INTRODUÇÃO À RESPONSABILIDADE PENAL DE DIRIGENTES DE EMPRESA
Felipe Martins Pinto, Paula Brener, Ana Luíza Rodarte Bueno, Gabriella Martins Damasceno, Rodrigo Leonardo Vítor Xavier e Rebeca Correia
No Brasil, há um aumento da responsabilização criminal de agentes corporativos, utilizando instrumentos legais muitas vezes inadequados e desconsiderando direitos fundamentais, priorizando soluções penais onde poderiam ser administrativas.
Como nota preliminar, a Revolução Industrial outrora nos mostrou que o advento de novas tecnologias, o surgimento de novas classes e, por consequência, o conflito de vontades causam uma desarmonia social que, não raro, busca-se sanar pelo instrumento artificial da lei, no anseio de que o ser, o mundo dos fatos, seja mudado pelo dever ser, o mundo sonhado.
A partir desse mundo imaginado como ideal, no Brasil, percebe-se um incremento contínuo da responsabilização criminal de agentes corporativos pelas mais diversas estratégias, um verdadeiro expansionismo penal. Sabe-se, por exemplo, que diferentes institutos da dogmática (como o domínio do fato, a posição de garantidor, entre outros) são instrumentalizados e desviados para a ampliação da responsabilidade dos dirigentes de empresa, o que será abordado nos próximos textos desta coluna.
Isso é negativo na medida em que se utiliza o último recurso de força do Estado contra seu cidadão para resolver problemas que, por vezes, poderiam ser tratados em outras searas, principalmente pela via administrativa. Contudo, ao passo que a utilização do direito penal como primeiro meio de coerção torna-se regra, verifica-se, na mesma proporção, a não aplicação dos direitos e das garantias fundamentais de todo acusado em geral, sob os mais variados argumentos, especialmente àqueles de condão populista, exatamente para se garantir a celeridade de um procedimento que por sua natureza não precisava ser uma querela de Direito Penal.
Nesse cenário, como preâmbulo desta longa jornada que iremos arvorar, é necessário conhecer uma importante estratégia de responsabilização penal que vem sendo utilizada para a imputação de ilícitos penais à dirigentes de empresas, que orientará as discussões apresentadas nos próximos textos: a abordagem top down para atribuição de responsabilidade penal a dirigentes empresariais. Trata-se de um método de abordagem que imputa ao dirigente de empresa um ilícito penal, em função de sua posição de relevo na atividade empresarial, como se ele fosse a própria personificação da pessoa jurídica denunciada, devido, meramente, à posição que ocupa na sociedade empresarial. É inclusive recorrente que em denúncias caracterizadas por uma tal estratégia de imputação seja recorrente o uso da prosopopeia, figura de linguagem que substitui a parte pelo todo. Assim, descrevem-se condutas como se realizadas pela pessoa jurídica (“a empresa desmatou”; “a empresa fraudou”; “a empresa sonegou”), atribuindo-as, então, aos dirigentes, em função de sua posição na administração da empresa.
Esse tipo de imputação criminal, por sua vez, desconsidera por completo o fato de que a atividade empresarial requer a divisão de tarefas e competências, em um complexo fluxo informacional e de gestão, que não pode ser simplificado e reduzido. Ademais, esvazia os princípios orientadores do Direito Penal liberal como a legalidade e a culpabilidade, resumindo-se a um olhar angular, “de cima para baixo”[1]. Em verdade, a abordagem top down, de um modo geral, diz respeito a uma responsabilização penal objetiva, isto é, quando não se analisa a existência da conduta por parte do indivíduo envolvido no suposto ilícito penal, e sim sua mera posição no organograma corporativo.
É necessário destacar, nesse cenário, que o STJ (órgão jurisdicional responsável, dentre outros, pela uniformização da interpretação de determinado dispositivo legal no âmbito da Justiça Comum Estadual e Federal) vem decidindo que é inepta (leia-se incompleta, ausente de informação) a denúncia que atribui responsabilidade penal à pessoa física, levando em consideração apenas a qualidade dela dentro da empresa, deixando de demonstrar o seu vínculo com a suposta conduta delituosa[2]. Em outras palavras, embora seja comum o oferecimento de denúncias cuja imputação vale-se da abordagem top down, há entendimento majoritário do Superior Tribunal de Justiça pelo não acolhimento dessa tese – embora seja importante pontuar que há jurisprudência contrária a esse entendimento, interpretando ser admissível em sede de delitos de autoria coletiva a não plena descrição da conduta de cada agente[3].
O descumprimento dessa interpretação, por sua vez, sem desaguar no tecnicismo jurídico, viola institutos jurídicos materiais e processuais penais relevantes, tais como o princípio da legalidade penal (art. 5°, XXXIX, da Constituição da República e art. 1° do Código Penal); o princípio nullum crimen sine conducta (a punição como consequência de uma conduta pessoal ilícita); o modelo da responsabilização subjetiva, individual e pessoal adotado no direito penal brasileiro (art. 13 e 29 do Código Penal)[4].
Há, ainda, uma segunda abordagem de responsabilização penal que, diferentemente do método top down, leva à sério os limites estabelecidos pelo princípio da legalidade e da culpabilidade, com a adequada identificação de responsáveis a partir de suas condutas, deveres e funções no caso concreto, verificando a ligação de cada indivíduo para com o resultado delitivo. Trata-se do método bottom up, ou seja, “de baixo para cima”, partindo da pessoa mais próxima do resultado, ou seja, do indivíduo imediatamente vinculado ao resultado, para, então, apurar em cadeia quais outros agentes ou omitentes possam ter contribuído para o fato. Dessa forma, seguindo a dogmática reconhecida pelo ordenamento jurídico brasileiro, individualiza-se as condutas na medida da culpabilidade de cada agente[5].
Em síntese, “desde que atento aos limites da legalidade, o paradigma da responsabilidade penal empresarial é legítima e veio para ficar”[6]. Portanto, o objetivo dos próximos textos desta coluna está em auxiliar a diagnosticar os riscos no âmbito criminal e permitir a correção de falhas organizacionais, propiciando-se um ambiente estável e seguro no desenvolvimento da atividade empresarial.
FONTE: https://www.migalhas.com.br/depeso/408053/introducao-a-responsabilidade-penal-de-dirigentes-de-empresa
[1] ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017, p. 52-53.
[2] STJ. Sexta Turma. HC 69.018/SP. Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura. J. 03/09/2009. DJe 19/10/2009; STJ. Quinta Turma. RHC 45.464/SP. Rel. Ministro Ribeiro Dantas. J. 27/02/2018. DJe 05/03/2018; STJ. Quinta Turma. RHC 96.738/RS. Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. J. 24/04/2018. DJe 07/05/2018; STJ. Quinta Turma. RHC 105.167/SP. Rel. Ministro Joel Ilan Paciornik. J. 21/03/2019. DJe 02/04/2019; STJ. Sexta Turma HC 509.353/RO. Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior. J. 24/09/2019. DJe 03/10/2019; STJ. Sexta Turma. REsp 1.854.893/SP. Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz. J 08/09/2020, DJe: 14/9/2020; e outros.
[3] STF. Segunda Turma. HC 73.638. Rel. Min. Maurício Corrêa. J. 30/04/1996. DJe 07/06/1996; STF. Segunda Turma. HC 79237. Rel. Min. Nelson Jobim. J. 26/10/1999. DJe 12/04/2002; STF. Primeira Turma. HC 118.891. Rel. Min. Edson Fachin. J. 01/09/2015. DJe 20/10/2015; STJ. Sexta Turma. HC 7.223/CE. Rel. Min. Anselmo Santiago. J. 13/10/1998. DJe 23/11/1998.
[4] ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017, p. 60: “A primeira é derivada do próprio modelo de responsabilidade pessoal individual adotado por nosso ordenamento jurídico, que parte de contribuições pessoais e causais como substrato mínimo para análise dos demais pressupostos da responsabilidade penal (arts. 13, caput, e 29, CP), e a própria descrição dos tipos penais da parte especial, que descrevem ações ou omissões”. Nesse sentido: BRENER, Paula. Ações neutras e limites da intervenção punível: sentido delitivo e desvalor do comportamento típico do cúmplice. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2021, p. 43: “(…) Assim, à causalidade do comportamento (artigo 13 do Código Penal) se soma a norma constitutiva da punibilidade da participação, disposta no artigo 29 do Código Penal: ‘Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade’. Diante disso, o tipo penal da participação resulta de uma compreensão sistemática, decorrente da articulação entre o artigo 29 do Código Penal, norma extensiva constitutiva da punibilidade da participação, e os tipos penais da parte especial do Código”.
[5] PINTO, Felipe Martins; BRENER, Paula. Responsabilização de gestores pela mera posição na hierarquia corporativa: tipo objetivo e tipo subjetivo na expansão do direito penal empresarial, p. In: Organizado por Marcelo Azevedo e Bruno Malta. Direito do ambiente em perspectiva. Belo Horizonte, São Paulo: Editora D’Plácido, 2020, p. 523; MANSDÖRFER, Marco. Responsabilidad e imputación individuales em la ejecución de tareas en grupo. InDret,
[6] PINTO, Felipe Martins; BRENER, Paula. Responsabilização de gestores pela mera posição na hierarquia corporativa: tipo objetivo e tipo subjetivo na expansão do direito penal empresarial, p. In: Organizado por Marcelo Azevedo e Bruno Malta. Direito do ambiente em perspectiva. Belo Horizonte, São Paulo: Editora D’Plácido, 2020, p. 537.