A INSOLVÊNCIA TRANSNACIONAL E A REFORMA DA LEI DE RECUPERAÇÕES E FALÊNCIAS
Adriano Schnur
Renata Oliveira
Nathalia Cristina Mello Vargas
No dia 24 de dezembro de 2020, o presidente da República sancionou com vetos o Projeto de Lei nº 4.448, que altera a Lei nº 11.101/2005. O projeto havia sido aprovado pelo Senado Federal em 25 de novembro e, após a sanção, foi convertido na Lei nº 14.112 de 2020. A nova lei passa a ter vigência em 23 de janeiro de 2020, mas cabe ressaltar que os vetos ainda poderão ser avaliados pelo Congresso Nacional.
Apesar da divergência entre os especialistas quanto à necessidade de atualização da Lei de Recuperações e Falências, um ponto que grande parte da comunidade jurídica concordava era a necessidade do Brasil regular a insolvência transnacional, tal como disposto pela Lei Modelo da Uncitral (United Nations Comission on International Trade Law) sobre o tema.=
Em linhas gerais, as regras de insolvência transnacional são necessárias quando os ativos do devedor estão localizados em diversas jurisdições ou quando alguns dos credores estão localizados em jurisdição diversa daquela em que o processo principal é conduzido, o que poderá suscitar atuação concorrente de múltiplas jurisdições.
Nesse contexto, em 1997, a Uncitral aprovou a Lei Modelo sobre Insolvência Transnacional, a fim de implementar mecanismos de cooperações internacional entre os tribunais e demais autoridades competentes dos Estados, o que tinha por objetivo maior a segurança jurídica entre as relações empresariais.
A Lei Modelo não possui efeito vinculante entre os Estados signatários, de modo que os países signatários possuem liberdade para incorporar ou não a Lei Modelo em seus respectivos sistemas jurídicos.
Aqui no país, não obstante a insolvência transnacional não ser até então regulada pela Lei 11.101/2005, as cortes nacionais vinham permitido que determinadas sociedades estrangeiras integrassem o pólo ativo do pedido de recuperação judicial do grupo no caso de sociedades estrangeiras integrantes do mesmo grupo economico de sociedades brasileiras que pedem recuperação judicial no Brasil e cujo centro de principal interesses seja o Brasil, tal como no caso de veículos offshore utilizados para captação de recursos.
A jurisprudência, baseada nos artigos 3 da Lei 11.101/2005, vem, a nosso ver, até esse dado momento, adotando uma visão eminentemente territorialista.
Com o advento da Nova Lei, a Lei Modelo foi substancialmente incorporada pelo sistema de insolvência brasileiro, especificamente no extenso Capítulo VI-A incluído na Lei 11.101/2005.
A Seção I do capitulo sobre insolvência transnacional, entre outros pontos, estabelece os princípios que irão reger a insolvência transnacional (como a segurança jurídica para a atividade econômica e para o investimento, a cooperação entre juízes, a maximização dos ativos, a uniformidade e a boa-fé), conceitua os institutos (ex.: o que se considera processo estrangeiro, processo principal, processo estrangeiro não principal, estabelecimento, representante estrangeiro, entre outros) e elenca os casos de aplicação da insolvência transfronteiriça, quais sejam:
(i) autoridade estrangeira que precise de assistência no Brasil para processo estrangeiro;
(ii) assistência relacionada a processo disciplinado pela Lei 11.101/2005 pleiteada em país estrangeiro;
(iii) processo estrangeiro e processo disciplinado pela Lei 11.101/2005 relativos ao mesmo devedor em curso simultaneamente; e
(iv) credores ou interessados com o objetivo de em requerer a abertura de processo disciplinado na Lei 11.101/2005 ou dele participar.
Ademais, será fixada a competência do local do principal estabelecimento do devedor no Brasil para reconhecimento de processo estrangeiro e para cooperação com autoridade estrangeira.
Também haverá a permissão expressa para que o devedor em recuperação judicial ou recuperação extrajudicial e o administrador judicial designado para uma falência no Brasil atuem em outros países, independentemente de decisão judicial, desde que a providência seja admitida no país em que tramita o procedimento estrangeiro.
A Seção II trata do acesso à jurisdição brasileira, de modo que, ao adotar a Lei Modelo, a Nova Lei permite que o representante estrangeiro postule diretamente ao juiz brasileiro e assegura aos credores estrangeiros os mesmos direitos conferidos aos credores nacionais, entre eles o de receber as informações acerca dos processos de forma ágil, completa e adequada, sendo desnecessário uso de rogatória.
Estabelece ainda regras sobre a classificação de créditos estrangeiros, tais como: (i) créditos tributários, previdenciários e penas pecuniárias por infração penal e administrativa não participarão dos processos de recuperação e terão natureza subordinada em um cenário de falência, (ii) crédito do representante estrangeiro que não seja o próprio devedor será equiparado ao do administrador judicial brasileiro e (iii) os créditos que não tiverem correspondência com a Lei 11.101/2005 serão quirografários. Por fim, dispõe que os juízes nacionais devem oficiar o Banco Central para permitir a remessa de valores devidos aos credores estrangeiros.
Na sequência, a Seção III trata do reconhecimento dos procedimentos estrangeiros, simplificando em muito o processo respectivo. Com a adoção da Lei Modelo, exige-se apenas a apresentação de documentos legalizados e traduzidos, como regra geral, que atestem a existência do procedimento estrangeiro e nomeação do respectivo representante estrangeiro.
Também são estabelecidas regras para definir quando o processo estrangeiro será reconhecido como principal ou não principal, sendo que também será reconhecido como não principal se o centro de interesses principais do devedor tiver sido transferido ou manipulado com o objetivo de transferir para outro Estado a competência jurisdicional, sendo este último ponto uma novidade da Nova Lei brasileira quando comparada à Lei Modelo.
A Nova Lei prevê, ainda, que a decisão de reconhecimento pode ser recorrida e pode ser revista a qualquer momento a pedido dos interessados se comprovado que os requisitos para tanto não existiam ou deixaram de existir.
Reconhecido que o processo estrangeiro é o principal, os processos de execução e outras medidas individualmente tomadas por credores relativas ao patrimônio do devedor serão suspensas (excetuando-se os créditos extraconcursais), podendo ainda o juiz brasileiro determinar a ineficácia de transferência, oneração ou qualquer outra forma de disposição de bens do ativo não circulante do devedor realizadas sem prévia autorização judicial.
Não obstante, o juiz poderá, nos casos em que presentes os requisitos e para proteção da massa falida ou para eficiência da administração, conceder tutela provisória antes mesmo da decisão acerca do reconhecimento.
Acerca da suspensão, a Nova Lei dispõe que processos de conhecimento e arbitragens podem prosseguir e que a suspensão não atinge os credores extraconcursais.
A partir da decisão do reconhecimento, o representante estrangeiro de processos principais ou processos não principais pode requerer outras medidas ao juiz brasileiro como oitiva de testemunhas, colheita de provas, informações sobre bens, entre outras e ajuizar ações revocatórias.
A penúltima Seção do capítulo trata da cooperação com autoridades e representantes estrangeiros. Apesar de os dispositivos inseridos na Lei 11.101/2005 não interferirem no sistema de homologação de sentenças estrangeiras, há uma inequívoca flexibilização dos meios de cooperação, sendo dispensados os meios tradicionais via carta rogatória.
A última Seção do capítulo trata dos processos concorrentes, seja para indicar que um processo de recuperação judicial, recuperação extrajudicial ou de falência só serão iniciados no Brasil se o devedor possuir bens ou estabelecimento no país, seja para estabelecer que sempre que o processo estrangeiro e o processo de recuperação judicial, de recuperação extrajudicial ou de falência estiverem em curso, o juiz deverá buscar a cooperação e a coordenação entre eles, incluindo em relação ao término dos processos.
Há ainda previsão de quais informações devem ser prestadas ao juízo responsável pelo processo principal (a saber: valor do passivo, valor dos ativos, classificação dos créditos, relação das ações envolvendo ou de interesse da devedora, entre outras).
Ainda que a incorporação da Lei Modelo da Uncitral não resolva todas as questões que possam surgir na tentativa de coordenação de procedimentos, não se pode negar que a adoção da Lei Modelo significa um avanço legislativo e permitirá o desenvolvimento da jurisprudência nacional quanto à insolvência transnacional, reforçando a tão necessária segurança jurídica.