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IN DUBIO PRO SOCIETATE: UMA INTERPRETAÇÃO ARBITRÁRIA DO CONCEITO DE CRIME

IN DUBIO PRO SOCIETATE: UMA INTERPRETAÇÃO ARBITRÁRIA DO CONCEITO DE CRIME

Rénan Kfuri Lopes

 

O que se pretende explicitar aqui é saber qual a importância do conceito analítico do crime: a conduta, o nexo de causalidade, o resultado e a tipicidade; a relevância do conhecimento das teorias da conduta; a sua aplicação no processo penal; e as implicações ao regime democrático, quando adotada, pelo operador do direito, uma postura refratária, ao aplicar, por exemplo, o princípio do in dubio pro societate.

A análise dos estratos do delito deve ser feita quando da formação da opinio delicti pelo Ministério Público; quando do arquivamento do inquérito policial; em caso de absolvição sumária e, até mesmo, por ocasião da prolação da sentença.

Entrementes, existe o princípio do in dubio pro societate que advoga a tese de que é dispensável a análise aprofundada dos estratos do delito, se contentando com a caracterização da tipicidade formal.

O assunto apresenta relevância vez que uma interpretação arbitrária pode implicar na extrapolação dos limites semânticos do texto, decorrente de visões pessoais, utilitaristas, como se fosse possível uma linguagem privada, isso sem mencionar a desconsideração da razoável duração do processo e à dignidade do investigado.

A razão de ser do conceito analítico é perscrutar todos os componentes do delito, sendo que ausente um dos seus requisitos, crime não haverá. Sendo assim, na análise do delito deve-se considerar, desde o início, todos os seus elementos integrantes, não havendo como dividi-lo. Para os que adotam a teoria bipartida, crime é fato típico e antijurídico; para os que se filiam à teoria tripartida, crime é fato típico, ilícito e culpável.

A própria conceituação de dolo possui extrema relevância para fins de ajuizamento de uma ação penal, havendo nítida repercussão e a ocorrência de resultados dispares, quando se é adepto de um catálogo aberto (dolo de natureza normativista-volitiva: Roxin e Hassemer), ou fechado de indicadores do dolo (dolo de natureza normativista-cognitiva: Ingeborbg Pupe, Wagner Marteleto, Eduardo Viana e Luis Greco).

Quando se lê “fato criminoso”, “crime”, “infração penal” que significado deve-se dar? Que consiste em mera subsunção do fato ao tipo, aplicando-se o princípio do in dubio pro societate, ou que crime é fato típico, antijurídico e culpável, como construído, durante longo processo de discussão jurídica e filosófica, pela dogmática penal?

Deve o intérprete dar o sentido que ele quer ou deve ele atribuir o sentido construído intersubjetivamente, fruto de uma linguagem pública, advindo de uma longa e séria construção filosófica e doutrinária?

Se por um lado a atuação do Ministério Público e do magistrado, no âmbito do processo penal, não deve se ater, somente, ao “texto frio da lei”, lado outro, não deve ultrapassar os sentidos semânticos do texto, e, os conceitos jurídicos que foram construídos filosófoca e doutrinariamente (dogmática penal), devendo se encontrar algo entre (no meio) o positivismo e o interpretativismo.

O que se coloca em xeque é a aplicação de princípio(s) de duvidosa normatividade para solapar o texto legal ou lhe conferir interpretação arbitrária, como o aludido princípio do in dubio pro societate, quando o fato evidentemente não constitui crime.

É necessário problematizar que existe um conceito de princípio, sendo um instituto que foi objeto de descrição, por diversas concepções filosóficas que trataram do tema, ao longo de anos, sendo que o sentido do conceito não pode, atualmente, ser criado e conceituado ao talante dos tribunais e demais operadores do direito, sem que antes seja reconstituída a sua história institucional — do(s) princípio(s).

Em outras palavras, se existe um conceito de princípio, e, uma forma pela qual este se manifesta na fundamentação e interpretação do Direito, aos tribunais, e demais operadores do direito, cabe o ônus argumentativo prévio de apresentar quais são as condições de possibilidade pelas quais se afirma que algo é (“in dubio pro societate“) um princípio.

As concepções de Robert Alexy e Ronald Dworkin a respeito do(s) conceito(s) de princípio, demonstram que sua aplicação não pode ser feita de forma descriteriosa, sem uma heurística, sob pena de tais “princípios” serem utilizados de forma meramente performática, como álibis teóricos, ao ponto de constituir aquilo que Luis Aberto Warat denomina como senso comum teórico dos juristas.

Inexiste nenhum óbice à leitura da norma processual penal da forma como foi escrita e compreendida, entendendo por “fato criminoso” o crime com todos os seus elementos integrantes — tipicidade, ilicitude e culpabilidade.

A aplicação do princípio do in dubio pro societate implica em ato de cisão entre interpretar e aplicar, já que advoga que quando do recebimento da inicial acusatória deve-se desconsiderar os estratos do delito, bastando a tipicidade material, relegando para outro momento a análise da ilicitude e culpabilidade.

A verdade é que inexiste cisão, já que o interprete quando se depara com o fato como um todo, quando vislumbra presente (com clareza solar) que o delito foi cometido em legítima defesa, em estado de necessidade, em estrito cumprimento do dever legal, ou, que o sujeito é claramente inimputável, não tinha a potencial consciência da ilicitude, ou não se exigia dele outra conduta, já conclui pela inexistência do crime.

Em outros termos, quando o interprete, em razão de sua pré-compreensão, seus pré-juizos autênticos (Heidegger/Gadamer), se depara com o texto (fato criminoso) em conjugação com os fatos, já enxerga os elementos (estratos do delito e teorias da conduta) e conceitos que, desde já, alimentam sua carga pré-compreensiva, razão pela qual inexiste, na verdade, cisão entre texto, fato e os conceitos jurídicos. A pré-compreensão sempre chega antes.

Portanto, quando uma pessoa vai dialogar com o texto (Gadamer), ela não pode atribuir sentido arbitrário ao texto, e, por isso, quando se depara com as expressões “crime”, “fato criminoso” etc., existe toda uma carga pré-compreensiva que informa e dá sentido a estas palavras.

Portanto, não há cisão entre “texto” e o sentido do texto, havendo, tão somente, uma diferença entre eles, sendo que os conceitos (estratos do delito e teorias da decisão) vão atribuir sentido a um texto (fato criminoso, infração penal), sentido este que advém da nossa pré-compreensão do que seja “crime”.

O Direito exige um mínimo de objetividade para fins de segurança jurídica, incabível, portanto, dar dribles hermenêuticos (Streck), sambariloves interpretativos, cloroquinas jurídicas (Streck), etc… ou algo é ou não é, sendo descabida a cisão entre regra e princípio, entre texto e norma, e, enfim, entre “crime” e o seu conceito doutrinário.

Assim, ou crime é fato típico, antijurídico e culpável ou não é; ou se consideram todos os estratos do delito em qualquer fase do inquérito ou do processo penal, ou não, sob pena de se perder o sentido do(s) conceito(s).

Decidiu o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL em acórdão elucidativo sobre o tema:

“Penal e Processual Penal. 2. Júri.

3. Pronúncia e standard probatório: a decisão de pronúncia requer uma preponderância de provas, produzidas em juízo, que sustentem a tese acusatória, nos termos do art. 414, CPP.

4. Inadmissibilidade in dubio pro societate: além de não possuir amparo normativo, tal preceito ocasiona equívocos e desfoca o critério sobre o standard probatório necessário para a pronúncia.

Valoração racional da prova: embora inexistam critérios de valoração rigidamente definidos na lei, o juízo sobre fatos deve ser orientado por critérios de lógica e racionalidade, pois a valoração racional da prova é imposta pelo direito à prova (art. 5º, LV, CF) e pelo dever de motivação das decisões judiciais (art. 93, IX, CF).

5. Critérios de valoração utilizados no caso concreto: em lugar de testemunhas presenciais que foram ouvidas em juízo, deu-se maior valor a relato obtido somente na fase preliminar e a testemunha não presencial, que, não submetidos ao contraditório em juízo, não podem ser considerados elementos com força probatória suficiente para atestar a preponderância de provas incriminatórias.

6. Dúvida e impronúncia: diante de um estado de dúvida, em que há uma preponderância de provas no sentido da não participação dos acusados nas agressões e alguns elementos incriminatórios de menor força probatória, impõe-se a impronúncia dos imputados, o que não impede a reabertura do processo em caso de provas novas (art. 414, parágrafo único, CPP). Primazia da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF e art. 8.2, CADH).

7. Função da pronúncia: a primeira fase do procedimento do Júri consolida um filtro processual, que busca impedir o envio de casos sem um lastro probatório mínimo da acusação, de modo a se limitar o poder punitivo estatal em respeito aos direitos fundamentais.

8. Inexistência de violação à soberania dos veredictos: ainda que a Carta Magna preveja a existência do Tribunal do Júri e busque assegurar a efetividade de suas decisões, por exemplo ao limitar a sua possibilidade de alteração em recurso, a lógica do sistema bifásico é inerente à estruturação de um procedimento de júri compatível com o respeito aos direitos fundamentais e a um processo penal adequado às premissas do Estado democrático de Direito.

9. Negativa de seguimento ao Agravo em Recurso Extraordinário. Habeas corpus concedido de ofício para restabelecer a decisão de impronúncia proferida pelo juízo de primeiro grau, nos termos do voto do relator.”
[ARE 1067392, Rel. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe 02.07.2020].

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS               

BARBOSA, Andeirson da Matta. A importância da aplicação do conceito de crime no seu aspecto formal (analítico). Revista MPMG jurídico – ano 11- nº9, abril/maio/junho de 2007.

DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986.

MARTELETO FILHO, Wagner Marteleto: Dolo e Risco no direito penal. Fundamentos e limites para a normatização: Ed. Marcial Pons. São Paulo: 2020.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 15ª ed. Petrópolis: Vozes.2015.

GRECO, Rogério: Curso de Direito Penal: Parte Geral: Editora Impetus:
7 Edição: Volume 1: Niterói, Rio de Janeiro: 2007.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 7ª ed. Petrópolis: Vozes. 2012.

STRECK, Lenio Luiz. O que é isto — decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

STEIN, Ernildo. Da analítica da linguagem à antropologia filosófica. Filosofazer (impressa), v. 33, n. 2, 2016. p. 276-277.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal:
Editora Saraiva. São Paulo: 4 Edição; 1991.

WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, v. 3, n. 05, p. 48-57, 1982. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/17121.Acesso em 28 mai. 2021.