A INOVAÇÃO DO ART. 139, IV, DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA: ESTAMOS NO CAMINHO ADEQUADO PARA DESENVOLVER O PROCESSO JUSTO?
Francisco Vieira Lima Neto
Myrna Fernandes Carneiro
SUMÁRIO: 1 O Processo à Luz da Constituição Federal de 1988. 2 A Busca pela Efetividade; 2.1 Breve Histórico da “Execução Indireta“; 2.2 O Tratamento da Matéria no CPC/2015; 2.3 Punição x Coerção. 3 A Reação ao Art. 139, IV, do CPC; 3.1 Breves Considerações sobre o Impacto do “Novo“; 3.2 A Jurisprudência. 4 Conclusão: Estamos no Caminho Certo?. 5 Referências Bibliográficas.
1 O Processo à Luz da Constituição Federal de 1988
É de conhecimento comum a todos aqueles que se relacionam com o processo civil a drástica modificação na visão de processo que se operou no final do século XX (no Brasil, notadamente depois da Constituição Federal de 1988). O Código de Processo Civil de 1973, promulgado em plena ditadura militar, albergava ideias liberais e preocupava-se com o tratamento autônomo do direito processual civil a fim de desvinculá-lo do direito material, avultando o interesse em afirmá-lo como ciência.
Nesta fase (do processualismo), a técnica processual ocupava a centralidade da preocupação do legislador, que estudava a fundo a norma jurídica e sua configuração a fim de prever um iter a ser fiel e taxativamente observado pelo juiz para solução dos litígios que lhe eram submetidos. “A tarefa do juiz, então, cingia-se a descobrir a ‘vontade concreta da lei’” [1], o que fazia através de um caminho predeterminado de atos processuais a ser seguido, sem qualquer preocupação valorativa com a justiça ou a ética no que tange à técnica processual.
Contudo, esta visão estreita de processo foi alterada com a influência do novo constitucionalismo europeu, desenvolvido no período pós-guerra com a preocupação de efetivação dos direitos fundamentais (também através do processo), de forma que se alterou “o enfoque principal [do direito processual civil] dos conceitos e categorias para a funcionalidade do sistema de prestação da tutela jurisdicional” [2].
A Constituição Federal de 1988 é marcada pela adoção de princípios, conceitos indeterminados e cláusulas abertas, com o desiderato de conferir maleabilidade ao direito e impedir que o engessamento de uma única visão acabe servindo para tolher direitos fundamentais, como a história recente havia mostrado ser possível.
Esta alteração no paradigma constitucional reverberou no processo, que deixou de ser visto como “somente forma“, ou “somente técnica“, e passou a ser visto como a técnica capaz de assegurar e concretizar os direitos fundamentais constitucionais, sendo por isso, ela mesma, um direito constitucional. A ideia de devido processo legal, assim, é remodelada para não mais significar a necessidade de obediência cega a uma ritualística predefinida pela lei, e sim para ser vista como a técnica destinada ao asseguramento do processo justo, desejado pelo legislador constituinte ao estabelecer, dentre o rol de direitos fundamentais, normas mínimas sobre processo que não podem ser alteradas ou extirpadas pelo legislador reformista [3].
O processo, então, passa a ser permeado de valores, destacando a doutrina que é através da ponderação entre dois valores fundamentais – efetividade e segurança jurídica – que se busca alcançar um “processo tendencialmente justo” [4], ou seja, capaz de entregar a tutela jurisdicional à parte em tempo célere através de um processo em que tenha imperado o diálogo e a colaboração, com a participação efetiva de todos os interessados no resultado final.
Sintetiza Humberto Theodoro Junior que “o ideal, na implantação de um processo justo, é, de fato, que sua duração seja breve, mas sem impedir que o contraditório e a ampla defesa se cumpram” [5].
Nesta fase de superação do formalismo excessivo para o surgimento de um formalismo valorativo [6], “o processo começa a ser percebido como um instituto fomentador do jogo democrático (FAZZALARI, 1958, p. 875), eis que todas as decisões devem provir dele, e não de algum escolhido com habilidades hercúleas” [7].
Fixada esta premissa, não há como dissociá-la, especificamente, do processo de execução (ou da fase executiva do processo sincrético). Isso porque na execução desemboca toda a atividade jurisdicional. Aquele que procura o Poder Judiciário não busca, primariamente, uma folha de papel que declare seu direito; busca, isso sim, a concretização do direito reconhecido no mundo dos fatos.
É através da execução que o provimento jurisdicional atinge e altera a situação fática, fazendo com que o primado do direito seja efetivamente restabelecido. Torna-se necessário, assim, repensar o processo de execução, adequando-o à ideia de prestação de uma tutela jurisdicional tempestiva, efetiva e adequada a quem dela necessita.
Como destaca Marcelo Guerra, o juiz deve efetivar sua escolha por um meio executivo “à luz dos limites impostos pela natureza e função de tais medidas, assim como aquelas garantias processuais asseguradas ao devedor e, acima de tudo, o Estado Democrático de Direito em que se deve preservar a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III)” [8].
É nesta perspectiva – de que o processo de execução está permeado de valores, notadamente da tensão entre efetividade x segurança, e deve produzir um resultado no mundo dos fatos que concretize os direitos fundamentais pertinentes sem descurar de que o caminho para a produção deste resultado (o processo) também deve, ele mesmo, concretizar direitos fundamentais dos envolvidos – que devem ser encaradas criticamente as reformas promovidas na execução, que desaguaram na adoção de um sistema atípico de medidas coercitivas como forma de (tentar) garantir a efetividade do processo.
2 A Busca pela Efetividade
2.1 Breve Histórico da “Execução Indireta”
O fato de a tensão entre efetividade x segurança jurídica ter sido sempre decidida em favor da última durante a fase do processualismo, atrelado a outras questões externas ao processo[9], produziu verdadeira crise da justiça em razão da morosidade com que as regras jurisdicionais eram conferidas às partes interessadas. Como assinala Humberto Theodoro Junior, “demorar, sem justa causa, na prestação da tutela jurídica efetiva a quem tem, constitucionalmente, o direito de obtê-la, equivale a denegá-la, na ordem prática” [10].
Embora sejam muitas e variadas as causas da morosidade da justiça – algumas ligadas a “problemas administrativos e funcionais gerados por uma deficiência notória da organização do aparelhamento burocrático do Poder Judiciário brasileiro“[11] -, certo é que também a ritualística fechada prevista pelo CPC/73 para o processo autônomo de execução contribuía – e muito! – para a crise que se instaurou.
Como aponta Guilherme Rizzo, “é o engessamento das técnicas de tutela que contribui para a injustiça e a debilidade do processo, seja para o autor, seja para o réu“, pois predefinir todas as etapas de um “programa processual” como único meio de realizar o direito material “significa algemar o juiz e torná-lo mero espectador ou fiscalizador do funcionamento débil do aparato processual” [12].
Este modelo que tipifica etapas de um programa fechado a ser obrigatoriamente seguido para realização do direito material pelo próprio Estado, à força (execução direta e típica), mostrou-se insuficiente para garantir a realização do direto daquele que tem razão.
Primeiro porque, em muitos casos, somente através da conduta do próprio executado se pode atingir, através do processo, o resultado mais próximo possível daquele que se teria produzido caso não tivesse ocorrido a crise de inadimplemento (do direito material). Segundo porque, “mesmo quando há, em tese, a possibilidade de sub-rogação, as providências substitutivas de conduta (do executado) tendem a ser onerosas e demoradas” [13]. Com efeito, o rito demorado e previamente conhecido pelo devedor permitia a ele se preparar para os atos por vir, de forma que, quando atingido o momento de sua realização, não mais era capaz de produzir resultados eficazes.
Começou a ser percebida, cada vez com mais destaque, a necessidade de mecanismos que, ao invés de substituir a conduta do executado, tivessem o condão de induzi-lo a praticá-la, gerando um resultado prático o mais equivalente possível ao que teria advindo do adimplemento espontâneo e voluntário e, ainda, mais célere[14].
Assim, várias foram as leis editadas para remodelar os procedimentos previstos pelo CPC/73 em nome da efetivação da tutela jurisdicional. Tratamos de efetividade, aqui, como
“(…) o conjunto de direitos e garantias que a Constituição atribuiu ao indivíduo que, impedido de fazer justiça por mão própria, provoca a atividade jurisdicional para vindicar bem da vida de que se considera titular. A este indivíduo devem ser, e são, assegurados meios expeditos e, ademais, eficazes, de exame da demanda trazida à apreciação do Estado. Eficazes no sentido de que devem ter aptidão para propiciar ao litigante vitorioso a concretização fática de sua vitória.” [15]
Assim é que, por exemplo, foi generalizada a possibilidade de antecipação de tutela através do art. 273 do CPC/73 pelas Leis ns. 8.952/94 e 10.444/02; foi prevista a possibilidade de imposição de astreintes [16] para coerção do devedor (art. 461, § 4º, por exemplo, inserido através da Lei nº 8.952/94); foram reunidas a atividade cognitiva e a atividade executiva num mesmo processo sincrético (Lei nº 11.232/05) e foi, ainda, encampada a possibilidade de o juiz decidir, à luz do caso concreto, que meios coercitivos são hábeis a compelir o devedor a cumprir obrigação de fazer ou não fazer (através da inclusão do § 5º do art. 461 pela Lei nº 8.952/97 e posterior alteração pela Lei nº 10.444/02), abrindo um novo leque de possibilidades para a concretização do direito material no plano fático.
Superando o antigo brocardo liberal nemo potest cogi ad factum, segundo o qual ninguém pode ser obrigado a praticar um ato [17], observou-se que o direito de liberdade do executado se opõe, na execução, ao direito à tutela efetividade, adequada e tempestiva do exequente. Tem-se, portanto, um choque de direitos fundamentais, não podendo o direito à liberdade exsurgir sempre e por inteiro como o vencedor de forma a não se justificar qualquer abrandamento seu.
Abriu-se espaço, assim, para a chamada “execução indireta“.
A definição do que se conceitua, hoje, “execução indireta” não apresenta notáveis divergências doutrinárias. Luiz Rodrigues Wambier [18] a define como “o uso de mecanismos destinados a pressionar psicologicamente o devedor, a fim de que ele mesmo satisfaça a obrigação (rectius: dever)“.
Araken de Assis [19] destaca se tratar de meio executório “em que a finalidade precípua do mecanismo reside em captar a vontade do executado“, o que se faz mediante “pressão psicológica” consubstanciada em ameaça (de prisão, multa…). No mesmo sentido, Marcelo Abelha [20] define o instituto como o conjunto de “meios coercitivos impostos com o desiderato de compelir o executado a adimplir o dever ou a obrigação“.
Verifica-se, portanto, que a diferença fundamental entre a execução indireta e a direta consiste em que nessa última as medidas empregadas pelo juiz realizam, elas mesmas, a tutela executiva (vale dizer, a satisfação coativa do credor), enquanto na execução indireta a tutela realiza-se sempre com o cumprimento pelo próprio devedor da obrigação, embora induzido pela imposição de medidas coercitivas [21].
O ápice do reconhecimento da execução indireta, sob a égide do Código anterior, se deu com a inclusão do já referido § 5º no art. 461, que dispunha, com a redação que lhe fora dada pela Lei nº 10.444/02:
“Art. 461. (…)
- 5º Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.”
O dispositivo legal confere ao juiz, portanto, o poder-dever de determinar “as medidas necessárias” para a efetivação de sua ordem, passando a apresentar rol meramente exemplificativo depois disso (como se infere pelo uso da expressão “tais como“). Trata-se, como pontuou Marcelo Guerra, de verdadeira “norma de encerramento” [22] a consagrar a atipicidade dos meios coercitivos na execução das obrigações de fazer e não fazer.
Como destaca Guilherme Rizzo Amaral, os dispositivos possuem uma “instabilidade virtuosa“, uma “adaptabilidade, maleabilidade em face de eventual resistência ao seu cumprimento verificada no plano real” [23], indo ao encontro da efetividade tão buscada através das sucessivas reformas da execução.
Esta possibilidade, contudo, não havia chegado à execução de pagar quantia que abarrotam o Poder Judiciário. Como já pontuava Guilherme Rizzo Amaral, a exemplo de outros processualistas que se detinham sobre o assunto, a natureza das obrigações submetidas à técnica de tutela condenatória não é, em si, incompatível com a adoção de medidas coercitivas voltadas a coagir o devedor a cumprir pessoalmente a obrigação [no caso, de pagar], existindo, na verdade, incompatibilidade legislativa [24].
Neste cenário, iniciaram-se os estudos voltados à confecção de um novo Código de Processo Civil que, conforme justificativa de seu anteprojeto, orientou-se precipuamente por cinco objetivos: (a) o da harmonia com a Constituição Federal; (b) o da fidelidade ao contexto social, com maior aderência possível às realidades subjacentes ao processo; (c) o da simplificação dos procedimentos, eliminando formalidades ou atos desnecessários ou inúteis; (d) o do maior rendimento possível, para otimização dos resultados de “cada processo em si mesmo considerado“; e (e) o de “imprimir maior grau de organicidade ao sistema, dando-lhe assim maior coesão” [25].
O novo Código é marcado pelo “empenho pela aceleração” [26], como se pode ver na disciplina de muitos institutos como a tutela de evidência (art. 311) e a estabilização das tutelas antecipadas (art. 304) além de, é claro, o novo regramento acerca da imposição de medidas coercitivas voltadas ao cumprimento da decisão judicial (art. 136, IV, do CPC).
2.2 O Tratamento da Matéria no CPC/2015
O novo Código, avançando em relação ao tratamento legislativo anterior da matéria, não trouxe a cláusula de atipicidade de meios coercitivos em capítulo referente a processos de execução ou ao cumprimento de obrigações, e sim em capítulo referente aos “poderes, deveres e responsabilidade do juiz“, a saber, Capítulo I do Título IV (“Do Juiz e dos Auxiliares da Justiça“) do Livro III (“Dos Sujeitos do Processo“), com a seguinte redação:
“Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:
(…)
IV – determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária.”
Até então as medidas coercitivas eram instituto afeto às execuções (quer se lhes reconhecesse a natureza de “verdadeira” execução ou não [27]), visto que previstas especificamente para este tipo de atividade (executiva). Daí a razão, aliás, de terem sido agrupadas sob o rótulo de execução indireta.
Como as medidas coercitivas típicas de que se tinha notícia no CPC/73 se relacionavam especificamente com processos de execução, o mesmo panorama se manteve após a reforma legislativa que previu a possibilidade de uso de meios coercitivos atípicos para cumprimento das obrigações de fazer, não fazer e dar coisa (diversa de dinheiro) através dos arts. 461 e 461-A, e a coerção ficou adstrita à atividade executiva, a fazer com que o direito tutelado “no papel” alcançasse finalmente o “mundo dos fatos” [28].
Hoje, a referida cláusula permite ao juiz eleger e aplicar meios coercitivos necessários “para assegurar o cumprimento de ordem judicial” sem restringi-los a um tipo específico de “ordem judicial” (àquela voltada a fazer com que a parte cumpra uma obrigação de direito material de dar, fazer, não fazer ou pagar que lhe tenha sido imposta).
Parece-nos que podem os meios coercitivos ser aplicados para assegurar o cumprimento de qualquer ordem judicial – como, por exemplo, a ordem a um terceiro a fim de que exiba documento ou coisa para instrução do feito.
O tratamento do tema pelo CPC/2015 sugere não só a intenção de desvincular os meios coercitivos das execuções específicas de fazer, não fazer e dar a fim de alcançar também a execução de pagar quantia, como, ainda, de desvinculá-los da própria atividade executiva a fim de alcançar qualquer manifestação judicial que consubstancie ordem a alguém que de qualquer forma participe do processo.
Esta ideia, segundo pensamos, condiz tanto com a influência do contempt of court na construção do modelo brasileiro de técnicas de coerção [29] como com a influência do direito francês, pois neste se verificou ampliação da abrangência das astreintes, por reforma legislativa, para que viessem a ser aplicadas também para fins instrutórios do processo (“astreintes internas ao processo“) e para medidas de caráter provisório (cautelar ou antecipatório), extrapolando a atividade de natureza executiva [30].
E, independentemente de qualquer influência do direito estrangeiro, a interpretação ora preconizada do art. 139, IV, do CPC/2015 é compatível tanto com sua redação como com o local em que foi inserida no Código, bem como com a preocupação ética do processo que foi resgatada pela CF/88.
Rememore-se, aliás, que na esteira da nova ordem constitucional, o CPC/2015 positivou o princípio da cooperação, que exige que todos aqueles que participam do processo ajam segundo os ditames da boa-fé objetiva, e não só as partes.
Assim, mantemos o uso da expressão “execução indireta” neste artigo apenas porque seu escopo é tratar da aplicação da técnica de coerção à atividade executiva, e não porque a técnica esteja legalmente adstrita a este tipo de atividade.
2.3 Punição x Coerção
Para melhor compreensão da análise a ser feita a seguir acerca dos posicionamentos jurisprudenciais relativos ao novo modelo de medidas coercitivas, cumpre fazer breve digressão sobre a forma como foram incorporadas, historicamente, em nosso direito positivo.
Reconhece-se, nesta seara, a absorção de influências distintas pelo legislador brasileiro: de um lado, do sistema de contempt of court oriundo do common law inglês e norte-americano e, de outro, do sistema de astreintes do direito francês.
O contempt of court é instrumento destinado a resguardar a autoridade da Corte, reconhecendo o desacato por parte daquele que descumpre a ordem judicial emanada contra si e permitindo a imposição de medidas com duas finalidades diversas: “(…) se através do contempt of court se objetiva induzir (coagir) a parte a cumprir uma ordem judicial, diz-se que se trata de civil contempt. Se, por um lado, se trata apenas de punir uma conduta desrespeitosa, tem-se um criminal contempt” [31].
Tendo em vista o desiderato de resguardar a autoridade da Corte, as medidas de cunho pecuniário impostas à parte em decorrência do contempt of court se destinam ao Estado [32]. Note-se, ainda, que não há prévia definição das medidas que podem ser tomadas pelo juiz, a quem é conferido o poder-dever de defini-las no caso concreto, consagrando a atipicidade.
De outro lado, o direito francês construiu jurisprudencialmente mecanismo voltado também a assegurar o cumprimento de ordens judiciais. Contudo, fê-lo instituindo um mecanismo específico para este fim: as astreintes. Consagrou-se, assim, a tipicidade.
As astreintes do direito francês têm a natureza de “pena privada, uma vez que a quantia devida em razão de sua decretação é entregue ao credor” e são, por definição, medida coercitiva, “cujo único objetivo é pressionar o devedor para que ele cumpra o que lhe foi determinado por uma decisão condenatória” [33].
Expostas, em breves linhas, estas características dos direitos estrangeiros que mais influenciaram a evolução legislativa da matéria no Brasil, e sem desprezá-las, pensamos que devem servir apenas como diretriz interpretativa para eventuais controvérsias surgidas da omissão legislativa ou da pluralidade de interpretações possíveis decorrentes de eventuais vícios de linguagem dos textos legais. Isso porque o direito brasileiro não se identifica nem com um modelo, nem com outro, inaugurando um tratamento autônomo e próprio da matéria.
Parece-nos que a sistemática do novo Código Processual Civil acerca das medidas atreladas ao cumprimento da ordem judicial (cujo descumprimento enseja diferentes consequências) não decorre de um acidente ou equívoco do legislador na não compatibilização do sistema francês e do sistema de contempt of court que teriam sido absorvidos pelo direito brasileiro [34], e sim de uma opção legislativa consciente de criar um sistema novo inspirado nas experiências estrangeiras.
Imagine-se, por exemplo, que ao resolver uma ação de obrigação de fazer o magistrado, em sentença, convença-se do direito alegado pelo autor. Julga, então, procedente o pedido e ordena ao réu que execute a obrigação de fazer. Pode, já neste ato, fixar o prazo para cumprimento da medida e as astreintes a incidir em caso de descumprimento de tal prazo. Pode, ainda no mesmo ato, advertir o réu de que o descumprimento da ordem poderá ser punido como ato atentatório à dignidade da justiça nos termos do art. 77, IV, do CPC/2015.
Em caso de descumprimento da ordem, portanto, o réu será condenado ao pagamento das astreintes em favor do autor (arts. 523, § 1º, e 536, § 1º) e também ao pagamento de multa revertida em favor do Estado (art. 77, §§ 2º e 3º) pelo mesmo ato, nos termos do § 4º do art. 77 do CPC/2015 – sem prejuízo, ainda, da imposição de outras medidas coercitivas atípicas que se mostrem adequadas ao caso concreto.
Assim, é característica do modelo brasileiro a cumulatividade das consequências (punitivas e coercitivas) do não atendimento da ordem judicial, tendo absorvido a influência, neste ponto, do contempt of court. Também é característica sua a dualidade de destinação dos valores obtidos do devedor em função de medidas punitivas ou coercitivas, nos termos explicitados no parágrafo acima, ponto em que foram absorvidas influências tanto do contempt of court como do direito francês.
Ademais, a nova legislação encerrou a discussão acerca do caráter geral de tais medidas (não limitadas a um tipo específico de processo ou de atividade jurisdicional, nem sob a ótica punitiva, nem sob a coercitiva). Optou, ainda, pelo sistema de tipicidade das medidas punitivas e de atipicidade das medidas coercitivas, estas últimas preconizadas pelo art. 139, IV, do CPC/2015.
A vinculação do art. 139, IV, a esta finalidade (coercitiva) é extraível não só da interpretação histórica do instituto – que encerra as tentativas de generalizar o que antes estava adstrito às obrigações de fazer e não fazer, acolhendo a orientação da melhor doutrina que há muito criticava a diferenciação de tratamento – como de sua simples leitura, visto que o dispositivo enumera inúmeras “categorias” de medidas, sem se referir à categoria punitiva (fala-se em medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias).
Como aponta Marcelo Guerra, a finalidade coercitiva das medidas “assinala um limite fundamental à sua aplicação. É que, não tendo nenhuma finalidade punitiva, tais medidas só podem ser aplicadas enquanto ainda é possível a realização da prestação devida pelo obrigado” [35]. A mesma visão é compartilhada por Guilherme Rizzo Amaral [36], para quem, por exemplo, “a multa fixada contra devedor insolvente é inadequada, pois é incapaz de atingir o fim almejado“.
Na mesma esteira, salienta Luiz Rodrigues Wambier que “as providências adotadas devem guardar relação de utilidade, adequação e proporcionalidade com o fim perseguido” [37], sendo certo que a medida coercitiva é inútil se o devedor não tiver condições de cumprir a ordem judicial.
Na mesma esteira, pontua Eduardo Talamini que a medida coercitiva não tem cunho de penalização: “o sacrifício que se lhe impõe [ao devedor] não é castigo nem visa à sua educação: está instrumentalmente vinculado à perspectiva de cumprimento“, devendo ser utilizado apenas quando adequado, necessário, útil [38].
Cremos ser esta a premissa principal para a compreensão e a boa aplicação do art. 139, IV, do CPC/2015: as medidas ali descritas estão desvinculadas de finalidade punitiva. Não se prestar a “ensinar uma lição” àquele que descumpre as ordens emanadas do Poder Judiciário – para isto existem outros mecanismos legais – do que se extrai que a sua finalidade imediata não é resguardar a autoridade do Poder Judiciário, e sim obter a concretização do direito material. Trata-se de “mecanismo essencialmente pragmático” [39].
Assim, tal como “o criminal contempt volta-se ao passado e o civil contempt dirige-se ao futuro” [40], no Brasil as medidas referidas no art. 77 se voltam ao passado e as previstas no art. 139, IV, se voltam ao futuro.
Vale dizer, há um marco temporal envolvido na diferenciação da natureza de uma medida imposta ao réu em função do descumprimento de uma ordem judicial [41]: se a medida lhe é imposta antes do descumprimento (ou da reiteração do descumprimento que se quer evitar) visando sua inibição, trata-se de medida coercitiva, submetida ao art. 139, IV, que, portanto, pode ser definida no caso concreto pelo juiz.
Se, contudo, a medida é imposta depois do descumprimento com o propósito de punir o descumpridor da ordem, trata-se de medida punitiva que não tem amparo no referido art. 139, IV, do CPC/2015 e que, por consequência, não pode ser definida à luz do caso concreto pelo juiz. As medidas punitivas passíveis de serem aplicadas àquele que descumpre a ordem judicial com o fito punitivo estão previamente definidas na legislação, a quem se vincula o juiz.
A observância da finalidade da medida imposta – se coercitiva ou punitiva – serve, portanto, para que se verifique a legitimidade das decisões judiciais proferidas sobre a matéria e para que se resguardem os direitos fundamentais dos envolvidos, do que o processo não pode se dissociar.
Se, invocando o art. 139, IV, do CPC se pretender impor uma medida constritiva de liberdades ou outros direitos fundamentais não definida legalmente – portanto, atípica – com a finalidade de punir o descumpridor de uma ordem judicial, ter-se-á verdadeira inconstitucionalidade, pois a lei processual não ampara este tipo de decisão.
A restrição a direitos fundamentais do executado só é possível quando contraposta a direitos fundamentais do exequente, quando útil para a obtenção da concretização do direito reconhecido pelo Poder Judiciário em favor da parte contrária – em outras palavras, quando ostenta finalidade coercitiva.
Fincada esta premissa, é possível analisar criticamente as recentes reações da comunidade jurídica e do Poder Judiciário ao citado art. 139, IV, do CPC.
3 A Reação ao Art. 139, IV, do CPC
3.1 Breves Considerações sobre o Impacto do “Novo“
Foi notícia recente a formulação de pedidos de apreensão de passaporte e apreensão de carteira de motorista por credores de execuções, calcados no art. 139, IV, do CPC/2015, como forma de coerção de executados a cumprir a obrigação que lhes fora imposta em razão de já terem sido esgotados os meios sub-rogatórios de execução sem sucesso [42]. A mesma notícia suscita, ainda, a possibilidade de suspensão do direito de participar de concursos públicos pelo devedor inadimplente, se pessoa física.
Em pesquisa na mídia eletrônica se localizou até mesmo sugestão de que seja o devedor impedido de frequentar estádios de futebol para acompanhar jogos de seu time do coração até que satisfaça a obrigação inadimplida [43].
É de se registrar que o debate não se limita ao âmbito doutrinário, já tendo sido publicada decisão, pela Justiça Estadual de São Paulo, ordenando simultaneamente medidas de (a) apreensão de passaporte, (b) apreensão de carteira de motorista e (c) cancelamento dos cartões de crédito do executado até que efetuasse o pagamento de dívida objeto de execução de título extrajudicial desde 2013, sem que os meios sub-rogatórios tenham se mostrado frutíferos [44].
Chama atenção o fato de que no CPC/73 já existia norma prevendo a adoção de meios atípicos de coerção pelo juiz (mesmo que limitada às obrigações de fazer, não fazer e dar coisa) no § 5º do art. 461 e no § 3º do art. 461-A e, mesmo assim, não se tinha notícia de terem sido pleiteadas, em larga escala, medidas como as citadas acima para a coerção daqueles que se recusavam a cumprir as ordens judiciais.
Em breve pesquisa aos repositórios de jurisprudência de alguns tribunais estaduais (da Região Sudeste e Sul), sem pretensão de estatística formal, fora localizado apenas um julgado em que foi requerida providência de busca e apreensão de passaporte (TJRS, Agravo de Instrumento 70059653816, 8ª Câmara Cível, Rel. Ricardo Moreira Lins Pastl, j. 26.06.2014) e, ainda assim, em situação bastante peculiar [45].
Em suma, nos 14 anos que se passaram desde a inserção do § 5º do art. 461 no CPC/73 e entrada em vigor do CPC/2015 não se tem notícia de terem sido seriamente cogitadas tais medidas (ou outras de similar natureza) como compatíveis com a Constituição Federal, o que ora acontece diante do novo CPC em apenas um ano de vigência. Sobre o assunto, interessantes as palavras de Cristiano Duro, que destaca:
“O novo Código de Processo Civil, parafraseando Gessinger, é um futuro que se impõe diante de um passado que não se aguenta. Talvez seja essa superação legislativa do passado (CPC/73) que faça surgir a ideia de inovação sem qualquer ligação com o passado, como se o novo fosse criado num espaço vazio, um vácuo interpretativo, verdadeiro ‘marco zero’ que possibilitaria o surgimento de interpretações das mais diversas dos institutos jurídicos trazidos no CPC/2015, sem qualquer respeito à tradição até então construída.” [46]
Observe-se que não se está aqui a preconizar a incompatibilidade prima facie de medidas deste jaez com a Constituição Federal, apenas a ponderar que não se pode também preconizar sua absoluta compatibilidade, independentemente dos contornos do caso concreto, no afã de estrear a novidade.
3.2 A Jurisprudência
Da decisão proferida no Processo 4001386-13.2013.8.26.0011 e de acompanhamento processual se verifica que as medidas de apreensão de passaporte, CNH e cartões de crédito do executado foram pleiteadas pelo exequente sem apontar quaisquer elementos que sugerissem que estas medidas, em específico, teriam alguma influência sobre o agir do executado a ponto de coagi-lo a adimplir o crédito.
Foram, ainda, deferidas pelo juiz sem oportunização de contraditório prévio ao executado. Registrou-se, para deferimento das medidas, apenas que “se o executado não tem como solver a presente dívida, também não tem recursos para viagens internacionais, ou para manter um veículo, ou mesmo manter um cartão de crédito“, completando com o reconhecimento de que “se, porém, mantiver tais atividades, poderá quitar a dívida, razão pela qual a medida coercitiva poderá se mostrar efetiva“.
Na esteira dos questionamentos feitos pelo julgador, continuamos: e se o executado não costuma viajar para fora do país ou se estiver temporariamente impedido de dirigir, por exemplo, que utilidade terão estas medidas como forma de coagi-lo a cumprir a obrigação inadimplida? Se for realizar viagem internacional às expensas de cônjuge ou parente, dada a sua real falta de recursos financeiros, de que forma impedi-lo de viajar através da apreensão do passaporte conseguirá coagi-lo a cumprir a decisão judicial?
Se, de fato, não tiver recursos financeiros para adimplir a dívida, até quando seu passaporte, CNH e cartões de crédito restarão apreendidos? Para sempre?
As perguntas acima têm o condão de evidenciar o que entendemos ser o primeiro grave equívoco da referida decisão judicial no trato da matéria: não se observou, sequer por um momento, que o contraditório é direito fundamental de ambas as partes do processo e, em sua atual configuração, sob outra faceta é também dever de cooperar com o juízo para o atingimento do desfecho justo para o processo [47].
“O contraditório (…) constitui uma verdadeira garantia de não surpresa, que ‘impõe ao juiz o dever de provocar o debate acerca de toda as questões’” [48]. Esmiuçando a garantia do contraditório, o Código esclarece que este direito ao debate será sempre prévio à decisão, salvo nos casos excepcionais de tutelas de urgência e de emergência [49].
No caso, o contraditório prévio foi suprimido sem que se estivesse diante de tais hipóteses legais autorizadoras. Não houve sequer narrativa fática do exequente, para fundamentar seu pedido de aplicação daquelas medidas coercitivas específicas, que sugerisse algum perigo de demora capaz de alçar a decisão ao patamar de tutela de urgência.
Daí exsurge a segunda faceta do contraditório ignorada pela decisão: a de que o princípio encerra também um dever de colaboração por parte de ambas as partes. Não se olvide, aliás, que o novo Código positivou expressamente o dever de cooperação através de seu art. 6º, em que se lê que “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva“.
Este dever, imposto ao exequente, determina que ele apresente elementos fáticos concretos que sugiram ou indiquem que uma determinada medida tem aptidão para coagir o executado a cumprir a ordem que lhe fora (ou que virá a ser) imposta. Isto porque não se pode presumir que o executado não tenha cumprido sua obrigação por falta de vontade, e não por falta de possibilidades reais de cumprimento: este fato deve ser aferido através das peculiaridades do caso concreto.
Assim, por exemplo, se o executado não paga o crédito exigido pelo exequente, mas anuncia em suas redes sociais uma grande viagem internacional em breve, ter-se-ia um elemento vinculativo da medida de apreensão de passaporte com o caso concreto, a demonstrar que esta possibilidade é cara ao executado e que, portanto, suprimi-la pode ter o condão de levá-lo a cumprir a obrigação.
O exemplo serve para demonstrar que ao exequente que requer a imposição de uma determinada medida coercitiva atípica em face do executado incumbe o dever de trazer elementos capazes de demonstrar a utilidade da medida pretendida diante do caso concreto. Ou seja, incumbe-lhe, como forma de colaborar com o juízo para a busca de uma resposta justa e efetiva ao processo, fundamentar seu pedido em termos concretos.
As medidas de apreensão de passaporte, CNH ou cartões de crédito, tal qual qualquer outra, não se mostram adequadas a exercer papel coercitivo do executado em todo e qualquer processo. O art. 139, IV, do CPC não pode ser interpretado como uma “carta branca” ao exequente para requerer, sucessivamente, qualquer medida que lhe venha à mente para forma de tentar receber seu crédito, pois, em direito, “os fins não justificam os meios: o direito material não deve ser realizado à custa dos princípios e garantias fundamentais do cidadão [no caso, do executado]“[50].
Se ao exequente é conferido o direito de participar pedindo, participar alegando e participar provando [51], e se a outra faceta desta moeda é o dever de participar colaborando para a obtenção de um resultado justo, que se exija do exequente este comportamento.
E nem se diga que o executado teria faltado com o seu dever de colaboração primeiro, ao inadimplir o que lhe fora imposto. Primeiro porque, como já dito, as medidas coercitivas são temporalmente anteriores a qualquer descumprimento. Quer dizer, seu âmbito de aplicação primeiro é o do momento em que a decisão foi proferida, quando não existe descumprimento do dever de colaboração por parte do condenado. Segundo porque, mesmo quando impostas depois do descumprimento (mas antes da reiteração ou insistência no descumprimento que se almeja evitar), jamais se poderia entender que o erro na conduta do executado legitimaria o erro na conduta do exequente.
Apurada a falta de colaboração do executado, como já dito, cumpre ao juiz lhe impor as penalidades previstas pela lei. Não se pode, encampando um ideal subjetivista de justiça, permitir que a indignação do exequente contagie o juízo a ponto de lhe permitir, também, deixar de colaborar e passar a ferir direitos fundamentais do executado.
O segundo equívoco do referido julgado – decorrência direta da não observância do contraditório como dever de diálogo entre todas as partes envolvidas no processo, incluindo-se o juiz – foi tratar as medidas impostas como verdadeira punição ao executado por não cumprir o que lhe fora determinado.
A decisão enfatiza que a execução se arrasta há anos, sem sucesso, como se este fato pudesse, por si, legitimar a imposição de qualquer medida não proibida expressamente pela lei – pois a única ressalva feita na decisão é a impossibilidade de prisão civil -, sem cuidar de verificar que elementos do caso concreto apontavam para a utilidade da imposição daquelas medidas específicas contra o executado. Voltou-se ao passado, portanto, e não ao futuro.
Retomando premissa já assentada linhas acima, o novo Código não instituiu um sistema atípico de medidas punitivas. Não é dado ao julgador apreender passaportes, CNHs ou quaisquer documentos como forma de “castigar” ou “educar” o devedor inadimplente; para punir, deve fiel observância às medidas que estão tipificadas na legislação.
Seguindo no exame do caso paulista, como já mencionado alhures, no dia 09.09.2016 foi proferida decisão em habeas corpus impetrado pelo réu da referida demanda suspendendo os efeitos da decisão concessiva das medidas coercitivas, destacando o Relator Marcos Ramos [52]:
“Em que pese a nova sistemática trazida pelo art. 139, IV, do CPC/2015, deve-se considerar que a base estrutural do ordenamento jurídico é a Constituição Federal, que em seu art. 5º, XV, consagra o direito de ir e vir.
Ademais, o art. 8º do CPC também preceitua que, ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz não atentará apenas para a eficiência do processo, mas também os fins sociais e as exigências do bem comum, devendo ainda resguardar e promover a dignidade da pessoa humana, observando a proporcionalidade, a razoabilidade e a legalidade.”
Infelizmente, a decisão da instância superior incorre no mesmo erro da decisão de piso que pretendera corrigir, qual seja pretender solucionar a questão sob a ótica do “tudo ou nada“.
Se a decisão de piso parece entender ser possível “tudo” na busca da concretização do direito do exequente, a decisão superior parece entender ser possível “nada” sob pena de violar liberdades do executado. Note-se que as referências feitas à proporcionalidade e à razoabilidade são assaz abstratas, não tendo sido trabalhadas diante de nenhum elemento concreto do caso sob julgamento.
Sufragar o entendimento de que o fato de a Constituição Federal consagrar o direito de ir e vir afasta a possibilidade de medidas coercitivas que restrinjam liberdades individuais do executado é o mesmo que declarar natimorto o art. 139, IV, do novo Código, que estaria limitadíssimo em sua função de imprimir efetividade à tutela jurisdicional através da participação forçada do inadimplente na concretização do direito ofendido.
Nem a nova ordem constitucional nem o novo Código de Processo Civil, em sua esteira, coadunam-se com solução “tudo ou nada” acerca de conflito tão delicado entre direitos fundamentais das partes.
4 Conclusão: Estamos no Caminho Certo?
Do exposto se infere que é necessário aprofundar os debates acerca do alcance e da natureza das medidas previstas pelo art. 139, IV, do CPC com urgência, a fim de que a doutrina contagie os operadores do direito rumo à concretização do processo justo, e não de uma indevida “inversão da balança“.
Explicamos: décadas de prevalência absoluta da segurança jurídica sobre quaisquer outros valores permitiram o descumprimento reiterado de decisões judiciais, fazendo com que o credor assistisse inerte à ineficácia do pronunciamento jurisdicional que lhe foi favorável. Não se pode deixar, agora, que a prevalência absoluta da efetividade sobre quaisquer outros valores constitucionais inaugurem décadas de violação indevidas a liberdades e direitos fundamentais conquistados a suor e sangue e que o devedor passe a assistir, inerte, ao fim de sua vida civil pelo simples fato de não possuir recursos financeiros para pagar uma dívida.
A única forma de se evitar este resultado é lembrar, insistir, reiterar que (a) só podem ser impostas medidas atípicas ao executado que possui meios de cumprir a obrigação e, mesmo assim, furta-se a isso, e não a todo e qualquer executado; e (b) não se pode impor a este executado (que possui meios de cumprir a obrigação, mas não o faz) toda e qualquer medida que venha à mente do exequente ou do juiz para testar se tem ou não força coercitiva, tolhendo-lhe a esmo a vida civil, mas apenas aquelas sobre as quais existam indícios de eficácia coercitiva.
Disso decorre que a aplicação do art. 139, IV, do CPC jamais poderá ser dissociada da análise dos contornos do caso concreto no que se refere à adequação e à utilidade da medida coercitiva pretendida, e não em relação à gravidade do comportamento passado do executado. É imprescindível, por isso, que a jurisprudência não continue a perfilhar o caminho inaugurado pelo julgado paulista.
Como pontua Marcelo Guerra, “o principal indicativo da possível eficácia de uma medida coercitiva é a situação concreta do devedor, com base na qual se pode aferir a capacidade de determinada medida exercer uma pressão psicológica apta a realmente induzi-lo ao seu cumprimento” [53]. E continua o autor:
“Há sempre um virtual conflito de bens constitucionalmente garantidos, quando se utilizam medidas coercitivas. (…) Esse conflito, no entanto, se dá entre princípios que asseguram direitos fundamentais e, por causa disso, não se pode solucioná-lo simplesmente optando por um deles. Assim, no contexto da aplicação de medidas coercitivas, fixa excluída qualquer solução que se limite a optar, genérica e abstratamente, entre o atendimento à garantia da efetividade e à da dignidade da pessoa. Isso exige do juiz buscar em cada caso concreto, à vista de suas peculiaridades, a solução em que preserve, ao máximo possível, a proteção a ambos os princípios em conflito.” [54]
Em suma, “garantismo e eficiência devem ser postos em relação de adequada proporcionalidade, por meio de uma delicada escolha dos fins a atingir” [55], o que só poderá ser feito mediante análise do caso concreto. A solução do conflito entre direitos fundamentais não pode decorrer do subjetivismo do julgador.
Em recente coluna, Lenio Streck alerta para o perigo do rechaço prévio a qualquer enunciado de lei, adotando-se uma postura de “direito livre” deixado ao arbítrio do julgador [56].
Permitir o subjetivismo na escolha abstrata de qual valor deve se sobrepor ao outro (efetividade ou segurança jurídica), sem que se volte o olhar para o caso em julgamento, é abrir perigoso precedente para a falência do Estado Democrático de Direito.
Sob a ótica normativa, para iniciar as reflexões sobre o assunto, propomos que a análise de requerimentos de imposição de medidas coercitivas atípicas em processos judiciais passe (a) pela exigência feita ao exequente de que apresente indícios de correlação entre a medida pretendida e a coerção que visa exercer sobre o executado, calcada no máximo de elementos probatórios possíveis; (b) sempre que possível, pelo exercício prévio do contraditório, outorgando-se ao executado prazo (ainda que sucinto) para se manifestar acerca do requerimento do exequente, inclusive produzindo as provas de que disponha para mostrar que a medida coercitiva, à luz do caso concreto, seria inconstitucional; e (c) pela prolação de decisão pragmática, pelo juízo, impondo-lhe o que for adequado e necessário para coagi-lo ao cumprimento da obrigação inadimplida, e não de decisão carregada de rancor ou orgulho por sua postura pretérita que encerra verdadeira punição travestida de coerção.
Esta é a forma, segundo pensamos, de obter o processo justo no que se refere à aplicação e medidas coercitivas atípicas, absorvendo os direitos fundamentais previstos na CF/88 no dinamismo do processo para obter uma tutela jurisdicional afinada com os anseios de “justiça e efetividade” [57].
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[1] MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 37-38.
[2] THEODORO Jr., Humberto. As vias de execução do Código de Processo Civil brasileiro reformado. In: WAMBIER, Tereza Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos da nova execução 3: de títulos judiciais. Lei 11.232/2005. São Paulo: RT, 2006. p. 285.
[3] Neste sentido, Humberto Theodoro Junior fazendo menção às partes de José Roberto S. Bedaque: THEODORO Jr., Humberto. Desafios constitucionais da reforma do processo civil no Brasil. In: Constituição e processo – a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 241.
[4] AMARAL, Guilherme Rizzo. Cumprimento e execução da sentença – sob a ótica do formalismo valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 48.
[5] THEODORO Jr., 2009, p. 245. No mesmo sentido se posiciona Cláudio Cintra Zarif, para quem “devido processo constitucional jurisdicional (…) não é sinônimo de formalismo, nem culto da forma pela forma, do rito pelo rito, sim um complexo de garantias mínimas contra o subjetivismo e o arbítrio dos que têm o poder de decidir” (Da necessidade de repensar o processo para que ele seja realmente efetivo. In: Processo e Constituição: estudos em homenagem ao professor José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: RT, 2006. p. 139-145, p. 140).
[6] A expressão cunhada por Carlos Alberto Alvaro de Oliveira resume a visão do processo como técnica atrelada a valores e designa, como esclarece Daniel Mitidiero, um “movimento cultural destinado a concretizar valores constitucionais no tecido processual (…) à força do caráter nitidamente instrumental do processo, trazendo novamente ao plano dos operados do processo a busca pelo justo” (2005, p. 19).
[7] NUNES, Dierle José Coelho. Apontamentos iniciais de um constitucionalismo processual democrático. In: Constituição e processo – a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 349-362, p. 351. No mesmo sentido, Antônio do Passo Cabral: “O exercício do poder não pode ser arbitrário e sua legitimação decorre do procedimento participativo. Proíbe-se o arbítrio, somente sendo legítima uma decisão coercitiva caso haja participação daqueles que podem sofrer suas consequências” (Contraditório [princípio do]. In: TORRES, Ricardo Logo et al. [Org.]. Dicionário de princípios jurídicos. São Paulo: Elsevier, 2010. p. 195).
[8] GUERRA, Marcelo. Execução indireta. São Paulo: RT, 1999. p. 241.
[9] Aponta Guilherme Rizzo Amaral que tanto obstáculos quanto limites podem cruzar o caminho de uma prestação jurisdicional célere e efetiva. “Os primeiros se dão no plano externo, material, e sua causa não se encontra no sistema normativo processual. Os segundos são aqueles inerentes à própria jurisdição. Na categoria dos obstáculos, podemos ainda classificá-los em absolutos e relativos. Estes podem ser contornados pelo aperfeiçoamento da norma processual (…). Aqueles não podem ser superados, por melhor que seja o sistema processual” (2008, p. 103).
[10] THEODORO Jr., 2009, p. 243.
[11] Idem, ibidem, p. 243.
[12] AMARAL, 2008, p. 233.
[13] TALAMINI, Eduardo. Medidas coercitivas e proporcionalidade: o caso WhatsApp. Revista Brasileira da Advocacia, ano 1, v. 0 (jan./mar.), Coordenação Flávio Yarshall, São Paulo, RT, 2016, p. 20.
[14] “Citando Devis Echandia, ressalta Humberto Theodor Júnior que o processo civil deve tratar de ‘obter o maior resultado com o mínimo de emprego da atividade processual’” (AMARAL, 2008, p. 50). Na mesma esteira, assinala Narda Silva que “não basta que a decisão seja apenas proferida. A ordem jurídica deve prever mecanismos processuais cuja finalidade seja garantir o cumprimento efetivo e específico do comando judicial e, assim, realizar uma prestação jurisdicional adequada, efetiva, justa e tempestiva” (Possibilidade de execução das astreintes antes do trânsito em julgado. In: JAYME, Fernando Gonzaga et al. [Coord.]. Processo civil: novas tendências – homenagem ao Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. Belo Horizonte: Del Rey, 2011. p. 667-681). É esta a ótica que em grande parte se orientou a reforma da legislação processual.
[15] ZARIF, 2006, p. 141.
[16] A astreinte é multa periódica imposta ao devedor com o objetivo de fazê-lo cumprir a ordem judicial, caracteriza pelo exagero do algarismo e pela ausência de limites temporais (ASSIS, Araken de. Manual de execução. 11. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 133).
[17] Idem, ibidem, p. 132.
[18] WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil. Execução. Coord. WAMBIER, Luiz Rodrigues. 10. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 334. v. 2.
[19] ASSIS, Araken de. Cumprimento de sentença. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 32.
[20] ABELHA, Marcelo. Manual de execução civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 44.
[21] GUERRA, 1999, p. 28.
[22] Idem, ibidem, p. 61.
[23] AMARAL, 2008, p. 177.
[24] Idem, ibidem, p. 178.
[25] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 42. v. 1.
[26] Idem, ibidem, p. 43.
[27] Parte da doutrina se inclinava no sentido de reconhecer que a coerção também fazia parte da atividade executiva, tendo natureza de verdadeira execução, enquanto outra parte se posicionava no sentido de que executar é substituir a vontade do devedor pela do Estado e, portanto, afirmava que apenas os meios sub-rogatórios (e não os coercitivos) tinham real natureza de execução (TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer – e sua extensão aos deveres de entrega de coisa [CPC, artigos 461 e 461-A; CDC, art. 84]. 2. ed. São Paulo: RT, 2003. p. 172 para melhor exposição da controvérsia).
[28] Estes traços se mantinham ainda que a ordem de cumprimento tivesse sido proferida em caráter liminar/antecipatório de tutela.
[29] Acerca da amplitude do contempt of court, destaca Marcelo Lima Guerra (2009, p. 93): “Como regra geral, somente quem é parte em um determinado processo pode ser considerado em contempt of court. Há hipóteses, no entanto, em que se tem reconhecido, também, que a conduta de terceiros pode ser considerada como contempt. Exemplos dessa espécie são os casos de comentários veiculados pela imprensa sobre processos em curso, assim como as situações em que terceiros, cientes da existência de uma determinada ordem judicial, ajudam a parte a descumprida”.
[30] TALAMINI, 2003, p. 55.
[31] GUERRA, 1999, p. 95.
[32] Idem, ibidem, p. 100.
[33] GUERRA, 1999, p. 115 usque 117.
[34] Acerca do assunto, Marcelo Abelha (2016, p. 221-222) tece as seguintes considerações:
“O novo CPC melhorou muito o tema, mas não tratou como deveria e merecia o tema do contempt of court. É de se dizer que o NCPC, por exemplo, deveria ter corrigido certas distorções em relação à harmonização das situações ensejadoras do contempt of court com outras como no caso das astreintes. Veja-se, por exemplo, o art. 14, V, do CPC de 1973, visto como um tipo legal ensejador da aplicação da punição de multa ‘não superior a 20{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} do valor da causa’ que foi repetido no art. 77, § 2º, do NCPC.
Era esperado que o legislador tivesse estabelecido uma adequada e justa adequação deste dispositivo com a previsão das astreintes do art. 537 do NCPC, afinal de contas a incidência da astreintes presume, logicamente, o desatendimento de uma ordem judicial.
Poderia o legislador ter enfrentado o tema da mistura de campos envolvendo as astreintes com a multa do contempt of court. Não basta dizer que esta é punitiva e aquela é coercitiva, afirmando que uma não prejudica a outra, como o fez o art. 77, § 4º, afinal de contas a todos compete ‘cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final, e não criar embaraços à sua efetivação’, e na medida em que o devedor não cumpre uma ordem judicial, estará violando a regra do art. 77, IV, do CPC.
A incidência da astreintes é a prova cabal do ato atentatório à dignidade da justiça. Ora, porque aquela atinge um valor infinitamente maior do que esta? O ato indigno à justiça deveria ser tratado de forma infinitamente mais rigorosa do que as astreintes. No afã de aproximar dois institutos de berços diferentes, contempt of court e astreintes, o legislador perdeu uma grande oportunidade de torná-los incoerentes ao operador do direito.”
[35] GUERRA, 1999, p. 37.
[36] AMARAL, 2008, p. 153.
[37] WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso avançado de processo civil. Execução. 10. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 355. v. 2.
[38] TALAMINI, 2016, p. 24.
[39] Idem, ibidem, p. 24.
[40] GUERRA, 1999, p. 95.
[41] Assim já entendia José Miguel Garcia Medina sob a égide do CPC/73, confrontando o antigo art. 14 (litigância de má-fé) e os arts. 461 e 461-A do CPC (sistema de medidas coercitivas atípicas): “A multa tratada no art. 14 do CPC tem caráter punitivo, e não coercitivo – tal como ocorre nos casos dos arts. 461 e 461-A do CPC. O juiz fixará a multa mencionada no art. 14 após o descumprimento da decisão judicial, enquanto no caso dos arts. 461 e 461-A a multa é fixada antes, para compelir a parte a cumprir a decisão (Breves novas sobre a tutela mandamental e o art. 14, V, e parágrafo único do CPC. In: LOPES, João Batista; CUNHA, Leonardo Carneiro da [Coord.]. Execução civil: aspectos polêmicos. São Paulo: Dialética, 2005. p. 217).
[42] Disponível em: <http://www.seteco.com.br/devedores-podem-ter-passaporte-e-carteira-de-habilitacao-apreendidos-valor-economico/>.
[43] DURO, Cristiano. Como pode: no novo CPC o furto compensa? A (in)existência de limites semânticos e interpretativos das técnicas judiciais. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/como-pode-no-novo-cpc-o-furto/>. Acesso em: 7 set. 2016.
[44] Processo 4001386-13.2013.8.26.0011, 2ª Vara Cível do Foro Regional XI, Pinheiros da Comarca de São Paulo, autor: Grand Brasil Litoral Veículos e Peças Ltda., réu: Milton Antonio Salerno. A referida decisão, posteriormente, teve seus efeitos suspensos por decisão monocrática proferida no HC 2183713-85.2016.8.26.000, Des. Rel. Marcos Ramos, DJ 12.09.2016. O habeas corpus se encontra pendente de julgamento de mérito, pois incluído em pauta para a sessão a ser realizada em 15.03.2017, conforme andamento processual acessado através do site www.tjsp.jus.br.
[45] Tratava-se de caso em que a apreensão foi requerida (i) como medida cautelar em razão do alegado temor de o réu se mudar do país levando consigo seu patrimônio e frustrar a execução, e (ii) em ação de alimentos (de natureza sabidamente diferenciada, em que se admite, inclusive, a prisão civil).
Vale registrar que, neste caso, a medida pleiteada foi indeferida por falta de provas dos fatos alegados, não tendo sido enfrentada questão relativa a estar a medida albergada ou não pelo § 5º do art. 461.
[46] Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/como-pode-no-novo-cpc-o-furto>. Acesso em: 7 set. 2016. [47] “O processo é uma atividade de sujeitos em cooperação e a ‘coparticipação’ das partes na formação do decisum é uma ‘exigência’ decorrente do princípio constitucional do contraditório.” (CABRAL, 2011, p. 202)
[48] THEODORO Jr., 2009, p. 254.
[49] “Art. 9º Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.
Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica:
I – à tutela provisória de urgência;
II – às hipóteses de tutela da evidência previstas no 311, incisos II e III;
III – à decisão prevista no art. 701.”
[50] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O formalismo valorativo no confronto com o formalismo excessivo. RePro, São Paulo, RT, 2006, p. 24.
[51] DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 125.
[52] TJSP, Habeas Corpus 2183713-85.2016.8.26.0000, 30ª Câmara de Direito Privado, Rel. Marcos Ramos.
[53] GUERRA, 1999, p. 60.
[54] GUERRA, 1999, p. 251.
[55] OLIVEIRA, 2006, p. 13.
[56] STRECK, Lenio Luiz. A frase “faça concurso para juiz” é (e) o que restou do processo penal, publicado em 09.03.2017 na coluna Senso Incomum do site Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-mar-09/senso-incomum-frase-faca-concurso-juiz-restou-processo-penal>. Acesso em: 10 mar. 2017.
[57] THEODORO Jr., 2009, p. 242.