A (IM)POSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DE MEDIDAS ATÍPICAS NAS OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS E NAS OBRIGAÇÕES DE FAZER
Pedro Henrique Gomes Ramiz Wright
Julia Guimarães Gonçalves
SUMÁRIO: Introdução; 1 Dos meios judiciais de satisfação de crédito; 1.1 Os títulos executivos; 2 Medidas atípicas; 2.1 Requisitos das medidas atípicas; 3 Violação dos princípios no uso de medidas atípicas?; 3.1 Utilização de medidas atípicas em obrigação de caráter pecuniário; 3.2 Utilização de medidas atípicas em obrigação de caráter não pecuniário; 3.3 Utilização de medidas atípicas em desfavor de pessoa jurídica; 3.4 Utilização de medidas atípicas em desfavor do Poder Público; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
Entre as diversas modificações e inovações do Código de Processo Civil, uma que se destaca, com especial relevância, encontra-se prevista no art. 139, inciso. IV, no novo Código de Processo Civil.
O referido inciso ampliou os poderes do magistrado para a satisfação do crédito do credor, com o uso de medidas atípicas, quando os meios ordinários não forem eficazes ao adimplemento da obrigação.
Conquanto sua justificativa seja válida – se baseia no dever de efetivação da decisão judicial, consistente no cumprimento de decisões de caráter pecuniário, ou, ainda, de obrigação de fazer/não fazer -, pois traz maior efetividade às relações em que uma parte sofre com a inadimplência obrigacional da outra, é necessário realizar o contrapeso com o sistema jurídico pátrio e suas garantias fundamentais, as quais são instransponíveis, na medida em que regulam a vida social, política e jurídica de todo cidadão.
Este artigo analisará a mudança implementada na lei processual, à luz dos princípios constitucionais e infraconstitucionais aplicáveis, encerrando-se com a conclusão dos autores sobre o tema.
1 DOS MEIOS JUDICIAIS DE SATISFAÇÃO DE CRÉDITO
Todo o credor tem a legítima pretensão de receber o que lhe é devido pelo devedor. Esse fato se aplica tanto por dívidas constituídas extrajudicialmente (acordos comerciais descumpridos, prestação de serviço não adimplidas, etc.) quanto judicialmente (por meio de determinação judicial).
No entanto, em ambos os casos, quando o devedor não satisfaz voluntariamente o pagamento da dívida, o credor, em regra, socorre-se da tutela jurisdicional do Estado para valer-se de seu direito tão logo este seja exigível.
Por consectário lógico, a tutela jurisdicional utilizada para satisfação do direito do credor tem por objetivo o adimplemento do direito do credor/autor com o respectivo – e devido – cumprimento pelo devedor/réu.
O método mais adequado para o cumprimento forçado da obrigação depende do caso concreto[1]. Em alguns, será imperativo o processo de conhecimento para a necessária averiguação dos fatos pelo Judiciário mediante a fase de cognição. Em outros, haverá a faculdade do credor de utilizar-se do processo de execução, caso o pedido se consubstancie em algum documento previsto no art. 784 do Código de Processo Civil.
É importante destacar que, independentemente do processo (ordinário ou autônomo de execução), a responsabilidade para a satisfação do crédito do credor é do próprio, porquanto é imprescindível o seu requerimento. Em regra, o Juízo não pode, de ofício, dar início ao processo ou à fase processual, para a satisfação do crédito.
1.1 Os títulos executivos
É cediço que todo método de execução se consubstancia em um título executivo. Não há a possibilidade de o credor valer-se de um método executivo sem que esse esteja embasado em uma decisão judicial ou arbitral, ou de uma atividade realizada extrajudicialmente que tenha força de título executivo extrajudicial.
Tal medida afigura-se um modo de proteção do devedor, pois confere à execução maior segurança, não sendo possível valer-se de quaisquer métodos executivos com arbitrariedade e discricionariedade, situação que poderia prejudicar o executado.
Em espécie, são eles: títulos executivos judiciais, oriundos sempre de um processo judicial, exigíveis na fase de cumprimento de sentença (art. 515 do CPC); e títulos executivos extrajudiciais (art. 784 do CPC), os quais serão objeto de processo autônomo e gozam de uma presunção relativa de validade.
Nos casos previstos nos incisos VI a IX do art. 515 do Código de Processo Civil, para que o credor busque a satisfação da obrigação do seu título judicial, o cumprimento de sentença deverá seguir procedimento autônomo.
Veja-se que, nos incisos supracitados, o título decorre de natureza diversa que pode ser, ad exemplum, arbitral, estrangeira, penal ou decisão interlocutória estrangeira. Portanto, terá o autor que liquidar a sentença na esfera cível, sendo o réu citado, nos termos dos §§ 1º e 2º do art. 513 do Código de Processo Civil.
Para o caso de execução de título extrajudicial, os quais estão dispostos de forma exemplificativa no art. 784 do Código de Processo Civil (quaisquer outros documentos que, por força de lei, sejam considerados título executivo extrajudicial também podem ser objeto de ação de execução), o título executivo deve sempre expressar uma obrigação certa, líquida e exigível, cujas características correspondem, respectivamente, à certeza das partes, à quantificação da suposta dívida e ao momento apropriado de exigibilidade dessa dívida.
Na hipótese de o título não ser certo e/ou ilíquido e/ou inexigível, mesmo previsto no art. 784 do Código de Processo Civil, não se afigura útil a propositura da execução de título extrajudicial. Deverá o credor, então, buscar o processo de conhecimento para tornar o título exigível perante o devedor.
Toda demanda, independente da fase ou do título que a embasar, deve-se atentar aos princípios previstos no Código de Processo Civil. Destacam-se alguns:
(a) princípio da cooperação, que, nas palavras da doutrina, consiste em “harmoniosa sintonia nesta prática de atos processuais, os quais devem ser realizados sempre sob o signo da boa-fé“[2];
(b) princípio da efetividade e da razoável duração do processo, por meio dos quais buscam-se alcançar os fins para os quais o processo foi instituído, dentro de um prazo razoável, para garantir o melhor resultado, de forma justa para que a parte vencedora possa desfrutar de seus diretos;
(c) princípio da menor onerosidade da execução, que “determina que o juiz mande que a execução se faça pelo modo menos gravoso para o executado, quando, por vários meios, o credor puder promovê-la“[3];
(d) princípio da proibição do excesso, que dispõe que qualquer direito fundamental não poderá ser atingido em sua essência;
(e) princípio da satisfatividade, o qual determina que não poderá recair nenhuma constrição sobre bens, aplicações financeiras e quaisquer ativos do devedor em montante superior à dívida – admite-se ultrapassar essa medida somente nas hipóteses em que houver diversos devedores e todos forem responsáveis pelo débito, hipótese em que se autorizará a satisfação do crédito com todo o patrimônio do devedor, ainda que superior à sua quota-parte da dívida[4]; e
(f) princípio da responsabilidade patrimonial, previsto no art. 789 do Código de Processo Civil, o qual dispõe que o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações. Em suma, o dispositivo afirma que a execução recai sobre os bens e não reflete sobre a pessoa do devedor – a exceção à regra se dá na hipótese do devedor de alimentos.
Cumpre dizer que esses princípios não devem – e sequer são permitidos – se sobrepor aos princípios constitucionais. Inclusive, alguns dos princípios supracitados possuem origem nos dispostos na Constituição.
2 MEDIDAS ATÍPICAS
Como se percebe, as execuções, independentemente de sua origem, têm função primordial para o encerramento da questio vexata, e, por conseguinte, na realização da Justiça.
Hodiernamente, sabe-se que existe enorme dificuldade em satisfazer créditos devidos, principalmente de grande monta, uma vez que o devedor se utiliza de subterfúgios para evitar a diminuição de seus bens, seja porque não possui condições reais de pagamento ou porque muitas vezes apenas não possui o interesse em quitar a dívida pelas mais diversas razões.
Esse fato, inclusive, é um dos motivos que sufocam a Justiça de inúmeros processos[5], acumulando cada vez mais demandas e causando uma enorme paralisação da Justiça, tendo em vista que, devido à quantidade de lides, é impossível ser célere – e correta – em todas.
Neste contexto, visando ao cumprimento da obrigação estabelecida entre as partes, ou pelo Judiciário, os Magistrados valem-se de três tipos de sistemas para seu fiel cumprimento: (a) típico, quando os meios utilizados estão previsto na legislação; (b) atípicos, quando os atos determinados pelo Juízo não estão previstos explicitamente na legislação; e (c) misto, quando englobam os dois sistemas.
As medidas atípicas, objeto de análise do presente artigo, estão dispostas com maior clareza no inciso IV do art. 139 e no art. 297 e no § 1º do art. 536, todos do Código de Processo Civil.
Os três referidos dispositivos possuem dimensões de medidas atípicas em diversas situações; contudo, com uma mesma característica em comum: no curso de um procedimento judicial.
Percebe-se que o art. 139, inciso IV, inovou ao dispor que cabe a utilização de medidas atípicas pelo magistrado “inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária“.
Isso porque, no Código de Processo Civil de 1973, a atipicidade das medidas executivas era restrita às ações de (não) fazer e nas prestações de dar coisa. Confira-se, nesse sentido, a mais abalizada doutrina:
Chama a atenção neste inciso IV do art. 139, ademais, a expressa referência às “ações que tenham por objeto prestação pecuniária“, que convida o intérprete a abandonar (de vez, e com mais de dez anos de atraso) o modelo “condenação/execução“, que, até o advento da Lei nº 11.232/2005, caracterizou o modelo executivo do CPC de 1973 para aquelas prestações e suas consequentes “obrigações de pagar quantia“. Até porque, com relação às demais modalidades obrigacionais, de fazer, de não fazer e de entrega de coisa, esta atipicidade já é conhecida pelo direito processual civil brasileiro desde o início da década de 1990. Primeiro com o art. 84 da Lei nº 8.078/1990 (Código do Consumidor) e depois, de forma generalizada, pela introdução do art. 461 no CPC de 1973 pela Lei nº 8.952/1994.[6]
Um parêntese importante: a aplicação do art. 139, IV, é faculdade do Juízo em qualquer modalidade de execução, não somente no cumprimento de sentença, como defende Araken de Assis[7].
Por sua vez, o art. 297 do CPC trata da possibilidade de utilização das medidas atípicas quando concedidas tutelas provisórias.
Noutro giro, o art. 536, § 1º, do CPC dispõe sobre a hipótese de medida atípica no cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou entregar coisa, a qual poderá ser decretada de ofício para a efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.
No entanto, alega Araken de Assis que a referida norma é inconstitucional:
Araken de Assis em sentido oposto, entende que não se pode falar em atipicidade das medidas executivas. Para ele, tal interpretação do art. 536, § 1º, CPC, seria inconstitucional por violação ao art. 5º, LIV, da Constituição Federal, que impede que o sujeito seja privado de seus bens sem a observância do devido processo legal. Entende que é “ilegítimo engendrar um mecanismo próprio específico para o caso concreto, em benefício de umas das partes e em detrimento da outra“. E conclui: “Nada disso impede a incidência da adequação do meio ao fim como método de concretizar direitos; porém, no âmbito da tipicidade“.[8]
Destacam-se, entre os casos mais comuns de medidas atípicas aplicadas pelos magistrados, ad exemplum: apreensão de passaporte, suspensão da carteira de motorista, suspensão do CPF ou do CNPJ, cancelamento do cartão de crédito e intervenção judicial na empresa.
2.1 Requisitos das medidas atípicas
Quando cabível a aplicação das medidas atípicas no caso concreto, o magistrado tem o dever de atentar-se para os seguintes requisitos para a sua concessão: (a) o atraso no cumprimento da obrigação deve decorrer exclusivamente da procrastinação de sua efetivação pelo devedor; (b) tal aplicação deve ser subsidiária, considerando que tais atos devem ser executados somente depois de esgotadas todas as medidas típicas e estas restarem infrutíferas; (c) a decisão que aplica a medida atípica deve ser fundamentada, pois, sem a devida fundamentação adequada, haverá a possibilidade de excessos; e (d) não gerar um cenário de desigualdade entre as partes e que ocasione um processo injusto e imparcial.
E, mesmo entre as medidas atípicas, deve haver uma ordem entre elas, devido à gravidade de seus efeitos perante o executado. Imagine-se, por exemplo, que, esgotados todos os meios típicos para efetivação da execução, um determinado atleta, executado, que, por atividade laborativa, deva viajar o mundo para exercer sua profissão, tenha, como primeira medida atípica, a retenção de seu passaporte. Não se faz razoável.
Em regra, deve-se oportunizar o contraditório ao devedor, sob pena de supressão do devido processo legal e da ampla defesa. Tal ato é importante para verificar se a medida é, ou não, razoável, mesmo correndo-se o risco de não se efetivar a medida diante da ciência do devedor. Poder-se-ia abrir uma exceção a essa regra, quando a medida atípica utilizada fosse branda e facilmente convertida para o status quo de antes.
3 VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS NO USO DE MEDIDAS ATÍPICAS?
3.1 Utilização de medidas atípicas em obrigação de caráter pecuniário
Existe uma divergência extensa quanto à possibilidade de utilização de medidas atípicas para satisfação do crédito.
Discute-se, precipuamente, se as medidas atípicas, cujo caráter de coerção é notório, violariam princípios constitucionais, como, por exemplo, a dignidade da pessoa humana ou o direito de ir e vir, o qual garante a liberdade da pessoa.
A delicadeza do assunto consiste no antagonismo de suas defesas: por um lado, busca-se a perseguição pecuniária de dívida – o adimplemento da obrigação – quando já esgotadas todas as formas de cobrança; e, por outro lado, existe preocupação para assegurar o respeito a princípios, direitos e garantias constitucionais do devedor, mesmo quando este inadimplente.
A conclusão que chegamos é de que a pessoa do devedor não deve submeter-se à execução em hipótese alguma[9]. Em suma, entendemos que o devedor não deve responder em seu âmbito extrapatrimonial, ainda que de maneira reflexa, mas tão somente na sua esfera patrimonial.
Isso porque essa ideia está explícita no art. 789 do Código de Processo Civil, o qual é expresso ao consignar que “o devedor responde com todos os seus bens futuros os presentes“.
Esse artigo positivou o que a doutrina chama de princípio da responsabilidade patrimonial, que seria “o estado de sujeição do patrimônio do devedor, ou de terceiros responsáveis (cf. art. 790, CPC), às providências executivas voltadas à satisfação da prestação devida. Seria a sujeição potencial e genérica de seu patrimônio”[10].
De acordo com referido princípio/artigo, o devedor não responde na sua esfera extrapatrimonial pela dívida contraída, mas exclusivamente na sua esfera patrimonial, ainda que não a tenha à época da constituição da dívida.
À luz desse princípio, é certo, portanto, o que deve responder sobre a dívida pecuniária é o patrimônio do devedor. Essa é a principal razão para que se rejeite a utilização de medidas atípicas, quando tratar-se de dívida de valor pecuniário, pois todas as mais notórias utilizadas pelo Judiciário refletem, inequivocamente, sobre a pessoa física do executado, senão vejamos.
O primeiro exemplo é quando o magistrado defere medida que visa à retenção de documentos, como passaporte. Veja-se que soa como medida antijurídica, pois obsta o direito básico de ir e vir, o qual somente é violado em casos de crimes com condenação em segunda instância ou quando não há pagamento de pensão alimentícia, ou seja, casos seríssimos que não se comparam com mero inadimplemento obrigacional. Note-se, então, que o ônus da execução reflete na pessoa executada.
No caso de ser decretado o cancelamento do cartão de crédito do devedor, muito embora o ônus da execução de igual forma reflita sobre a pessoa, pode-se afirmar, de forma benevolente, que recai, também, sobre o patrimônio, na medida em que se perseguiu as finanças do executado.
No entanto, essa hipótese causa prejuízos a terceiros, como, por exemplo, as instituições financeiras, as quais mantêm relações com o devedor. As instituições terão sua renda prejudicada, na medida em que não irão mais auferir lucro com o cartão cancelado, tanto o lucro pela manutenção do cartão quanto o lucro em caso de inadimplemento do devedor. Ademais, o Judiciário estaria influindo negativamente no direito de terceiros que não fazem parte da relação jurídica.
Outra medida atípica habitual é a suspensão do CPF, que, no nosso entendimento, viola frontalmente a dignidade da pessoa humana, uma vez que o “cidadão se verá impossibilitado de exercer atividades básicas como abrir uma conta bancária, obter empréstimos, prestar concurso público, etc.”[11].
Cite-se, também, a restrição de utilização de áreas comuns do condomínio, como, por exemplo, academia ou estacionamento, em caso de inadimplência condominial.
Tal situação viola o direito constitucional à propriedade, uma vez que as dependências também fazem parte de sua propriedade e não podem ser diluídas entre todos os condôminos.
A questão chegou até o STJ e foi analisada por sua 4ª Turma. Em seu voto, acompanhado pela unanimidade de seus pares, o Ministro Luis Felipe Salomão, Relator do processo, deu parcial provimento ao recurso em habeas corpus para reformar a medida coercitiva que determinou a suspensão do passaporte, como forma de coagi-lo ao pagamento da dívida[12].
Em consonância com o voto do Relator, a 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro proferiu acórdão que deu provimento ao recurso de agravo de instrumento, por entender que as medidas atípicas que pretendem aplicar no caso são extremamente gravosas e desarrazoadas[13]:
[…] embora não se negue a possibilidade de o juiz se valer de todas as medidas necessárias ao cumprimento da ordem judicial, nos termos do disposto no art. 139, IV, do NCPC, a satisfação do crédito do exequente deve ser feita pelo modo menos gravoso para a parte executada, na forma do art. 805 do mesmo diploma processual, observadas a proporcionalidade, a razoabilidade.
Nessa perspectiva, as medidas pretendidas pelo agravado se mostram extremas e desarrazoadas, inclusive, ferindo normas processuais (arts. 5º e 8º, do NCPC) e constitucionais, tais como o direito de ir e vir (art. 5º, inciso XV da CF).
Ademais, há que salientar que as medidas pretendidas pela agravada, além de não serem aptas a levar ao pagamento do que é devido, ferem garantias constitucionais fundamentais, impedindo o agravado de praticar atos imprescindíveis ao cotidiano do cidadão médio, como dirigir um automóvel, o que se constitui em violação ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Tem-se claro, então, que uma medida extraordinária que pode restringir direitos dos cidadãos em virtude de dívidas não adimplidas soa como ameaça ao método tido como razoável e proporcional[14]. Dessa maneira, deve-se observar não contrariar direitos e garantias fundamentais, ainda que seja em benefício de outro indivíduo.
Pelas razões expostas, tanto em virtude do princípio da responsabilidade patrimonial quanto pela violação de outros princípios, quando tratar-se de dívidas pecuniárias, afigura-se impossível a utilização de medidas atípicas. Valores pecuniários não devem se sobrepor aos direitos adquiridos ao longo dos anos pelos indivíduos.
3.2 Utilização de medidas atípicas em obrigação de caráter não pecuniário
No entanto, abre-se aqui um parêntese oportuno: quando versar sobre a utilização de medidas extraordinárias para cumprimento de obrigações não pecuniárias, a (im)possibilidade de valer-se de tais medidas não é absoluta, mas sim relativa.
Nesse caso, a técnica de ponderação torna-se importantíssima, na medida em que visa coibir excessos e equívocos. Vejam-se, a esse respeito, considerações da melhor doutrina:
Trata-se de norma que atua sobre interpretação de outras normas […]. O processo civil não pode ser visto como instrumento de serviço do Estado, como um instrumento que não se encontre orientado à realização dos fins da pessoa humana. Em outras palavras, o processo civil serve para realização dos direitos e para orientação das pessoas a respeito do significado do direito, […] a dignidade da pessoa humana veda a transformação das partes em objeto da atividade jurisdicional.[15]
O direito à vida é o bem mais precioso do ser humano. Em qualquer hipótese que exista a ameaça a esse direito, toda e qualquer medida deve ser tomada em prol desse direito.
Se, por exemplo, uma pessoa, munida de um título executivo que obrigue o devedor ao adimplemento de uma obrigação, consistente na realização de tratamento ou cirurgia, após a inércia do demandado, correr risco de vida devido ao atraso do cumprimento da obrigação, pleitear como medida atípica o transporte do maquinário que atenda às suas necessidades, de modo que os pacientes do local (seja um hospital ou clínica) não sejam prejudicados, parece-nos que essa medida poderá ser deferida, porquanto, realizando a técnica de ponderação, o bem da vida tem mais valor do que qualquer outro.
Ou, na hipótese de um suposto pai fugir para o seu país, visando à não realização de teste de DNA, e, por conseguinte, se isentar das responsabilidades previstas no art. 227 da Constituição Federal, parece-nos, também, uma hipótese em que medidas atípicas poderão ser tomadas.
Com relação à medida que retém a CNH, disposta no acórdão do RHC 97876/SP, 2018/0104023-6, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, entendemos no mesmo sentido do Ministro: não se viola o direito à locomoção, porquanto não se terá obstado o direito de ir e vir, mas tão somente o direito de dirigir veículo automotor.
Porém, ressalte-se, em caso de obrigações não pecuniárias, as mais comuns medidas atípicas não são realizadas levando-se em conta a técnica de ponderação. Viola-se, muitas vezes, algum princípio sem necessidade.
3.3 Utilização de medidas atípicas em desfavor de pessoa jurídica
Sob outro prisma, o da pessoa jurídica, torna-se mais fácil vislumbrar situações nas quais seja possível a aplicação das medidas extraordinárias tanto por dívidas de caráter pecuniário quanto por inadimplemento de obrigação de caráter não pecuniário, pelo fato de elas não possuírem a maioria dos direitos fundamentais ligados às pessoas físicas. Não haveria, portanto, limitações ao seu direito de locomoção, direito à vida, entre outros.
Em síntese, o que se pretende diferenciar, da pessoa física para a jurídica, é que medidas extraordinárias utilizadas em desfavor da pessoa jurídica não possuem reflexos na esfera extrapatrimonial da pessoa jurídica e, por essa razão, possuem mais flexibilidade na sua aplicação.
É importante destacar, contudo, que também se aplica o princípio da patrimonialidade às pessoas jurídicas se a utilização da medida atípica visar à satisfação de um crédito.
Ou seja, somente o patrimônio da pessoa jurídica pode responder pelas dívidas pecuniárias. Isso porque a pessoa jurídica também se enquadra no conceito de devedor, previsto no art. 789 do Código de Processo Civil.
Nesse particular, podemos mencionar duas situações públicas que aconteceram recentemente no âmbito desportivo em que foram aplicadas medidas extraordinárias contra pessoas jurídicas por dívidas pecuniárias.
O Sport Club Corinthians Paulista teve sua taça de Campeão do Mundo penhorada para o pagamento de dívida contraída junto a uma universidade.
Por sua vez, o Fluminense Football Club teve seu direito de inscrever jogadores na Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e na Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (FERJ) suspenso, também em razão de uma dívida pecuniária, situação que fez jogadores recém-contratados se ausentarem de uma partida devido à irregularidade na inscrição.
Tais situações são bons exemplos para verificar se houve a correta aplicação das medidas atípicas contra pessoas jurídicas ou não.
Enquanto, no primeiro exemplo, houve a utilização de medidas atípicas sobre um bem do clube, um direito patrimonial; no segundo caso, houve influência no direito extrapatrimonial do clube (direito federativos que pertencem ao clube após a assinatura do contrato), além de ter influído negativamente em direito de terceiros que deixaram de exercer sua atividade laborativa devido a uma relação que não fizeram parte.
Percebe-se, então, que, no primeiro, a medida extraordinária foi utilizada de maneira correta, porquanto atingiu somente a esfera patrimonial do clube, sem reflexos na pessoa jurídica; ao passo que, no segundo caso, não houve a correta aplicação, haja vista estar relacionado a um direito não patrimonial e ter surtido efeitos na esfera de terceiros.
Cumpre ressaltar, no entanto, que as medidas atípicas utilizadas contra as pessoas jurídicas para a satisfação de crédito, ainda que utilizadas na esfera patrimonial do devedor, não podem prejudicar de forma gravosa sua atividade-fim ao ponto de sufocarem a obtenção de lucro, o que facilitaria, justamente, o pagamento futuro da dívida.
No que diz respeito às obrigações não pecuniárias, descumpridas pela pessoa jurídica, crescem as hipóteses de aplicação de medidas atípicas que não violam quaisquer princípios.
Nesse sentido, veja-se que a doutrina entende que a limitação de direitos do devedor “revela-se razoável, sem que se ofenda de modo intolerável a dignidade do executado“[16], citando, inclusive, como possibilidade de medidas extraordinárias “o direito de participar de licitações e contratar com o Poder Público“[17].
Podemos imaginar, v.g., que, se uma determinada empresa deixar de cumprir um termo de ajustamento de conduta e sofrer essa medida (de não contratar com o Poder Público), essa determinação judicial não terá reflexos prejudiciais na empresa, porquanto esta não terá sua inviabilidade decretada, somente o direito de exercer sua atividade com o Poder Público. Poderá, ainda, valer-se de suas atividades no meio privado. Aplica-se, in casu, ratio semelhante à utilizada nos casos de retenção de CNH.
É oportuno dizer também, por relevante, que muitas empresas são constituídas com a única e exclusiva finalidade de servir como fachada para a prática de fraudes.
Não à toa, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, iniciado de forma mais clara no Direito inglês, vem tendo cada vez maior aplicação, sendo, inclusive, positivado no Código de Processo Civil.
Desse modo, a inviabilidade de contratação pelo Poder Público também serve como um óbice às empresas que visam às fraudes ao Poder Público, decorrentes de esquemas com políticos, empresários, pois obsta a prática reiterada, da qual, inclusive, se tem notícia diariamente.
3.4 Utilização de medidas atípicas em desfavor do Poder Público
Destaca-se, ainda, uma peculiaridade interessante nas medidas atípicas. Tais medidas podem ser utilizadas contra o Poder Público, principalmente por empresas que mantêm vínculos com o Estado?
A nosso ver, podem ser utilizadas desde que a sociedade não seja prejudicada, afinal, o credor não pode influir no direito de uma sociedade de maneira que toda ela seja sacrificada em prol de uma minoria[18].
Se a medida pleiteada pelo credor prejudicar a sociedade, seja pela impossibilidade de utilização de serviços públicos pela sociedade, pela impossibilidade de investimento do Poder Público em serviços públicos indispensáveis, como escolas ou hospitais, ou até mesmo pela impossibilidade de minorar o dano em situação de emergências, entendemos que tal medida afigura-se manifestamente descabida, devendo o magistrado indeferir o pedido.
Isso porque não se pode conceber que credor da obrigação se sobressaia ao bem comum, prejudicando a esfera de terceiros.
CONCLUSÃO
O processo deve proporcionar ao titular do direito um determinado limite, cuja extensão não pode ultrapassar ou diminuir o direito daquele que figura no polo oposto.
É cediço também que qualquer norma legal ou instituto que, ainda que não previstos na legislação – invenção doutrinária ou jurisprudencial -, viole os princípios norteadores de uma jurisdição, não será válida.
As medidas atípicas, embora positivadas no Código de Processo Civil, precisam observar os princípios para que não violem outros. A teoria de um direito não deve se sobrepor à prática, a qual dispõe expressamente a proteção da pessoa executada e seus respectivos direitos.
A aplicação de medidas extraordinárias, conquanto o procedimento possa ser eficaz para trazer maior exequibilidade à satisfação de crédito, parece-nos não ser cabível quando o cumprimento da obrigação se relacionar ao pagamento de dívidas.
Por sua vez, no cenário de cumprimento de obrigação não pecuniária, a priori, em desfavor de pessoas físicas, o emprego de medida extraordinária somente poderá ser realizado utilizando-se da técnica de ponderação, pois devem sempre ser resguardados os princípios constitucionais que regem o ordenamento jurídico e protegem o indivíduo e a sociedade.
Neste contexto, destaca-se que, tanto em obrigações pecuniárias quanto não pecuniárias, o Judiciário não vem fazendo a análise que deve ser feita sobre o assunto. Tem havido a violação de preceitos fundamentais, que jamais poderiam ser contrariados, em favor da satisfação da obrigação.
Acredita-se, por essa razão, que o Judiciário, com o passar do tempo, se conscientizará, aplicando corretamente as medidas sem prejuízo ao devedor, seja ele quem for, e independente da obrigação.
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______. Curso de direito processual civil: execução. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2018.
______; TALAMINI, Eduardo; MINAMI, Marcos Youju. Medidas executivas atípicas. Salvador: Juspodivm, 2018.
HANS, Kelsen. Teoria pura do direito. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
NERY JUNIOR, Nelson. Direito constitucional brasileiro – Curso completo. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
SARMENTO, Daniel. Os princípios constitucionais e a ponderação de bens. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
SCARPINELLA BUENO, Cassio. Manual de direito processual civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC: de acordo com a Lei nº 13.256, de 04.02.2016. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2016.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil – Teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. 47. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. III, 2016.
[1] “Além de ser requisito para o exercício do direito de execução, o Título tem especial importância no Direito Processual Civil Brasileiro pelo fato que é, a partir dele, que se escolherá qual será o procedimento executório aplicável a cada hipótese fática.” (DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 40)
[2] CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. 3. ed. rev. e atual. Coord. Teresa Arruda Alvim Wambier et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 88.
[3] BASTOS, Antonio Adonias Aguiar. Comentários ao novo Código de Processo Civil. Coord. Antonio do Passo Cabral e Ronaldo Cramer. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 1157.
[4] “A ideia de que toda execução tem por finalidade apenas a satisfação do direito do credor corresponde à limitação que se impõe à atividade jurisdicional executiva, cuja incidência sobre o patrimônio do devedor há de se fazer, em princípio, parcialmente, i.e., não atingindo todos os seus bens, mas apenas a porção indispensável para a realização do direito do credor. Apenas na execução concursal do devedor insolvente é que há de expropriação universal do patrimônio do devedor. Nas execuções singulares a agressão patrimonial fica restrita à parcela necessária para a satisfação do crédito ajuizado.” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil – Teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. 47. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. III, 2016. p. 223)
[5] Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/87512-cnj-apresenta-justica-em-numeros-2018-com-dados-dos-90-tribunais>.
[6] SCARPINELLA BUENO, Cassio. Manual de direito processual civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC: de acordo com a Lei nº 13.256, de 04.02.2016. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 184.
[7] “Como quer que seja, o objeto do art. 139, IV, torna uma coisa certa: em tese, a regra aplica-se unicamente ao cumprimento de sentença.” (ASSIS, Araken de. Cabimento e adequação dos meios executórios “atípicos”. In: DIDIER JR., Fredie (Coord.). Medidas executivas atípicas. Salvador: Juspodivm, 2018. p. 129)
[8] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: execução. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2018. p. 103. Citando ASSIS, Araken de. Processo civil brasileiro: parte geral: institutos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 2, 2015. p. 936/937.
[9] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: execução. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2018. p. 71.
[10] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Org. Fredie Didier Jr., Leonardo Carneiro da Cunha, Paulo Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira. 7. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, v. 5, 2017. p. 331.
[11] DIDIER JR., Fredie; TALAMINI, Eduardo; MINAMI, Marcos Youju. Medidas executivas atípicas. Salvador: Juspodivm, 2018. p. 263.
[12] “RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS – EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL – MEDIDAS COERCITIVAS ATÍPICAS – CPC/2015 – INTERPRETAÇÃO CONSENTÂNEA COM O ORDENAMENTO CONSTITUCIONAL – SUBSIDIARIEDADE, NECESSIDADE, ADEQUAÇÃO E PROPORCIONALIDADE – RETENÇÃO DE PASSAPORTE – COAÇÃO ILEGAL – CONCESSÃO DA ORDEM – SUSPENSÃO DA CNH – NÃO CONHECIMENTO – 1. O habeas corpus é instrumento de previsão constitucional vocacionado à tutela da liberdade de locomoção, de utilização excepcional, orientado para o enfrentamento das hipóteses em que se vislumbra manifesta ilegalidade ou abuso nas decisões judiciais. 2. Nos termos da jurisprudência do STJ, o acautelamento de passaporte é medida que limita a liberdade de locomoção, que pode, no caso concreto, significar constrangimento ilegal e arbitrário, sendo o habeas corpus via processual adequada para essa análise. 3. O CPC de 2015, em homenagem ao princípio do resultado na execução, inovou o ordenamento jurídico com a previsão, em seu art. 139, IV, de medidas executivas atípicas, tendentes à satisfação da obrigação exequenda, inclusive as de pagar quantia certa. 4. As modernas regras de processo, no entanto, ainda respaldadas pela busca da efetividade jurisdicional, em nenhuma circunstância, poderão se distanciar dos ditames constitucionais, apenas sendo possível a implementação de comandos não discricionários ou que restrinjam direitos individuais de forma razoável. 5. Assim, no caso concreto, após esgotados todos os meios típicos de satisfação da dívida, para assegurar o cumprimento de ordem judicial, deve o magistrado eleger medida que seja necessária, lógica e proporcional. Não sendo adequada e necessária, ainda que sob o escudo da busca pela efetivação das decisões judiciais, será contrária à ordem jurídica. 6. Nesse sentido, para que o julgador se utilize de meios executivos atípicos, a decisão deve ser fundamentada e sujeita ao contraditório, demonstrando-se a excepcionalidade da medida adotada em razão da ineficácia dos meios executivos típicos, sob pena de configurar-se como sanção processual. 7. A adoção de medidas de incursão na esfera de direitos do executado, notadamente direitos fundamentais, carecerá de legitimidade e configurar-se-á coação reprovável, sempre que vazia de respaldo constitucional ou previsão legal e à medida em que não se justificar em defesa de outro direito fundamental. 8. A liberdade de locomoção é a primeira de todas as liberdades, sendo condição de quase todas as demais. Consiste em poder o indivíduo deslocar-se de um lugar para outro, ou permanecer cá ou lá, segundo lhe convenha ou bem lhe pareça, compreendendo todas as possíveis manifestações da liberdade de ir e vir. 9. Revela-se ilegal e arbitrária a medida coercitiva de suspensão do passaporte proferida no bojo de execução por título extrajudicial (duplicata de prestação de serviço), por restringir direito fundamental de ir e vir de forma desproporcional e não razoável. Não tendo sido demonstrado o esgotamento dos meios tradicionais de satisfação, a medida não se comprova necessária. 10. O reconhecimento da ilegalidade da medida consistente na apreensão do passaporte do paciente, na hipótese em apreço, não tem qualquer pretensão em afirmar a impossibilidade dessa providência coercitiva em outros casos e de maneira genérica. A medida poderá eventualmente ser utilizada, desde que obedecido o contraditório e fundamentada e adequada a decisão, verificada também a proporcionalidade da providência. 11. A jurisprudência desta Corte Superior é no sentido de que a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação não configura ameaça ao direito de ir e vir do titular, sendo, assim, inadequada a utilização do habeas corpus, impedindo seu conhecimento. É fato que a retenção desse documento tem potencial para causar embaraços consideráveis a qualquer pessoa e, a alguns determinados grupos, ainda de forma mais drástica, caso de profissionais, que tem na condução de veículos, a fonte de sustento. É fato também que, se detectada esta condição particular, no entanto, a possibilidade de impugnação da decisão é certa, todavia por via diversa do habeas corpus, porque sua razão não será a coação ilegal ou arbitrária ao direito de locomoção, mas inadequação de outra natureza. 12. Recurso ordinário parcialmente conhecido.” (STJ, RHC 97876/SP, 2018/0104023-6, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, J. 05.06.2018, DJe 09.08.2018)
[13] “AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE EXECUÇÃO – Decisão interlocutória que deferiu o pedido de aplicação de medidas coercitivas, para suspensão da Carteira Nacional de Habilitação e do passaporte do agravante. Os princípios norteadores da aplicação do direito processual estão definidos na Constituição da República e devem ser observados na prestação jurisdicional de forma a evitar lesões a direitos fundamentais e danos irreparáveis. Em que pese a nova sistemática trazida pelo art. 139, IV do NCPC, as medidas ali autorizadas não podem deixar de observar os preceitos de ordem constitucional. Dentre os Direitos e Garantias Fundamentais elencados no art. 5º da Carta Magna, está o direito de ir e vir. Medidas extremas, sem pertinência com a natureza da execução e que se mostram desarrazoadas, ferindo normas processuais (arts. 5º e 8º, do NCPC) e constitucionais. Viola o princípio da dignidade da pessoa humana impedir o executado de praticar atos usuais do cidadão comum. Recurso a que se dá provimento.” (TJRJ, AI 00624005-52.017.8.19.0000, 18ª Câmara Cível, Des. Rel. Cláudio Luiz Braga Dell’Orto, J. 24.01.2018)
[14] “O processo deve dar ao titular do direito, na medida do que seja possível na prática, tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de conseguir.” (CHIOVENDA, Giuseppe. Dall’azionw nascente del contrato preliminare in Soggi diritto processualle civile. Milão: Giuffré, t. l, 1993. p. 110)
[15] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 158.
[16] BENEDUZI, Renato Resende. Comentários ao Código de Processo Civil: artigos 70 ao 187. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2018. p. 291.
[17] Idem, ibidem.
[18]“A proteção ao interesse público primeira – tratando-se aqui dos direitos da coletividade; a indispensável continuidade dos serviços públicos, notadamente dos essenciais; as regras constitucionais e legais pertinentes à indisponibilidade dos bens públicos e à expedição de precatórios e requisições de pequenos valores.” (DIDIER JR., Fredie; TALAMINI, Eduardo; MINAMI, Marcos Youju. Medidas executivas atípicas. Salvador: Juspodivm, 2018. p. 156)