A INCLUSÃO DO ABANDONO AFETIVO NO ROL DAS CAUSAS DE INDIGNIDADE SUCESSÓRIA
Fernanda Silva Todsquini
INTRODUÇÃO
O presente estudo versa sobre a possibilidade e necessidade de se incluir o abandono afetivo como uma das hipóteses do artigo 1.814, do Código Civil, o qual dispõe sobre a indignidade sucessória. Esta consiste em um instituto do direito civil que visa a penalização de herdeiros e legatários em razão de determinadas atitudes praticadas em face do autor da herança. Constatada a condição de indigno após processo judicial, o sucessor é privado de receber sua quota, além de responder também, a depender do caso, na esfera penal.
Infere-se do Livro V do Código Civil, que em um primeiro momento as condutas de maior reprovabilidade no contexto paterno-filial perante a sociedade figuravam nos casos de homicídio e de crimes contra a honra vitimando o autor da herança e seus sucessores, além da interferência violenta ou fraudulenta nas disposições de última vontade do titular do patrimônio.
No entanto, com as mudanças sociais, mormente aquelas com repercussão no direito constitucional e no âmbito do direito de família, inviável é sustentar um rol taxativo para causas de indignidade, haja vista o aparecimento de situações que se mostram tão graves quanto as positivadas e que não estão sob alcance da norma sucessória.
Uma das grandes problemáticas sociais que emergiram nos últimos anos foi a questão do abandono afetivo, que consiste na omissão de cuidado, criação, auxílio e assistência moral, psíquica e social entre genitores e filhos, acarretando, na maioria das vezes, traumas e situações de vulnerabilidade para o abandonado. São duas as situações de desamparo recorrentes no Brasil: crianças e adolescentes que se desenvolvem sem o amparo dos pais, e idosos que são abandonados por seus filhos e netos em suas residências, asilos e hospitais.
As duas hipóteses representam violações à dignidade da pessoa humana, já que tais vítimas têm sua existência comprometida diante do descumprimento do dever de cuidado daqueles que mais lhes deviam solidariedade e comprometimento, pelo fato de terem com o titular do patrimônio uma ligação de sangue.
Assim, o ordenamento jurídico, ao impossibilitar o autor da herança que sofrera o desamparo de excluir de sua sucessão aqueles que lhe fizeram mal, ou que lhe foram indiferentes ao longo da vida, também incide em violação à dignidade do titular do patrimônio, que tem sua autodeterminação restringida por uma disposição pré-concebida e imodificável.
No intuito de demonstrar a pertinência da inclusão legal do abandono afetivo no rol do art. 1.814, do Código Civil, esta pesquisa buscou, inicialmente, destrinchar o instituto da indignidade sucessória, trazendo sua origem, seus fundamentos, peculiaridades e todo o rito do procedimento legal, a fim de situar o leitor, de maneira detalhista, sobre o respectivo conceito.
O segundo capítulo foi elaborado para contextualizar o leitor sobre o fenômeno do abandono afetivo, bem como informar como esse assunto vem sendo tratado no ordenamento jurídico atualmente. A pesquisa esclareceu o fenômeno sobre dois enfoques: o abandono que decorre dos genitores em relação à prole criança ou adolescente, socialmente denominada de “aborto paterno”, e aquele que tem como vítima os idosos, conhecido doutrinariamente como “abandono afetivo inverso”.
Por fim, o último capítulo teve como foco explanar o conflito entre os princípios da dignidade humana e da segurança jurídica, tecendo críticas à taxatividade do art. 1.814, do Código Civil, bem como, se posicionando em prol da interpretação teleológica do artigo em comento.
Utilizou-se, para a realização desta pesquisa, o método analítico-dogmático jurídico, com técnica de revisão bibliográfica. Tal método consiste na análise crítica dos dispositivos legais, bem como do entendimento jurisprudencial pátrio sobre a temática, com fundamento em doutrinas e nos princípios gerais do Direito, principalmente os de cunho constitucional.
1 DISPOSIÇÕES ACERCA DA INDIGNIDADE SUCESSÓRIA
O Direito Civil, ramo jurídico de caráter privado, visa em seus regramentos à conservação da vontade das partes. Especificamente no direito das sucessões, a vontade a ser respeitada pelo ordenamento deve ser a do autor do patrimônio, tanto que a transmissão da herança é presumidamente dos herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge) ou, na falta destes, dos facultativos (denominados colaterais). Isso porque entende-se que essa seria a vontade do titular do patrimônio se fosse vivo.
Embora o direito de família pressuponha uma relação de mútuo afeto e estima pelos integrantes do mesmo núcleo familiar, é sabido que nem sempre as relações familiares são pautadas pelos princípios de solidariedade, respeito e consideração, e que isso ainda não importa sanção na transmissão do patrimônio. Todavia, existem casos extremos que atentam contra a dignidade do integrante da família, e que merecem uma maior atenção do ordenamento jurídico, a fim de fazer valer qual seria a última vontade do de cujus, bem como penalizar aquele que agiu contra a honra ou a vida do autor da herança.
Nesses casos, a possibilidade trazida pelo codex é a exclusão do familiar ao recebimento da herança, por meio dos institutos da indignidade sucessória e da deserdação, respectivamente abarcados nos art. 1.814, 1.962 e 1.963, do Código Civil. Sobre as causas preceituadas nos referidos artigos afirmam Cristiano Chaves e Nelson Roselvad:
São condutas ignóbeis praticadas em detrimento do autor da herança e que podem, por conta do grau de reprovação jurídica, propiciar a exclusão do herdeiro ou legatário do âmbito sucessório, privando o recebimento, a partir de um juízo de razoabilidade e de justiça distributiva (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 96).
Importante esclarecer a diferença entre os institutos da indignidade e da deserdação. Embora tenham a mesma finalidade, qual seja, a de penalizar o herdeiro por práticas reprováveis cometidas em face do autor da herança ou dos demais sucessores, excluindo-o da sucessão, cada instituto possui suas características próprias.
A primeira a ser tratada se refere ao sujeito apenado. Enquanto na indignidade qualquer sucessor pode ser declarado indigno, caso de herdeiros e legatários, na deserdação a exclusão se limita aos herdeiros necessários, ou seja, aqueles dispostos no art. 1.845 do Código Civil. No que tange aos colaterais, tidos como herdeiros facultativos, não é necessário que sobre eles seja redigido um ato deserdativo, bastando, para tanto, que o autor da herança não os contemple no testamento.
Acerca do momento da prática dos atos penalizantes, o ordenamento civil descreve que a indignidade pode suceder de condutas praticadas antes ou após o falecimento do titular da herança, já a deserdação fica restrita apenas às práticas cometidas antes da abertura da sucessão. Ainda, a indignidade poderá ser suscitada quando da abertura da sucessão, em ação própria por meio dos herdeiros, legatários ou eventuais interessados contra o indigno, conquanto a deserdação deverá ser provocada exclusivamente pelo autor da herança, como disposição de última vontade, o qual deserdará o sucessor já no testamento.
Optou-se por tratar especificamente da indignidade nesta pesquisa por duas razões: abrangência do instituto e economia processual. A primeira se dá pelo fato de ser incomum no Brasil a sucessão testamentária; ou seja, a transmissão da herança pré-organizada pelo titular do patrimônio em testamento é situação bastante peculiar na atual sociedade, principalmente pelo seu alto valor nos Cartórios extrajudiciais. Assim, muito mais pertinente é tratar de um instituto que contemple a sucessão legal, sem testamento, com maior recorrência no âmbito sucessório.
Em segundo lugar, depreende-se da legislação civil vigente que as causas de deserdação, previstas nos artigos 1.962 e 1.963, do Código Civil, englobam, além das especificadas nos referidos dispositivos, as demais situações presentes no art. 1.814. Desse modo, caso um herdeiro incorra em algumas das condutas que ensejam indignidade, o autor da herança poderá optar por privá-lo da legítima por meio do testamento, haja vista que a deserdação permite esse alcance, já a situação inversa não é possível.
A indignidade representa um estado momentâneo ou definitivo de um indivíduo, ocasionado por uma determinada ação reprovável ou afrontosa repugnada pela sociedade. Ela qualifica o indigno como um ser passível de exclusão e desdém, tendo efeitos ainda maiores que no âmbito do convívio social.
No Direito, a indignidade pode se fazer presente em contextos diversos, no entanto, possui causas e consequências muito semelhantes. Por exemplo, no âmbito familiar, especificamente nas obrigações de prestar alimentos, condutas ignóbeis praticadas pelo alimentando em face do alimentante acarretam na indignidade daquele, e consequentemente, extingue a relação obrigacional do devedor. Assim é a inteligência descrita no parágrafo único de art. 1.708 do Código Civil: “Com relação ao credor cessa, também, o direito a alimentos, se tiver procedimento indigno em relação ao devedor.”
Ainda, a indignidade pode ser visualizada também no campo das doações, nos termos do art. 557, do codex civil, que dispõe sobre a possibilidade de revogação por parte do donatário em relação ao doador se este agir dentro das hipóteses preceituadas no dispositivo legal em comento.
Diante do exposto, é possível depreender que atos bilaterais ou plurilaterais que envolvem patrimônio, seja por obrigação instituída ou por mera liberalidade, podem ser desfeitos caso não haja uma reciprocidade de ânimos entre as partes. Na verdade, não é que se espera o mesmo sentimento entre o doador e o receptor, em termos genéricos, mas sim, que não se extrapolem as linhas do respeito e da cordialidade. O dever da boa-fé, assim como em todos os negócios do Código Civil, deverá reger também tais relações.
Assim, ao trazer o assunto para o campo sucessório, espera-se a mesma boa-fé e a prática de seus deveres anexos entre o autor da herança e seus sucessores, sendo certo que a inviolabilidade desses deveres éticos acarreta para o agente a qualificação de indigno, e posteriores penalizações como a perda da herança.
Nas palavras de Washington de Barros Monteiro:
“O Direito Sucessório constitui lei de família, baseia-se precipuamente na afeição que deve ter existido entre o herdeiro e o de cujus. Se o primeiro, por atos inequívocos, demonstra seu desapreço e ausência de qualquer sentimento afetivo para com o segundo, antes, menospreza-o, odeia-o e contra ele pratica atos delituosos ou reprováveis, curial privá-lo da herança, que lhe tocaria por morte deste. (MONTEIRO, 2009, p. 63).”
Tendo em vista a necessidade de conservação do instituto da indignidade sucessória, no intuito de impedir que meras hostilidades importem na perda da herança, já que esta é um direito fundamental do indivíduo, foram estipuladas hipóteses que, se praticadas pelo herdeiro, se amoldam à conceituação de indignidade, ou seja, apresentam condutas reprováveis para sociedade e para o ordenamento jurídico.
Presentes no art. 1.814 do Código Civil, o rol das causas de indignidade sucessória contempla as seguintes condutas:
Art. 1.814 São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:
I – que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;
II – que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;
III – que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.
Sobre o fundamento da indignidade, comenta Orlando Gomes:
“Encontra-se, para alguns, na presumida vontade do de cujus, que excluiria o herdeiro se houvesse feito declaração de última vontade. Preferem outros atribuir os efeitos da indignidade, previstos na lei, ao propósito de prevenir ou reprimir o ato ilícito, impondo uma pena civil ao transgressor, independentemente da sanção penal (GOMES, 2004, p. 32).”
Acerca das hipóteses previstas no artigo em comento, tem-se que a trazida no inciso I, qual seja, ser autor, coautor ou partícipe de crime de homicídio doloso contra o titular da herança ou em face de pessoas interligadas a ele afetivamente, é a mais reprovável de todas as ações, afinal, o herdeiro priva o autor da herança do maior bem que este pode ter: a vida.
A prática supra demonstra o ápice da ingratidão daquele que mais deveria ter estima e afeto pelo titular do patrimônio. A esse respeito, afirma Carlos Roberto Gonçalves:
Trata o inciso em epígrafe da mais grave de todas as causas, pois é manifesta a ingratidão do herdeiro que priva o hereditando, ou tentar privá-lo, de seu maior bem, que é a vida, praticando contra ele homicídio doloso ou tentado. Daí o provérbio alemão: mão ensanguentada não apanha herança (blutige hand nimmt kein erbe) (GONÇALVES, 2019, p. 115).
Deve-se atentar para o fato de que a prática criminosa também acarretará na indignidade do agente se este atentar contra a vida do cônjuge, companheiro, descendente e ascendente do autor da herança. Essa proteção conferida pelo legislador é denominada de “extensão subjetiva do alcance da indignidade” (Cristiano Chaves e Nelson Roselvad, 2015, p. 114) e tem o objetivo de proteger a integridade do núcleo familiar.
Como segunda hipótese do art. 1.814, do Código Civil, está a acusação caluniosa em juízo do autor da herança, bem como crime contra a honra do titular do bem, de seu cônjuge ou companheiro. A redação do inciso II gera grande debate entre os teóricos do direito, afinal, a interpretação literal do referido inciso em sua primeira parte descreve a conduta típica do art. 339 do Código Penal, intitulada como “denunciação caluniosa”.
No entanto, uma segunda linha de pensamento compreende que a interpretação do inciso deve ser feita de maneira ampla, não exigindo necessariamente a prática de um delito da esfera criminal, com trânsito em julgado, mas sim a mera conduta de acusar o autor da herança perante o juízo. Defensora desta corrente é Maria Berenice Dias, que afirma: “não é a prática do delito que configura indignidade, eis que a lei fala em ‘acusação caluniosa’ e não em ‘crime de denunciação caluniosa’.” (DIAS, 2011, p. 307).
Por fim, o inciso III, do art. 1.814, do Código Civil, preceitua que será indigno aquele que por violência ou outro meio fraudulento, inibir ou obstar o autor da herança de dispor livremente seus bens. Acerca desta hipótese cabe a explicação de Carlos Roberto Gonçalves:
“Inibir” é cercear a liberdade de disposição de bens. “Obstar” corresponde a impedir tal disposição. Em ambos os casos a conduta do herdeiro ou legatário implica indignidade, quando a inibição ou impedimento é exercida mediante violência ou fraude. A violência se traduz em ação física; a fraude, em psicológica. (GONÇALVES, 2019, p. 120).
A referida prática indigna se assemelha aos vícios de consentimento presentes no capítulo referente aos negócios jurídicos, cuja consequência é a anulabilidade do negócio viciado. Ocorre, ainda, uma maior reprovabilidade quando esse vício advém de um próprio ente familiar, quando tenta viciar a última vontade do autor da herança.
Assim, deverá ser punido rigorosamente aquele que, com intuitos egoístas de se beneficiar às custas de outrem, tenta inibir ou obstar a disposição final do dono do patrimônio; conduta que, inclusive, se perfaz em detrimento da dignidade e honra do titular, eliminando todo dever de boa-fé inerente aos dispositivos legais do Código Civil.
2 O ABANDONO AFETIVO E SUA REPERCUSSÃO NO ÂMBITO JURÍDICO
Muito tem se discutido no direito acerca do abandono afetivo paterno-filial e qual seria seu enquadramento mais adequado no ordenamento jurídico. Prevalece na doutrina e jurisprudência pátria que o fenômeno em voga tem natureza de dano, devendo, por conseguinte, ser reparado às vítimas. No entanto, críticos dessa corrente observam que é impossível estimar um valor de indenização para a falta de afeto e cuidado, o que faz com que a responsabilização dos agentes causadores do dano por meio de indenização não tenha tanta eficácia.
Como se sabe, com a proteção constitucional à família, mormente no que alcança crianças, adolescentes e idosos, figuras vulneráveis na sociedade brasileira, os deveres e princípios de cuidado, solidariedade e respeito à dignidade humana não são mais atitudes opcionais, e sim obrigações de cunho mandamental estatuídas na Carta Maior. Por essa razão é que o abandono afetivo tem sido pauta de diferentes discussões, visando a esclarecer efetivamente qual a natureza dessa reprovável conduta.
Para melhor especificar, o abandono afetivo consiste na omissão de cuidado, criação, assistência moral, psíquica e material que o pai e a mãe têm em relação ao filho menor ou que os filhos têm para com os genitores idosos. Com as significativas mudanças ocorridas na sociedade, certas atitudes que antes eram vistas como normais, hoje são causa de reprovabilidade social e jurídica. A cultura patriarcal sob a qual se fundou o Brasil relativizou por muito tempo o abandono paterno, ao passo que atribuía a criação dos filhos somente à figura materna.
Por isso, ainda é comum a ausência de registro paterno nas certidões de nascimento, e, mais comum ainda, histórias de crianças que são registradas pelo pai mas não desenvolvem com o genitor uma relação afetiva familiar, justamente pelo “aborto paterno” que sofrem desde muito novas.
Para mitigar essa realidade, a Defensoria Pública Estadual da Bahia lançou em 2007 uma campanha com repercussão nacional, chamada de “Ação Cidadã Sou Pai Responsável”. Desde então, a campanha é realizada todos os anos no mês de agosto, e tem como objetivo “estimular a participação dos pais no convívio e desenvolvimento dos filhos, como incentivar homens relutantes a assumirem a paternidade de crianças sem registro”, como exposto no site da Defensoria Pública.
A ação fornece testes de DNA gratuitos, além de promover mediação e conciliação entre os genitores para o melhor convívio com os filhos. Consta que desde o início da ação, a DPE/BA assistiu mais de 23 mil pessoas, realizando no ano de 2019 cerca de 1.300 exames de paternidade.
Não obstante, no ano de 2013, o Conselho Nacional de Justiça, tendo como base o Censo Escolar de 2011, concluiu que 5,5 milhões de crianças brasileiras não possuem o nome do pai registrado na certidão de nascimento.
Diante disso, o Poder Judiciário teve de se preparar para um novo tipo de demanda: o pleito pelo dano moral sofrido por filhos abandonados, buscando de seus genitores uma efetiva reparação. Por essa razão, passou-se a observar por meio das perícias nos processos judiciais, possíveis danos psíquicos ocasionados na prole decorrentes do abandono afetivo.
A jurisprudência nacional, atenta aos anseios sociais momentâneos e à amplitude do conceito da dignidade humana na vida dos indivíduos, se inclinou favorável à essa nova modalidade de responsabilidade. Um dos julgados que revolucionou os precedentes judiciais foi o da Ministra do STJ, Nancy Andrighi, publicado no Informativo 496 da Corte, o qual aduz que:
Civil e processual civil. Família. Abandono afetivo. Compensação por dano moral. Possibilidade. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa no art. 227 da CF/1988. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludente ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido. (STJ, REsp 1.159.242/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrigui, j. 24.04.2012, DJe 10.05.2012).
A tese da responsabilidade civil decorrente do abandono afetivo ficou conhecida como teoria do desamor. Em mais de um julgado, a jurisprudência nacional deu provimentos à recursos com o fim de condenar o genitor à reparação do dano material e emocional, entendendo ser o abandono paterno-filial uma evidente lesão à dignidade humana.
Como bem pontuado pela Min. Nancy Andrighi, “amar é faculdade, cuidar é dever”. A máxima proferida no importante julgado conferiu bases sólidas à responsabilização dos genitores nos casos de abandono, expondo que o Estado não pode obrigar um pai e uma mãe a desenvolverem com suas proles um relacionamento como se é esperado naturalmente dos laços afetivos. Todavia, é dever do Estado zelar pelo bem estar das crianças e adolescentes do país, com amparo mandamental da Constituição Federal.
No mesmo viés de discussão, não se pode deixar de trazer à lume outra triste realidade que também alcança determinados indivíduos, tão vulneráveis quanto crianças e adolescentes: os idosos. Desde idosos que são abandonados em suas residências por seus filhos e nunca são visitados, contando com o auxílio da vizinhança para realizar algumas tarefas, como também aqueles que são esquecidos em asilos e hospitais, o desamparo senil tem ganhado grande espaço nos últimos anos.
Isso se dá em razão da maior expectativa de vida adquirida em razão de vacinas, melhores condições de saneamento básico, atendimento médico tanto particular quanto o gratuito por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) e demais medidas governamentais e sociais. Por isso, a sociedade passou a se adaptar com viver o reverso: cuidar dos genitores na velhice como eles lhes cuidaram no começo da vida.
O desamparo de idosos por parte de seus filhos configura o que a doutrina e a jurisprudência nacional chamam de “abandono afetivo inverso”. Nas palavras de Jones Figueirêdo Alves, Desembargador do Estado do Pernambuco e diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), o abandono afetivo inverso é “a inação de afeto ou, mais precisamente, a não permanência do cuidar, dos filhos para com os genitores, de regra idosos”.
Embora seja uma conquista individual e social o aumento da expectativa de vida, essa boa notícia, por incrível que pareça, também tem seu lado negativo. Todos querem viver mais e viver bem, mas poucos querem cuidar daqueles que já alcançaram essa dádiva de ultrapassar a expectativa padrão de tempo de vida. Dados estatísticos apontam que o abandono afetivo inverso cresce mais rápido que a expectativa de vida dos brasileiros, conforme reportagem da revista IstoÉ:
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2012 e 2017, a população de idosos no País saltou 19,5{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}, de 25,4 milhões para mais de 30,2 milhões de pessoas. No mesmo período, o número de homens e mulheres com 60 anos ou mais nos albergues públicos cresceu 33{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}, de 45,8 mil para 60,8 mil. Se forem considerados também os alojamentos privados, a cifra sobe para 100 mil. O desamparo familiar cresce mais rápido que a expectativa de vida — e o País carece de um projeto para reforçar os cuidados prolongados e a assistência na velhice (VILARDAGA, 2018).
Ainda, a Folha de São Paulo (CANCIAN, 2015) também realizou uma pesquisa no ano de 2015 sobre o crescimento do registro de abandono e violência contra idosos. Consta na reportagem que o crescimento se deu em 16,4{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} se comparado ao ano anterior. De janeiro a junho de 2015, o Disque 100, serviço do Governo Federal, recebeu 16.014 denúncias de violência contra pessoa com 60 anos ou mais, uma média que se aproxima de 43 denúncias por dia. Dentro dessa realidade, a negligência ou abandono afetivo corresponde à maior parte das denúncias, apontada em 77.6{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} dos casos.
Tendo em vista esses recorrentes infortúnios, os operadores do direito brasileiro têm se voltado para a responsabilização dos agentes causadores do abandono afetivo inverso, bem como projetos de lei já circulam pelo Poder Legislativo no intuito de defender a exclusão do herdeiro necessário por deserdação em casos de abandono e maus-tratos aos idosos.
3 A INCLUSÃO DO ABANDONO AFETIVO NO ROL DAS CAUSAS DE INDIGNIDADE SUCESSÓRIA
As transformações sociais trazem à lume um plexo de direitos que evidenciam o ser e buscam a qualidade do existir, o que permite ao ordenamento jurídico procedimentos dinâmicos, evitando a fossilização de seus regramentos. Em que pese a rigidez normativa do direito brasileiro, um texto de lei criado em uma determinada circunstância social já modificada sofre modulações por parte dos intérpretes competentes, que se apegam aos valores constitucionais para fazer funcionar as engrenagens das, por vezes, arcaicas normas infraconstitucionais.
A inclusão do abandono afetivo no rol das causas de indignidade sucessória é um dos grandes exemplos do clamor social à novas interpretações. Todavia, a importante alteração encontra empecilho pelo fato de que o art. 1.814 do Código Civil apresenta um rol taxativo em suas hipóteses.
A taxatividade tem como fundamento as premissas constitucionais dos princípios da legalidade e, principalmente, da segurança jurídica. Assim, da mesma forma que não há crime sem lei anterior que o defina, extraída do brocardo latim nulla poena, sine praevia lege, os operadores do direito deverão zelar pela estrita aplicação do texto legal, visando a evitar que casos semelhantes sejam julgados de maneiras distintas diante das diferentes interpretações aplicadas pelos juristas.
Dessa forma, além de o texto normativo ter um papel orientador à decisão a ser proferida, atribuir a determinado regramento a característica da taxatividade vincula o juízo a literalidade da lei, já que, em tese, seu sentido mais estrito alcança a verdadeira finalidade da norma.
Ocorre que a Constituição Federal também preconiza em seus dispositivos legais o princípio da dignidade humana, conferindo ao indivíduo liberdade de ser, agir e pensar, assegurando que sua dignidade seja respeitada independentemente de suas escolhas. Por isso, é plausível que situações pré-concebidas pelo poder legislativo sejam relativizadas em prol do indivíduo, para que este tenha direito a uma dignidade plena, em áreas da vida ainda não exploradas pela legislação brasileira.
Em que pese se argumente que as ações previstas nas causas de indignidade sejam consideravelmente as mais reprováveis, não se pode afastar a alegação que, atualmente, outras condutas também causam reprovabilidade na sociedade, como é o caso do abandono afetivo. Na realidade, tal atitude sempre foi digna de reprovação, no entanto, a formação cultural e social brasileira, com extrema influência da dominação patriarcal, normalizava o abandono, bem como, marginalizava crianças e idosos.
Não é à toa que tais grupos são presumidamente vulneráveis, necessitando de um reforço legal para sua proteção, o que é garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelo Estatuto do Idoso. Ora, uma criança ser privada de afeto, de apoio material e psicológico por parte de um dos genitores, e um idoso ser desamparado e abandonado por seus filhos quando mais necessita de auxílio para ter o mínimo de qualidade de vida são circunstâncias que merecem reprimenda tanto quanto crimes contra a honra, hipótese de indignidade já prevista.
Em uma situação hipotética, imagine que um filho foi abandonado pelo pai já na infância, e que quando jovem, esse filho trabalhe e adquira bens materiais de elevado valor. Que por uma fatídica circunstância, esse jovem que ainda não possui esposa e filhos, faleça. É razoável que seu pai, que nunca participou de sua criação, receba 50{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} da herança? Que metade dos bens pelos quais o titular trabalhou duro para obter vá para o acervo patrimonial de seu genitor? Com certeza essa não seria sua escolha caso vivo fosse.
Essa imposição normativa certamente não contempla a vontade do autor da herança, tampouco soa como justa aos olhos daqueles que conviveram com ele. Sua dignidade foi mitigada quando em vida pelo agente do abandono e após a morte, pelo silêncio do ordenamento jurídico brasileiro frente aos casos de abandono paterno-filial.
Assim, intrinsecamente, a correta discussão se faz entre o sopesamento do princípio da segurança jurídica e o princípio da dignidade humana, tendo o resultado dessa ponderação considerável reflexo sobre manter a taxatividade do art. 1.814 do Código Civil ou permitir que o abandono afetivo seja incluído no rol do respectivo dispositivo.
Quando se está diante de uma colisão de princípios, o caso deve ser resolvido pelo critério da ponderação. A preponderância de um princípio sobre outrem não invalida do ordenamento jurídico aquele não utilizado; na verdade, o que acontece é uma análise do caso concreto, devendo ser observado qual princípio melhor se adequa aos fatos.
Diante do exposto, é indubitável que a segurança jurídica e o princípio da legalidade são de suma importância ao ordenamento jurídico e à sociedade brasileira, devendo suas aplicações serem resguardadas para que as instituições permaneçam firmes e o Estado Democrático de Direito prevaleça sobre políticas e vantagens de grupos privilegiados na sociedade.
Todavia, em um sopesamento desses princípios com o da dignidade da pessoa humana, não há como este não prevalecer, haja vista ser o respectivo princípio norteador da democracia brasileira e pilar da Constituição Federal, assegurando a cada indivíduo brasileiro a autonomia de ser, a justiça e o respeito às particularidades de sua vivência, independente daquilo que lhe é posto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, é possível visualizar que o abandono afetivo em todas as suas vertentes se apresenta como uma problemática social, pois geralmente se inicia tendo como vítima a parcela vulnerável da população, como crianças, adolescentes e idosos. Esse desamparo, que por muito tempo foi considerado normal na sociedade, deve ser mitigado por meio de campanhas conscientizadoras, bem como responsabilizado na seara jurídica, como já vem acontecendo.
Embora a responsabilização dos agentes atualmente ocorra por meio de indenizações, entende-se que a privação destes ao direito de receber o patrimônio daqueles que sucedem teria um peso mais significativo. O desamparado não precisaria propor ações de reparação e execução para buscar o que é seu por justiça, mas sim, seria amparado por uma legislação que preza por sua dignidade mesmo após a morte, que confere àquele que o abandonou a consequência de se ver indigno, privado de receber o que poderia ser seu.
Em que pese seja posição majoritária no direito civil considerar que o art. 1.814, do Código Civil, tenha um rol taxativo, existem operadores do direito que apresentam interpretações diferentes, teleológicas, defendendo que o sentido da norma deve sobressair à sua literalidade. Assim, a equívoca taxatividade das causas de indignidade sucessória, que distancia o direito das sucessões do senso de justiça reclamado pela sociedade, vem perdendo cada vez mais espaço.
Desse modo, tendo em vista as mudanças ocorridas na sociedade, não mais conivente com atitudes de abandono afetivo, e os caminhos que o ordenamento jurídico vem tomando, aplicando o sentido teleológico da norma, condizente com o princípio da dignidade humana, é possível concluir não só pela possibilidade, mas também, a necessidade de inclusão do abandono afetivo no rol das causas de indignidade sucessória.
REFERÊNCIAS
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