IN DUBIO PRO SOCIETATE: DECIFRA-ME OU TE DEVORO
Alberto Zacharias Toron
Renato Marques Martins
De acordo com um antigo mito grego, a Esfinge de Tebas observava atentamente cada viajante que passava pela cidade e a ele apresentava o ultimato: decifra-me ou te devoro. Algo assim se passa com o equivocadamente chamado “princípio” do in dubio pro societate. Primeiro, porque de princípio não se trata; pode ser um postulado ou, no máximo, um “princípio em sentido metafórico” como exprimiu oralmente o ministro Reynaldo Soares da Fonseca no julgamento do AgRg no AgRg do REsp. n. 1.991.574/SP, (relator ministro João Batista Pereira, DJe 8/11/23).
É que a dúvida em favor da sociedade não está na Constituição, nem nas leis e não é uma decorrência lógica do ordenamento jurídico como um todo. A Constituição da República, ao contrário, consagra a presunção de inocência (artigo 5º, inciso LVII), que é reafirmada na legislação ordinária do processo penal nos artigos 283 e 313, §2º, além de encontrar eco na Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 8, item 2).
A despeito disso, a expressão “princípio do in dubio pro societate” é largamente empregada por juízes e tribunais. O dia a dia forense retrata com incomum profusão e reiteração a proclamação do dito princípio para se receber a denúncia e igualmente para se pronunciar alguém. O caráter interlocutório dessas decisões, isto é, de apenas permitir que o feito avançasse uma fase, no primeiro caso para instaurar a ação penal e, no segundo, para levar o acusado a julgamento pelo júri, abre as portas para afirmações do tipo, “a dúvida nessa fase milita em favor da sociedade, devendo o réu ser levado a júri onde se apreciarão as questões suscitadas pela defesa”.
É compreensível que em se tratando de decisão interlocutória não se cogite da aplicação do princípio in dubio pro reo. Este, segundo a compreensão hoje dominante no Judiciário, terá lugar quando do julgamento de mérito. Todavia, essa forma de encaminhar e organizar as coisas no âmbito do processo penal brasileiro, que de longa data já era fortemente questionada pela doutrina[1], começa a ser refutada na própria atividade jurisdicional. Assim, o decidido monocraticamente pelo ministro Gilmar Mendes no conhecido HC nº 227.328/PR (DJe 15/5/2023):
Com todas as vênias, no processo penal, a dúvida sempre se resolve em favor do réu, de modo que é imprestável a resolução em favor da sociedade.
O suposto “princípio in dubio pro societate“, invocado pelo Ministério Público local e pelo Tribunal de Justiça não encontra qualquer amparo constitucional ou legal e acarreta o completo desvirtuamento das premissas racionais de valoração da prova. Além de desenfocar o debate e não apresentar base normativa, o in dubio pro societate desvirtua por completo o sistema bifásico do procedimento do júri brasileiro com o total esvaziamento da função da decisão de pronúncia. Diante disso, afirma-se na doutrina que:
“Ao se delimitar a análise do in dubio pro societate no espaço atual do direito brasileiro não há como sustentá-la por duas razões básicas: a primeira se dá pela absoluta ausência de previsão legal. Desse brocardo e, ainda, pela ausência de qualquer princípio ou regra orientadora que lhe confira suporte político-jurídico de modo a ensejar a sua aplicação; a segunda razão se dá em face da existência expressa da presunção de inocência no ordenamento constitucional brasileiro, conferindo por meio de seu aspecto probatório, todo o suporte político-jurídico do in dubio pro reo ao atribuir o ônus da prova à acusação, desonerando o réu dessa incumbência probatória” (NOGUEIRA, Rafael Fecury. Pronúncia: Valoração da Prova e Limites à Motivação. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, 2012, p. 215).
Assim, ressalta-se que “com a adoção do in dubio pro societate, o Judiciário se distancia de seu papel de órgão contramajoritário, no contexto democrático e constitucional, perdendo a posição de guardião último dos direitos fundamentais”. (DIAS, Paulo T. F. A decisão de pronúncia baseada no in dubio pro societate. EMais, 2018. p. 202).
No âmbito do STJ, em acórdão da lavra do ministro Rogério Schietti, a 6ª. Turma, com igual contundência, veio a proclamar não ser consentânea com o procedimento bifásico do Júri a decisão de pronúncia, “com a cômoda invocação do questionável in dubio pro societate”, relegar a juízes leigos “a tarefa de decidir sobre um estado anímico cuja verificação demanda complexa e técnico exame de conceitos jurídico-penais”. E o voto condutor, com toda procedência assinala que “a jurisdição criminal não pode, ante a deficiência legislativa na tipificação das condutas humanas, impor responsabilidade penal além da que esteja em conformidade com os dados constantes dos autos e com a teoria do crime, sob pena de render-se ao punitivismo inconsequente, de cariz meramente simbólico, contrário à racionalidade pós-iluminista que inaugurou o Direito Penal moderno” (REsp nº 1.689.173, relator ministro Rogério Schietti Cruz, v.m., DJe 26.03.18).
Este julgado do STJ, foi tomado por escassa maioria de votos, 3 x 2, e, além de ser único, pelo dissenso verificado, não pode ser tomado como um precedente definitivo. Muito pelo contrário, parece reclamar constante reflexão. E é o que se deu, recentemente, no julgamento do já citado AgRg no AgRg do REsp. nº 1.991.574, relatado pelo ministro João Batista Pereira (DJe 08.11.23). O voto do relator afastava a aplicação do denominado princípio do in dubio pro societate.
Todavia, na ementa deste julgado veio expresso que referido princípio “deve prevalecer apenas em relação à materialidade e autoria; não, ao elemento subjetivo. Em relação a este, o juiz singular deve sopesar as provas e circunstâncias e decidir, fundamentadamente, quanto à hipótese de desclassificação para a forma culposa, caso dos autos” (item nº 9). E isso ocorreu porque, após a prolação do voto do relator, o Min. Joel Paciornik pediu vista e firmou, sob esse aspecto, que não se poderia dizer inaplicável o princípio do in dubio pro societate. No voto vencedor neste particular, veio dito que “nessa oportunidade processual, geralmente, não cabe a análise exauriente acerca da materialidade e da autoria delitiva, razão pela qual, havendo dúvida nesse sentido, deve vigorar o princípio do in dubio pro societate, com a pronúncia do réu e sua submissão ao Conselho de Sentença, sob pena de se usurpar a competência constitucional do Tribunal do Júri. (p. 17 do voto vista).
Mas ele ressalvou a peculiaridade do caso, e concluiu “que a incerteza paira sobre a fluida concepção íntima do dolo eventual, do que depende o enquadramento jurídico da conduta e, em última análise, a própria materialidade delitiva”. De fato, salientou que “excepcionalmente, não há falar em aplicação do princípio do in dubio pro societate, tendo em vista que, com o afastamento do dolo eventual na conduta do agente, considerando a ausência de demonstração concreta de circunstâncias objetivas demonstrativas do referido elemento volitivo, imperiosa a desclassificação para o tipo penal previsto no artigo 302 do CTB”.
Daí a afirmação de que “sem qualquer incompatibilidade com o entendimento predominante nesta Corte Superior, entendo que a dúvida quanto à própria tipicidade — elemento da materialidade — do crime doloso contra a vida deve ser resolvida em favor do réu”.
Afinal, completa o ministro Joel, “subverteria toda sua lógica jurídica relegar a juízes leigos, com a invocação da regra do in dubio pro societate, a tarefa de decidir sobre a ocorrência de um estado anímico cuja verificação demanda complexo e técnico exame de conceitos jurídico-penais. A partir dessa premissa, é inadmissível a pronúncia quando não houver prova da materialidade delitiva, com enquadramento típico de crime doloso contra a vida, transferindo para o conselho de sentença o juízo técnico acerca de elemento da tipicidade. Tal providência, repita-se, não implica em afastar a aplicação do princípio do in dubio pro societate, mas tão somente em realizar a exata delimitação da competência para julgamento do feito, na hipótese concreta” (p.p. 18/19 do voto). A maioria da Turma Julgadora acompanhou o ministro Joel, tendo o relator ficado, no ponto, vencido na companhia do ministro Messod Azulay.
A questão poderia ser colocada em termos de padrão (standard) probatório exigido para cada etapa do processo. Dessa forma, recebe-se a denúncia a partir de indícios, mas não de meras suspeitas, e se pronuncia com a certeza da materialidade e indícios suficientes de autoria (CPP, artigo 413). O ponto central parece residir no campo cognitivo do magistrado. No caso do Júri, para não invadir a competência do juiz natural, o juiz não tem cognição exauriente, salvo, segundo a intelecção do novo julgado da 5ª Turma do STJ, se se tratar de questão atinente ao elemento subjetivo do tipo, quando o magistrado precisaria resolver a questão relativa ao intrincado tema do dolo eventual.
Parece que estamos num meio de caminho sem a adequada solução do problema da aplicação do in dubio pro reo nas decisões interlocutórias, mas se pode notar que aquela propensão ampliativa da pronúncia com a utilização ampla da categoria do dolo eventual está se reduzindo. Hoje não basta alta velocidade, mesmo que aliada à embriaguez, para se pronunciar alguém. Tanto a 5ª como a 6ª Turma têm decisões no sentido de que: “somente a embriaguez, aliada à alta velocidade, não é suficiente à dedução de que o agente agiu com dolo eventual” (AgRg no AREsp nº 1502960, relator ministro Rogério Schietti, DJe 12.02.20). Idem o AgRg no REsp. nº 1.848.945/PR, de relator ministro Jorge Mussi, DJe 20.4.20).
Para a caracterização do dolo eventual, a evolução da jurisprudência indica a necessidade de alguma outra ocorrência, como “racha”, “cavalo de pau” ou outra manobra arriscada com o veículo, de modo a indicar a assunção do risco. O tema, não se pode esquecer, vem marcado pela casuística. Havia uma proposta da ministra Laurita Vaz para, em regime de recursos repetitivos, disciplinar a matéria de modo que só ao júri caberia decidir se haveria dolo eventual ou não. Prevaleceu o bom senso e a proposta foi retirada, pois a matéria deve ser decidida “caso a caso” (REsp. nº 1.863.084, relator ministro Laurita Vaz, DJe 20/10/2023).
Para não sermos devorados pela Esfinge de Tebas, poderíamos a exemplo do que fez o ministro Reynaldo Soares da Fonseca, dizer que o princípio do in dubio pro societate tem caráter metafórico de modo a condensar a ideia de que a cognição do magistrado na pronúncia, e mais ainda no recebimento da denúncia, não é exauriente e que o padrão probatório exigido é inferior ao demandado para a condenação, tal como gizou o ministro Pertence ao relatar o HC nº 81.646, ao dizer que o aforismo in dubio pro societate é reputado adequado “a exprimir a inexigibilidade de certeza da autoria do crime, para fundar a pronúncia”, mas “jamais vigorou no tocante à existência do próprio crime”[2] (DJ 09.08.02). Metafórico ou não, a tendência é a de se banir o emprego desta expressão no campo do judiciário para dar lugar à fixação da ideia de padrão probatório mínimo à prolação da pronúncia e, antes ainda, do recebimento da denúncia. Nas palavras do Des. aposentado Sydnei de Oliveira Júnior, do TJSP: “a práxis judiciária processual deve estar atenta, pronta e apta a admitir, vez por outra, o relaxamento da competência popular, quando isso puder importar, ou pôr em perigo, o universal sentido de Justiça. Nela deve haver menos hesitação no reconhecimento de que certas demandas não devem ser colocadas para o debate de leigos, em especial quando nelas estão embutidas altas indagações jurídicas. Somente através dela se rompem os arquétipos clássicos, vetustos e antiquados do processo penal, preconizando-se soluções mais corajosas, mais inovadoras, mais humanas e decerto mais próximas do ideal do justo. Enfim, já é tempo de desvestir-se a toga da irracional intolerância e já tarda a hora de despir-se das vestes talares do arcaico conservadorismo” (Embargos Infringentes e de Nulidade nº 993.07.079172-1/50001, DJ 18.03.10).
[1] Por todos, Aury Lopes Jr., Direito Processual Penal. 20ª. ed. São Paulo, 2023, p. 434/435
[2] Esse julgado foi lembrado no excelente “O in dubio pro societate no processo penal brasileiro: uma análise da origem e do histórico de sua aplicação pelo Supremo Tribunal Federal, de Reynaldo Soares da Fonseca, Humberto B. Fabretti e Amanda Scalisse Silva, publicado na coletânea “Código de Processo Penal: estudos comemorativos dos 80 anos de vigência. São Paulo: Revista dos Tribunais 2021.