora, em boa técnica, a “questão federal” nada mais é que o mérito do recurso: resolvida ela, com efeito, nada mais resta que deva (ou sequer possa) ser examinado; por conseguinte, apreciá-la importa, por definição, conhecer daquele. Assim, a proposição sumulada não resiste à análise: afinal de contas, o que nela se estabelece é que o Tribunal tem competência para a rescisória sempre que, julgando embora o mérito do recurso, haja dito que não o julgava…
Quanto se expôs até agora basta para evidenciar que a crítica dirigida à praxe dominante não traduz simples requinte de preciosismo, nem se lhe pode atribuir a impertinência de desviar para assunto puramente formal a atenção de órgãos judicantes a braços com problemas jurídicos substanciais de alta relevância. O modo por que se julga o recurso, ficou demonstrado, repercute notavelmente no plano prático. Isso impede que se despreze com um dar de ombros, como se de mera nuga se cuidasse, a argumentação de ordem técnica.
A essa argumentação jamais se deu resposta convincente, nem no campo doutrinário, nem no jurisprudencial. Naquele, pela singela e óbvia razão de que a doutrina brasileira sempre condenou, em massa, a usual maneira de julgar, não nos constando que jurista algum se haja abalançado a defendê-la. Neste, porque ambos os órgãos – o Supremo Tribunal Federal e, com a ressalva que logo se fará o Superior Tribunal de Justiça – seguiam simplesmente o itinerário indicado pelo costume, com escassa preocupação de refletir sobre ele, e mais ainda de tentar justificá-lo. A declaração de “não conhecer” do recurso, nas hipóteses de que estamos cogitando, era e é uma reação por assim dizer automática, em que muito pouco de consciente entrava e entra – mal comparando, algo semelhante a um piscar de olhos ou a um bocejo.
Nas poucas vezes em que se tratou, direta ou indiretamente, de sugerir alguma justificação, o esforço resultou baldado. Em certos acórdãos – que o respeito devido à excelsa fonte nos induziria, noutras circunstâncias, a procurar esquecer -, insinuou-se, a guisa de suporte para a conclusão proclamada no julgamento do recurso, a figura do “não conhecimento por motivo de mérito”…5 Seria perda de tempo ocuparmo-nos aqui de desmontar esse extravagante artifício.
Em termos mais apurados, buscou-se defender o jeito habitual de julgar invocando uma pretensa peculiaridade dos recursos “extraordinários” – classe em que naturalmente se incluiria o especial. Nessa classe, sustentou- se, ao contrário do que sucede alhures, não seria aplicável o critério comum de distinção entre o juízo de admissibilidade e o juízo de mérito[6]. Tampouco essa tentativa podia vingar: primeiro, porque está longe de ser clara e unívoca no direito pátrio, a própria distinção entre recursos “extraordinários” e “ordinários”, à qual não há reconhecer valor científico ou prático; segundo, porque, ainda a aceitar-se a dicotomia, nenhuma base se descobre no ordenamento para legitimar o tratamento diferenciado das duas classes, pelo prisma relevante em nosso contexto.
A esta última afirmação poderia alguém objetar com o teor literal da Constituição da República, que outorga competência ao Superior Tribunal de Justiça para julgar o recurso especial “quando a decisão recorrida contrariar (…) lei federal” (art. 105, III, a), da mesma forma que dispõe sobre a competência do Supremo Tribunal Federal para julgar o recurso extraordinário “quando a decisão recorrida contrariar dispositivo desta Constituição” (art. 102, nº III, a). O raciocínio seria o seguinte: para que se configure, ad litteram, a competência do Tribunal, é preciso que a decisão impugnada contrarie realmente (e não apenas supostamente) a lei. Portanto, ao verificar a existência real da alegada contrariedade, está o Tribunal, ainda, apurando se é ou não competente para julgar o recurso. Está, pois, no plano preliminar; e, se sua conclusão é negativa (= a decisão não contrariou lei), o que ele deve fazer é recusar-se a julgar o recurso – ou seja, não conhecer deste. Tal objeção não se mantém de pé. Pondo de lado a pouco científica identificação entre a questão da competência e a da admissibilidade do recurso, sempre caberá replicar: muito bem, o Tribunal deu-se por incompetente para julgar o recurso (não conheceu dele, segundo a fórmula inspirada na falsa assimilação das duas questões) porque apurou que a decisão não contrariara lei; mas, se assim é, brota intuitiva a pergunta: que foi que o Tribunal, por não se achar competente, deixou de julgar? Nada: tudo que havia para examinar no recurso foi de fato examinado, não restou parcela alguma por decidir! O que se discutia era justamente, e exclusivamente, se a decisão se compadecia com a lei. O Tribunal deu resposta completa a essa indagação, quando reconheceu a compatibilidade; não o inibiu a ideia de que, inexistindo contrariedade à lei, lhe faltava competência… Destarte, reduz- se a puro sofisma negar que o Tribunal tenha julgado o recurso. Julgou-o, sim – e de meritis -, diga o que disser o acórdão.
De resto, o raciocínio acima descrito e refutado só o foi por amor à argumentação. Não é nele que se tem fundado a prática tradicional no julgamento do recurso interposto pela letra a do dispositivo constitucional sim e de meritis -, diga o que disser o acórdão.
De resto, o raciocínio acima descrito e refutado só o foi por amor à argumentação. Não é nele que se tem fundado a prática tradicional no julgamento do recurso interposto pela letra a do dispositivo constitucional.
Prova-o à saciedade a circunstância de que essa prática remonta ao tempo da primeira Carta republicana. Com efeito: ao contemplar recurso para o Supremo Tribunal Federal, o art. 59, § 1º, da Constituição de 1891 assim definia a hipótese que aqui interessa: “quando se questionar sobre a validade, ou a aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do tribunal do Estado forem contra ela”. A diferença é gritante: o texto de então não pressupunha erro algum na decisão recorrida, que podia perfeitamente ser correta apesar de haver concluído contra a validade ou a aplicação de lei federal – por exemplo, por entendê-la inconstitucional.
O confronto entre a fórmula do atual art. 105, nº III, a, e a do supracitado dispositivo fornece-nos a deixa para uma consideração importante. À semelhança do art. 59, § 1º, da Carta de 1891, as outras disposições do próprio art. 105, nº III, da vigente Constituição, têm estrutura nitidamente distinta da adotada na letra a. Tanto na letra b quanto na letra c, o “tipo” descrito é axiologicamente neutro: a decisão que “julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face de lei federal” (letra b) não será, só por isso, incorreta; e o mesmo se dirá da decisão que “der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal”. Sem dificuldade se percebe que, ao insurgir-se contra decisão com esta ou aquela característica, pode suceder que o recorrente tenha razão (se a lei ou o ato do governo local devia ter-se por inválido à luz da lei federal, ou se, além de discrepante da esposada por outro tribunal, era errônea a interpretação dada à lei federal), mas igualmente pode suceder que não tenha razão o recorrente (se a lei ou o ato local não padecia do alegado vício, ou se errônea era a diferente interpretação adotada pelo outro tribunal).
Daí ser mais fácil, para o tribunal, acomodar à boa técnica sua atividade, no julgamento de recursos interpostos pelas letras b e c. Ao que se saiba, nunca surgiu aí problema algum, no tocante à individualização dos dois juízos, o de admissibilidade e o de mérito. A ninguém ocorreria supor que o Tribunal, todas as vezes que conhece do recurso, deva necessariamente provê-lo, isto é, que fique pré-excluída, como inconcebível, decisão de conhecimento e desprovimento.
A essa luz, melhor ressalta a inconsistência do argumento ligado à classificação dos recursos em “ordinários” e “extraordinários” (supra, nº 4). Fosse exato que, em cada uma dessas duas classes, se houvesse de pôr e resolver em termos desiguais à questão da admissibilidade e do mérito, a consequencia seria, para dizer o menos, esquisitíssima: os recursos especiais interpostos pela letra a, a terem realmente a peculiaridade que se lhes atribui, mereceriam a qualificação de “extraordinários”; não assim, todavia, os recursos especiais interpostos pelas letras b e c: esses, sujeitando-se como quaisquer outros à distinção comum, teriam de ser relegados à casta dos “ordinários”. E mais: idêntica separação seria de rigor com referência ao art. 102, nº III: de um lado, os recursos interpostos pela letra a, de outro os interpostos pelas letras b e c – sujeitos estes e subtraídos aqueles à normal diferenciação entre juízo de admissibilidade e juízo de mérito, em operações sucessivas e inconfundíveis. Conseqüência: dentre os recursos previstos no art. 102, nº III, da Constituição, teríamos de considerar “ordinários” os interpostos pelas letras b e c, e “extraordinários” os interpostos pela letra a. Visto que a todos se refere a Carta com a expressão “mediante recurso extraordinário” (art. 102, nº III, caput), inevitável – conquanto esdrúxula – seria a conclusão de que os recursos extraordinários se subdividem em… ordinários e extraordinários. Não é difícil escapar a tão desconcertante beco sem saída. Basta con- siderar que o texto do art. 105, nº III, a, foi redigido com técnica deficiente. Onde se diz “quando a decisão recorrida contrariar…”, leia-se: “quando a decisão recorrida for acoimada de contrariar…” – e tudo se resolverá. Já não terá o Tribunal por que emaranhar-se nas teias artificialmente elaboradas para enfrentar um pseudo-problema[7]. Dêem-se aos bois os nomes adequados, e a paisagem de imediato se aclara. Recurso especial em que se alegue violação de lei federal – presentes todos os outros requisitos de admissibilidade – é recurso de que se conhece, e ao qual, depois, se dá ou se nega provimento, conforme se verifique, respectivamente, que a lei foi ou não foi violada.
Pois bem. Julgamentos recentes parecem revelar que o Superior Tribunal de Justiça está começando a persuadir-se de que esse é o verdadeiro caminho. Vamos apontar aqui cinco acórdãos, um de 1997 e quatro de 1998, nos quais o recurso especial fora interposto com invocação do art. 105, nº III, a, indicando o recorrente disposições supostamente violadas de leis federais, e o Tribunal, conhecendo dos recursos, com expressa referência à letra a, todavia lhes negou provimento, por haver-se convencido da inexistência das alegadas violações. Dois desses recursos estão publicados na Rev. do STJ, nº 102, pág. 127, e nº 111, pág. 57; dos outros, não chegamos a apurar publicação em revista ou repertório de jurisprudência, mas tivemos conhecimento dos respectivos textos por nímia gentileza do Ministro JOSÉ DELGADO, que deles nos remeteu cópias, e a quem consignamos aqui nosso mais profundo agradecimento.
Comecemos pelos acórdãos de cuja publicação temos notícia. O mais antigo é o do Recurso Especial nº 140.158, de que foi relator o Ministro Milton Luiz Pereira. Discutia-se matéria relativa à prescrição em favor da Fazenda Pública; e o Estado de Santa Catarina, ao recorrer, com base no art. 105, nº III, a, alegara violação do art. 1º do Decreto nº 20.910, de 1932. Lê-se no voto do relator: “Presentes os requisitos de admissibilidade impõe- se o conhecimento do recurso” (pág. 130). Segue-se o exame da questão federal controvertida; e, por entender que não se consubstanciara a suposta violação, assim conclui o Ministro: “… desfigurada contrariedade ou negativa de vigência ao art. 1º, Dec. Federal 20.910/32, voto improvendo o recurso” (pág. 133). O voto foi acompanhado unanimemente pelos outros membros do colégio judicante.
A outra decisão que vimos publicada é a do Recurso Especial nº 115.063, julgado em 17.4.1998[8]. Era recorrente a Fazenda Nacional, segundo a qual o acórdão impugnado ofendera vários dispositivos da Lei nº 4.595, de 1964, do Código Tributário Nacional e do Dec.-Lei nº 1.718, de 1979, ao negar a possibilidade de quebra de sigilo bancário em procedi- mento administrativo. Por unanimidade, de acordo com o voto do relator, Ministro Garcia Vieira, proclamou a Turma que só ao Poder Judiciário é lícito autorizar as instituições financeiras a quebrar o sigilo a que estão obrigadas em relação a bens, negócios e atividades de terceiros. Destarte, não havia erro no acórdão impugnado, isto é, não assistia razão à recorrente. O recurso merecia conhecimento, porque alegada a transgressão de leis federais, mas não devia ser provido, porque na verdade a transgressão não ocorrera. Daí haver dito – e muito bem – o relator, acompanhado sem discrepância: “Conheço do recurso pela letra a” (pág. 58); e, depois: “Nego provimento ao recurso” (pág. 59).
Outro acórdão expressivo é o do Recurso Especial nº 120.668, igualmente relatado pelo Ministro Milton Luiz Pereira e julgado em 10.2.1998. No dizer do Município de S.Paulo, recorrente, o acórdão recorrido contrariara o art. 27 do Código de Processo Civil e os arts. 62 e 63 da Lei nº 4.320, de 1964, havendo o vice-presidente do tribunal a quo admitido o recurso unicamente quanto à alegada violação do primeiro dispositivo citado. A questão de direito controvertida era, pois, a seguinte: podia o Município ser compelido ao adiantamento de verba destinada ao pagamento do salário de perito? O relator, desde logo, e com todo o acerto, deixou claro que não era possível deixar de conhecer do recurso: “Presentes os requisitos de admissibilidade, o recurso merece ser conhecido (art. 105, III, a, C.F.), conforme a fácies sintetizado no primeiro juízo de verificação”. Adiante, após longo exame da quaestio iuris, reconheceu a juridicidade da decisão que sujeitara o Município ao pagamento adiantado, ou seja, a sem razão do recorrente, e concluiu: “voto improvendo o recurso” – no que o seguiram os demais votantes.
Em 5.5.1998, julgou o Tribunal o Recurso Especial nº 165.946, de que foi relator o Ministro José Delgado. Cuidava-se de saber se a gratificação natalina se incorpora ao salário de contribuição para efeitos previdenciários, de modo que a empresa se sujeita à decorrente obrigação tributária. Entendia que não a recorrente, Braslo Produtos de Carne Ltda., e censurava ao acórdão recorrido o ter violado dispositivos do Código Tributário Nacional. O relator votou pelo conhecimento do recurso e, repelindo a tese da recorrente, negou provimento àquele. Tal foi o pronunciamento unânime da Turma.
Enfim, no julgamento do Recurso Especial nº 179.541 – também este relatado pelo Ministro Garcia Vieira -, em 15.9.1998, foram objeto de análise diferentes questões jurídicas, todas resolvidas em sentido contrário ao sustentado pela recorrente, a Caixa Econômica Federal. Conhecido o recurso pelas letras a e c do dispositivo constitucional, veio o Tribunal a desprovê-lo, por unanimidade, sempre nos termos do voto do Relator.
É cedo para assegurar que os exemplos trazidos à colação marquem na realidade um turning point na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Práticas longamente observadas costumam eternizar-se por força da inércia, ainda quando patente a carência de fundamento. Simplesmente não se pensa muito no assunto, e a marcha das coisas prossegue inalterada, obediente ao impulso inicial. Mas no Superior Tribunal Federal têm assento juristas exímios, inclusive especialistas em direito processual, cuja atenção cedo ou tarde será despertada para o problema em foco; e, desde que nele atentem, com certeza não deixarão de sensibilizar-se.
As decisões acima arroladas sinalizam o rumo correto. É de esperar que outras o sigam, e que a boa técnica prevaleça em definitivo. Seria, a nosso ver, magnífica forma de comemorar o décimo aniversário do Tribunal. Honrar-se-á ele sobremaneira se se dispuser a retificar o itinerário até o pouco habitualmente trilhado. Em absoluto não diminui uma Corte de Justiça reconhecer que laborava em erro e decidir-se a corrigi-lo; o que pode diminuí-la é nele perseverar. Não receemos o lugar-comum: Errare humanum est, perseverar e autem diabolicum…
[1] Trabalho destinado ao volume comemorativo do 10º aniversário do Superior Tribunal de Justiça.
[2] V.g., 9.5.1996, Emb. de decl. no Rec. Esp. nº 23.999, in D.J. de 3.6.1996, pág. 19.232.
[3] Aqui nos cingiremos a recordar os ensinamentos de PONTES DE MIRANDA, Comentários ao Código de Processo Civil (de 1973), Rio de Janeiro, t. VI, 3ª ed. (atualizada por Sergio Bermudes), 1998, págs. 172/3, e t. VIII, 1ª ed., 1975, págs. 173, 197; Tratado da ação rescisória, 5ª ed., 1976, Rio de Janeiro, SiJ 2XWUDV UHIHUrQFLDV ELEOLRJUi¿FDVin BARBOSA MOREIRA, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. V, 7ª ed., Rio de Janeiro, 1998, pág. 596, nota 68.
[4] Assim, por exemplo, EDMUNDO LINS, de quem vale a pena ler o excelente voto vencido no julgamento dos Emb. no Rec. Extr. nº 1.337, de 21.9.1921, in Rev. do STF, vol. 38, págs. 74/6 (cf., antes, o voto no julgamento dos Emb. no Rec. Extr. nº 1.328, de 13.10.1920, ibid., vol. 27, pág. 76); e PHILADELPHO AZEVEDO, conforme se vê pelos votos na Ação Resc. nº 28, in Um triênio de judicatura, vol. V, S.Paulo, s.d., pág. 116, e no Rec. Extr. nº 9.181, in Arq. Jud., vol. 78, pág. 299.
[5] Cuidamos, em mais de uma ocasião, de expô-los cumpridamente: vide nossos artigos Juízo de admissibilidade e juízo de mérito no julgamento do recurso especial, no vol. coletivo Recursos no Superior Tribunal de Justiça, ed. por Sálvio de Figueiredo Teixeira, S. Paulo, 1991, págs. 163 e segs., ou in Temas de Direito Processual, 5ª Série, S. Paulo, 1994, págs. 131 e segs.; e 4XHVLJQL¿FD³QmRFRQKHFHU´GH um recurso?, in Temas de Direito Processual, 6ª Série, S. Paulo, 1997, págs. 125 e segs. Cf., em termos mais sucintos, nossos Coment. ao C.P.C. cit. (nota 2), págs. 570, 595/7, 600.
[6]. Assim se manifestou o Ministro Relator nos Emb. de Decl. no Rec. Esp. nº 45.672, julgados em 24.4.1995.
[7] Mostrou haver percebido o ponto com toda a clareza um autor estrangeiro, comentando o art. 101, nº III, a, da Constituição de 1946: “How is it possible to determine, before the judgment of the Supreme Court is rendered, whether the decision appealed from was “contrary” to the federal law or not? The constitutional provision should be understood as saying: “When the decision is alledgedly contrary” (WAGNER, The Federal States and Their Judiciary, T’Gravenhage, 1959, pág. 324, nota 2).
[8] Ao eminente processualista e caro amigo MONIZ DE ARAGÃO devemos o ter chamado nossa atenção para esse julgado.