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ILICITUDE E INDENIZAÇÃO, ANÁLISE DOS ARTIGOS 186 E 927 DO CÓDIGO CIVIL DO BRASIL: O ATO ILÍCITO CIVIL EXTRANEGOCIAL COMO PROCESSO

Felipe Bizinoto Soares de Pádua

 

SUMÁRIO: Considerações iniciais; I – Ato ilícito indenizável e não indenizável; II – Do ato ilícito indenizável como processo e a prevenção ao damnum; Considerações finais; Referências.

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Como um dos marcos que buscou renovar o direito privado brasileiro, a codificação civilista passou pela revogação do Código Civil de 1916 (CCB/1916) e a vigência do Código Civil de 2002 (CCB/2002), que alterou a perspectiva jurídica até então em voga sobre diversos setores, por exemplo, no Direito de Família, com a igualdade entre homem e mulher na gestão familiar, e, na Parte Geral, com a diferenciação legislativa entre prescrição e decadência.

É dentro desse quadro de transição entre as codificações supracitadas que se pontua a transição da acepção do ato ilícito civil extranegocial[1]: no CCB/1916 constava que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano” (art. 159), enquanto no CCB/2002 consta que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (art. 186).

Vê-se que de um texto legal para outro houve inclusão da figura do dano moral (ainda que exclusivamente moral) e a modificação da partícula e para ou, levando à interpretação literal de que o ato ilícito, atualmente, é aquele que viola direito alheia e causa dano. Antes, no CCB/1916, se depreendia de simples leitura do texto que o ato ilícito podia ser ou aquele que viola direito alheia ou causa dano a outrem.

E mais: havia relação normativa entre a conduta antijurídica civil com o regime da responsabilidade civil, sendo que o CCB/1916 previa no citado art. 159 que a violação à posição jurídica subjetiva ativa que causa dano resulta na reparação (art. 1.518), enquanto o CCB/2002 determina que “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo” (art. 927). De um caso a outro, evidente que a antiga lei não confundia a categoria (ilícito civil) com uma de suas consequências (responsabilidade civil), enquanto o atual diploma permite tal confusão[2].

O alvoroço supra fica evidente na visão de Carlos Roberto Gonçalves[3], para quem o ato ilícito civil extra negocial envolve um dever imposto a todos de não lesar determinada posição jurídica de outrem, sendo que o cometimento da conduta leva ao deve derivado indenizatório, isto é, são ações comissivas ou omissivas, culposas ou dolosas, das quais resulta dano a outrem.

A mesma ideia de mesclar antecedente com consequente está em Sílvio de Salvo Venosa[4], que, apesar de expor que um ato ilícito pode acarretar dano indenizável, conceitua a categoria do antijurídico civil extra negocial com o dano como um de seus elementos essenciais.

Diante dessa visão turva que a alteração de paradigma legislativo causou na compreensão doutrinária, o presente texto tem como ponto central responder à seguinte dúvida: Valendo-se da categorização de Antônio Junqueira de Azevedo[5], o regime do ato ilícito tem como elemento de existência essencial o dano? Sem dano há ato ilícito civil?

A presente análise envolve uma metodologia aparentemente saudosista, mas que serve, em verdade, para definir uma classificação interna e oriunda dos arts. 186 e 927 do CCB/2002, partindo de uma visão essencialista (e não consequencialista) da concepção do ilícito contemplado nos enunciados mencionados, que precisam de certa e necessária conformação constitucional e prática.

O segundo ponto partirá da classificação a ser desenvolvida no item mencionado no parágrafo anterior e tratará da (in) viabilidade de evitar, mediante uso de instrumentos judiciais ou extrajudiciais, o dano ou a violação a certa posição jurídica subjetiva ativa.

Como última observação, as palavras ato ilícito e ilícito, para este artigo, é sinônima de ilícito civil extra negocial, sendo que outras espécies classificatórias serão evidenciadas em sua total extensão (p. ex., ilícito penal, ilícito absoluto ou relativo, ilícito contratual).

 

I – ATO ILÍCITO INDENIZÁVEL E NÃO INDENIZÁVEL

Para lineamentos iniciais, a indenização, segundo exposição doutrinária[6], se relaciona ao dano oriundo do ato ilícito, o que traz uma visão parcelada do fenômeno jurídico (que, por sua vez, já é parcial ao não englobar todo e qualquer fato social). Como aponta Paulo Rogério Bonini[7] e F. C. Pontes de Miranda[8], há danos lícitos que não atraem o regime da responsabilidade civil, bem como atos lícitos que causam danos ilícitos e, portanto, geram o dever indenizatório. Sobre a primeira categoria mencionada, possível expor a remoção de perigo iminente mediante danificação de algo ou alguém (art. 188, II, do CCB/2002); sobre a segunda categoria, é possível visualizar a atividade empresarial que carrega algum risco a posição jurídica alheia (art. 927, parágrafo único, do CCB/2002). A partir de tais ideias, evidente que a qualificação de um ilícito civil não parte do dano.

Da ideia trazida se extrai que responsabilidade civil ingressa ao tratar da indenização oriunda do que Cláudio Luiz Bueno de Godoy[9] define como dano injusto, que consiste na qualificação jurídica atribuída pelo sistema normativo a partir da posição jurídica tutelada e da consequência da sua violação. Complementa Paulo Rogério Bonini[10], ao afirmar que o dano ilícito compreende a não absorção do resultado pela vítima, e sim a imputação ao causador ou de quem a lei determinar do dever de indenizar.

A visão trazida pelo CCB/2002 é de cunho essencialmente consequencialista, pois configura a conduta antijurídica civil extra negocial ao dano, o que não se coaduna nem com o próprio âmbito normativo – pois a literalidade do art. 186 entra em contradição com outras disposições – e com a própria prática, que pode levar casos nos quais há licitude comportamental com indenizabilidade.

De forma mais excludente do dano e com uma visão a partir da categoria eficacial, F. C. Pontes de Miranda[11] e Marcos Bernardes de Mello[12] mostram que o ilícito pode se dividir em três[13]: (i) indenizante, que resulta na imputação do dever de indenizar os danos causados ao agente ou responsável por causa, por exemplo, a leitura completa e conjugada dos arts. 186 e 927 do CCB/2002; (ii) caducificante, que resulta na caducidade de determinada posição jurídica subjetiva ativa, por exemplo, a perda do poder familiar (art. 1.638 do CCB/2002); ou (iii) invalidante, que resulta na sanção de invalidação, por exemplo, os vícios do negócio jurídico (arts. 138 e ss. do CCB/2002).

Para melhor compreensão do ilícito civil, remete-se à antiga visão, aquela do CCB/1916, que permitia extrair da disposição (art. 159) que a ilicitude não se relaciona com o damnum, e sim com a qualificação jurídica que o ordenamento atribui à conduta, especificamente como consta descrito no suporte fático normativo[14]. Ao tratar dos ilícitos em lato sensu – cuja ideia se aplica ao ilícito civil -, F. C. Pontes de Miranda[15] aduz que o ato ilícito é realizado em contrariedade à lei, sendo que nas espécies de antijuridicidades civis há contrariedade à lei civil.

Sobre o art. 186 do CCB/2002, o ato antijurídico ali exposto é essencialmente civil (pois previsto no subsistema jurídico civilista), extra negocial (não diz respeito à violação de disposição negocial), relativo (violação a uma posição jurídica relativa) ou absoluto (violação a uma posição jurídica absoluta), e não essencialmente indenizante (pois a sanção civil é a indenização)[16].

Apesar de muito reduzida, a partir da perspectiva trazida pelo art. 186 do CCB/2002, possível dividir os atos ilícitos em duas espécies: (i) os indenizáveis, que se amoldam à classificação ponteana relacionada ao dever do causador em compensar determinado dano sofrido pela vítima; e (ii) os não indenizáveis, que são as outras espécies ponteanas e não dizem respeito ao resultado danoso – e, por conseguinte, o dever indenizatório.

Dentro da primeira espécie está a completude da leitura dos arts. 186 e 927 do Código Civil, à consideração que a antijuridicidade civil extra negocial que causa dano a outrem resulta no dever derivado de indenizar a vítima. Em tal classificação é possível aplicar a compreensão de Clóvis Veríssimo do Couto e Silva[17] da visão processual, como um desenvolvimento no qual há um começo, um meio e um fim. Especificamente, cabe aqui a perspectiva da doutrina criminalista[18] do iter criminis, que divide a conduta na esfera do pensamento, nos atos preparatórios iniciais e nos atos finais, estes ligados ao resultado previsto na norma. Aplicando-se tal lógica ao ilícito civil, tal conduta muitas vezes (mas nem sempre) pode ser dividida temporalmente em planejamento, preparação e finalização[19].

Tendo em vista as três etapas da conduta antijurídica civil do conjugado legal civil, é possível extrair uma visão intermediária na qual o ilícito indenizatório não resulta em dano, porquanto esse foi impedido de ocorrer. É dizer: é possível inviabilizar o resultado danoso em ilícitos indenizatórios, situação essa que não descaracteriza a qualificação dada à conduta. Sobre esse ponto, o tópico seguinte tratará a partir da noção de medidas preventivas.

 

II – DO ATO ILÍCITO INDENIZÁVEL COMO PROCESSO E A PREVENÇÃO AO DAMNUM

Rememorando, estatui o CCB/2002 que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (art. 186), assim como “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo” (art. 927). Do conjugado dos enunciados legais se infere que o ato ilícito indenizatório envolve a figura do dano (damnum).

A ideia do ato ilícito indenizável como processo e as medidas preventivas partem da elasticidade da categoria dano, em especial se essa figura tem de efetivamente ocorrer ou se pode ser iminente. É possível reduzir o enfrentamento na seguinte pergunta: Pode haver prevenção ao dano no caso de indícios do iter do ilícito civil extra negocial?

A leitura da norma depreendida dos fragmentos legislativos exige duas abordagens. A primeira pode ser denominada vertical e diz respeito à leitura dos artigos do CCB/2002 a partir do art. 5º, XXXV, da Constituição do Brasil (CRFB), notadamente a partir do acesso à justiça.

Preliminarmente, define-se o acesso à justiça como o direito subjetivo de buscar todo e qualquer meio juridicamente permitido que seja apto a compor o conflito de interesses qualificados por meio da efetividade da posição jurídica tutelada[20]. Dentro de tais meios juridicamente permitidos estão a jurisdição (= acesso à jurisdição), a arbitragem, a mediação, a conciliação, a arbitragem e a autotutela[21].

Essa primeira etapa da compreensão vertical permite concluir que as medidas preventivas não ocorrem apenas por meio da via judiciária, mas nos outros meios e desde que – nestes casos extrajudiciários – não haja excessos (para não resultar em ato ilícito por excesso no exercício de certa posição jurídica).

Todos os pontos supracitados são extraídos da previsão constitucional de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5º, XXXV). Na visão comparativa entre o art. 186 do CCB/2002 com o fragmento fundamental citado, fica claro que, no primeiro, aparenta medidas repressivas ao dano (= violar direito e causar dano), enquanto o segundo permite que o acesso à justiça possa ocorrer de forma preventiva ou repressiva (= lesão ou ameaça a direito).

Da relação supra pode se extrair uma visão de que apenas se pode manejar os meios de acesso à justiça em relação ao ato ilícito indenizatório após a ocorrência do resultado danoso, visão essa que vai de encontro ao permissivo constitucional preventivo (ameaça a direito).

Para evitar arguições de inconstitucionalidade, eis que o diploma civilista exige, em uma interpretação literal, o resultado, aqui deve ser aplicado o postulado hermenêutico da interpretação conforme a Constituição. Consoante Karl Larenz[22], essa premissa interpretativa determina que um texto pode ser plurissignificativo e que algumas normas (= resultado da interpretação) podem determinar sentido conforme e outras desconforme a Constituição.

No art. 186 do CCB/2002 são retiradas duas normas, sendo que uma advém da interpretação literal e inviabiliza a inibição da conduta e, por conseguinte, do resultado danoso, enquanto a outra leva à concepção mais arrojada de dano (e violação de posição jurídica ativa), compreendendo em sua efetividade ou em sua iminência.

Das duas perspectivas, a compreensão vertical serve de argumento para dizer que a segunda, que compreende dano e violação de direito em sua concretude ou ameaça, é mais cabível para o art. 186 do CCB/2002, permitindo o uso de mecanismos preventivos contra a conduta ilícita, a fim de evitar o resultado normativo (dano ou violação a direito).

Com relação à segunda compreensão, ela pode ser definida como compreensão horizontal, pois diz respeito ao diálogo dos enunciados do Código Civil consigo (diálogo intrassubsistemático) e com outros textos legais (diálogo intersubsistemático).

No diálogo intrassubsistemático, o CCB/2002 permite que alguém exerça atos extrajudiciários para evitar dano ou violação a certa posição jurídica, evitando-se, assim, o resultado do ato ilícito indenizatório: o art. 1.210, § 1º, defere a autotutela por meio do desforço imediato; o art. 368 permite o exercício do poder formativo compensatório, a fim de evitar problemas relacionados a eventual crédito; o art. 188, I, permite a legítima defesa, para evitar resultados nocivos a quem defende seu interesse.

Quanto aos direitos da personalidade, enuncia o Codex Civil que “pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei” (art. 12).

No diálogo intersubsistemático, “ações” judiciais têm seu contraste na precaução ao damnum ou à violação de direito. Como primeiro caso, o Código de Processo Civil (CPC/2015) disciplina o interdito proibitório (arts. 567 e 568), que se liga ao possuidor direto ou indireto justo receio de ser molestado na posse e que se vale do Estado-juiz para assegurar que não corra turbação ou esbulho iminente, mediante mandado proibitório em que se comine ao réu determinada pena pecuniária caso transgrida o preceito.

O CPC/2015 estabelece os embargos de terceiro (arts. 674 a 681), meio jurídico processual por meio do qual terceiro alheio a certa relação processual busca desembaraçar bem sobre o qual exerce posse ou tem certo direito. Enuncia o Codex Processual que o manejo do referido instrumento processual ocorrerá em virtude de “constrição ou ameaça de constrição sobre bens que possua ou sobre os quais tenha direito incompatível com o ato constritivo” (art. 674).

Ainda no CPC/2015, a Parte Geral estabelece o regramento das tutelas provisórias, liminares ou não, que, segundo Luiz Guilherme Marinoni[23], podem envolver uma determinação judicial ao réu para que se abstenha de realizar algo, por exemplo, que deixe de continuar escavações para que edificações vizinhas não sofram deterioração, ou seja, destruídas.

Em expansão a esse segundo diálogo, a Lei nº 12.016/2009, Lei do Mandado de Segurança, determina como hipótese de cabimento a impetração para tutela de direito líquido e certo residual em casos de ato ilegal de autoridade cujos efeitos resultem ao impetrante em violação de certa posição jurídica “ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade” (art. 1º). Trata-se da figura do mandado de segurança preventivo, que se refere ao ato de autoridade perfeito e exequível, mas ainda não executado[24].

Relacionado ao writ descrito está a figura do devido processo legislativo, que determina a observância das regras do processo de elaboração de certo enunciado normativo, sendo que a infração a tal estatuto legislativo permite que o congressista busque tutela judicial para que as regras do jogo de elaboração sejam observadas.

No mesmo sentido, é viável a tutela inibitória no habeas corpus, porque o Código de Processo Penal (CPP/1941) prevê como hipótese caso “que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir” (art. 647).

Um remédio constitucional muito íntimo aos interesses transindividuais é a ação civil pública, regida pela Lei nº 7.347/1985, a qual faz constar categoricamente que é viável – agora em razão da sistematização das cautelares pelo CPC/2015 – o uso de tutela provisória cautelar para “evitar dano ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos, à ordem urbanística ou aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico” (art. 4º).

A Lei de Propriedade Industrial, Lei nº 9.279/1996, confere poder ao juiz para que, “nos autos da própria ação, para evitar dano irreparável ou de difícil reparação, determinar liminarmente a sustação da violação ou de ato que a enseje, antes da citação do réu, mediante, caso julgue necessário, caução em dinheiro ou garantia fidejussória” (art. 209, § 1º).

No âmbito jus familiar, a lei sobre alienação parental, a Lei nº 12.318/2010, determina que,

Caracterizados atos típicos de alienação parental ou qualquer conduta que dificulte a convivência de criança ou adolescente com genitor, em ação autônoma ou incidental, o juiz poderá, cumulativamente ou não, sem prejuízo da decorrente responsabilidade civil ou criminal e da ampla utilização de instrumentos processuais aptos a inibir ou atenuar seus efeitos. (art. 6º)

A síntese geral do diálogo entre os textos legais está na lição de F. C. Pontes de Miranda[25] sobre a ação (e a “ação“) de abstenção, que se liga tanto aos direitos relativos quanto absolutos, à seara negocial e extra negocial, sendo instrumento hábil para atender ao intento de evitar moléstia a certa posição jurídica subjetiva. Como elemento necessário para o uso da medida preventiva, é necessário que a omissão seja devida de forma direta, por exemplo, um dever de não fazer concretizado com a cláusula de não concorrência, ou indireta (por ilação a partir de certo direito), por exemplo, o dever lateral de lealdade, que determina ao destinatário o dever de não falsear (= abster-se) o objeto negocial ou desequilibrar a relação jurídica.

Toda essa abundância legislativa e doutrinária leva à consideração de que o sistema jurídico não rechaça a relação entre ato ilícito indenizatório e medidas inibitórias sem descaracterizar qualquer uma das categorias envolvidas.

O que há é o uso do método, ou, como denomina Friedrich Carl Freiherr von Savigny[26], elemento sistemático, que parte da extração do significado não a partir de uma interpretação individualizada (só os arts. 186 e 927 do CCB/2002), e sim compreender e revelar o sentido a partir do sistema de disposições, qualificar a partir do conjunto normativo em sua amplitude[27]. De acordo com tal instrumento hermenêutico é possível concluir que os conceitos de dano e de violação contemplados no art. 186 do CCB/2002 levam à consideração de que podem ser ou efetivos, em sua concretude, ou em sua potencialidade, em sua iminência.

Com as duas visões (vertical, em relação à CRFB, e horizontal, em relação ao ordenamento legal infraconstitucional), torna-se possível dizer que o ato ilícito indenizatório pode ter seu resultado (dano ou afronta a direito) evitado por meio de mecanismos judiciais ou extrajudiciais, não desqualificando o caráter de antijurídico civil compensatório externado no art. 186 do Codex Civil brasileiro.

Ligando-se de forma mais clara ao regime da responsabilidade civil, Cristiano Chaves de Faria, Felipe Braga Netto e Nelson Rosenvald[28] destacam o caráter preventivo do campo temático em comento: trata-se de instrumental voltado a eliminar ou minimizar certos riscos, com ênfase nas formas precaucionais. Com esse caráter é que José Roberto Marques[29] faz a ponte com o Direito Ambiental por meio dos princípios da prevenção (= evitar degradação ambiental ao admitir tão somente a que é inevitável) e precaução (= negar a atividade se houver dúvida científica e sinais de risco ambiental), ambos pautados em evitar certa degradação ambiental por alguma atividade nociva.

O próprio direito à indenização, sagrado pela responsabilidade civil, tem viés antecipatório, intenta diminuir ou obliterar o dano por meio de institutos que se voltam a evitar que aconteça a conduta causadora. Segundo Vincenzo Roppo[30], a finalidade do instituto em comento tem como escopo impedir ou ao menos reduzir os efeitos prejudiciais e antijurídicos das condutas.

Os enfoques desenvolvidos foram (i) uso da interpretação sistemática do ordenamento legal e da interpretação conforme a Constituição para permitir que o conceito de dano e violação seja tanto em sua efetividade quanto em sua potencialidade; (ii) que até o regime compensatório volta parte de suas categorias jurídicas para a inibição, o que leva a uma amplificação do damnum e da transgressão para etapas anteriores à concretude.

A síntese desenvolvida compreende que de alguma forma há um iter do ilícito civil extra negocial e no qual permite que os mecanismos jurídicos judiciais ou extrajudiciais atuem sobre a conduta ao ponto impedir ou reduzir os efeitos danosos antijurídicos.

Na seara judiciária, o Tribunal de Justiça de São Paulo (Apelação nº 0000197-29.2014.8.26.0627) chancelou decisão inibitória proferida em caso no qual o réu comercializava de forma desautorizada camisas com a marca da autora, resultando em decisão de força condenatória tanto no sentido de determinar abstenção comercial quanto em pagar indenização por danos morais e materiais.

No segmento consumerista, uma das Turmas Recursais do Estado-membro de São Paulo (Recurso Inominado Cível nº 1000748-30.2020.8.26.0223) apreciou conflito de interesses no qual a demandada deixou de prestar serviços de fornecimento de energia elétrica por causa de cobranças fundadas em diferenças de consumo supostamente fraudadas. Constatou-se o incumprimento das normas atinentes ao setor por parte da ré, o que levou à procedência do pleito autoral de inexigibilidade das diferenças, constando no teor da decisão colegiada o deferimento de tutela antecipada inibitória de urgência, determinando-se à contraparte a abstenção de cobrança e, também, o fornecimento de energia até desfecho do caso.

Com base no art. 105 da Lei de Direitos Autorais, Lei nº 9.610/1998, o Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial nº 1.190.841/SC) fixou entendimento de que

a autoridade judicial competente pode determinar, como medida de tutela inibitória fundada no art. 105 da Lei nº 9.610/1998, a suspensão ou a interrupção da transmissão de determinadas obras musicais por emissora de radiodifusão em razão da falta de pagamento ao Ecad do valor correspondente aos respectivos direitos autorais, ainda que pendente ação judicial destinada à cobrança desse valor.

Caso corriqueiro na praxe forense são as inscrições ou manutenções em cadastros de inadimplentes, sendo muito comum o uso da tutela antecipada ou cautelar inibitória liminar pelos órgãos judiciais de 1ª instância, a fim de que o suposto credor não inscreva ou mantenha os dados do consumidor no quadro de entidade de proteção ao crédito.

Sobre a temática supracitada, o Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial nº 1.061.530/RS) reconheceu a possibilidade de evitar o dano ao suposto devedor mediante referida tutela inibitória, expondo critérios cumulativos: “i) a ação for fundada em questionamento integral ou parcial do débito; ii) houver demonstração de que a cobrança indevida se funda na aparência do bom direito e em jurisprudência consolidada do STF ou STJ; iii) houver depósito da parcela incontroversa ou for prestada a caução fixada conforme o prudente arbítrio do juiz”.

O que se vê é uma confluência na interpretação dos trechos legais “violar direito” e “causar dano a outrem” do art. 186 do CCB/2002, no sentido de permitir o uso dos utensílios tanto internos quanto externos ao Estado-juiz para suprimir ou abrandar a violação em sentido amplo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A transição da codificação civilista de 1916 para a de 2002 trouxe modificação da acepção de ato ilícito: antes compreendido como conduta que causa dano ou viola posição jurídica subjetiva ativa; agora, como conduta que necessariamente danifica e transgride direito (lato sensu) alheio. Tal alteração legislativa resultou em divergências de cunho doutrinário que confundiam o antecedente (conduta) com um dos consequentes (damnum).

Para superar essa perspectiva decorrente da interpretação literal é que se buscou conciliar a visão do CCB/1916 à do CCB/2002 por meio da abordagem essencialista, que considera ilícito civil extra negocial não em razão das suas consequências (pois há atos lícitos causadores de danos indenizáveis, bem como há danos lícitos não indenizáveis), mas por constar como tal no suporte fático normativo do subsistema civil, depreendendo-se do art. 186 do CCB/2002 a classificação do ilícito em indenizável e não indenizável.

Os atos ilícitos indenizatórios são aqueles ligados à interpretação literal do enunciado supra e que tem como consequência jurídica o dever derivado de compensar a vítima, conforme art. 927 do Código Civil de 2002. Por outro lado, os ilícitos não indenizáveis têm consequências outras que não a de compensar, a saber, são de caráter caducificante, referente à caducidade de determinada posição jurídica ativa, ou invalidante, que resulta na sanção de invalidação.

Sobre o citado art. 186, o ato antijurídico ali exposto é essencialmente civil (pois previsto no subsistema jurídico civilista), extra negocial (não diz respeito à violação de disposição negocial), relativo (violação a uma posição jurídica relativa) ou absoluto (violação a uma posição jurídica absoluta), e não essencialmente indenizante (pois a sanção civil é a indenização).

Em relação à primeira espécie, possível foi aplicar a lógica penalista e civilista (de Clóvis V. do Couto e Silva) do iter, o ato ilícito extra negocial como processo no qual há uma fase de planejamento, uma de preparação e uma de finalização. Dessa compreensão é que dimanou uma visão intermediária na qual é possível inviabilizar o resultado danoso em ilícitos indenizatórios sem descaracterizar a qualificação da conduta.

Sobre a processualidade da conduta antijurídica supra que se aprofundou na questão de evitar o dano, dividindo-se em duas visões, quais sejam, a vertical e a horizontal. A visão vertical parte do art. 5º, XXXV, da CRFB e da noção de acesso à justiça como ampla gama de meios judiciais e extrajudiciais voltada à tutela de certa posição jurídica subjetiva ativa, o que permite o manejo da via inibitória tanto dentro quanto fora de juízo.

Soma-se à previsão constitucional que dá base ao princípio supra, que determina que a lei (CCB/2002) não pode inviabilizar o acesso à justiça em casos de ameaça ou lesão a direito, o que mostra conflito com a acepção de dano a partir da interpretação gramatical do art. 186 do Codex civil. Para contornar a questão é que se aplicou o postulado hermenêutico da interpretação conforme a Constituição, que determinou como sentido compatível com a Lei Fundamental aquele que permite tanto o uso de tutelas anteriores ou posteriores ao damnum ou à violação a posição jurídica.

Para agregar na argumentação é que consta a visão vertical, esta baseada na interpretação sistemática do ordenamento legal – acompanhada da jurisprudência -, que mostra que os diversos textos legais materiais e processuais permitem a inibição ou redução do resultado danoso injusto, o que mostra um alargamento do ato ilícito indenizatório em relação à violação lato sensu tanto em sua concretude, atraindo a previsão do art. 927 do CCB/2002, quanto em sua potencialidade, atraindo as medidas judiciárias ou extrajudiciárias inibitórias.

Ademais, soma-se às visões supra a intimidade com uma das funções do regime da responsabilidade, que é, justamente, a função preventiva ou precaucional, que leva a uma amplificação do damnum e da transgressão para etapas anteriores à concretude, disponibilizando categorias jurídicas aptas a impedir o efeito nocivo antijurídico.

Toda a abordagem converge na interpretação dos trechos legais “violar direito” e “causar dano a outrem” do art. 186 do CCB/2002, no sentido de permitir o uso dos utensílios tanto internos quanto externos ao Estado-juiz para suprimir ou abrandar a violação em sentido amplo sem desqualificar o caráter indenizatório do ilícito constante no fragmento legal.

 

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SAVIGNY, Friedrich Carl Freiherr von. Sistema del Derecho romano actual. Trad. Jacinto Mesía y Manuel Poley. Granada: Comares, 2005.

SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.

VANZOLINI, Patrícia; JUNQUEIRA, Gustavo. Manual de direito penal: parte geral. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2018.

 

[1] FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Manual de direito civil. 5. ed. Salvador: JusPodivm, volume único, 2020. p. 436-437; MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 317 e ss. O corte epistêmico para o presente artigo destaca a volitividade no cerne normativo civil e segrega o que será tratado em relação aos ilícitos penais e, na seara civilista, ao ato-fato ilícito e aos ilícitos negociais.

[2] FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Manual de direito civil… cit., p. 431.

[3] Direito civil. 16. ed. São Paulo: Saraiva, v. I, 2018. p. 243.

[4] Direito civil: parte geral. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2018. p. 479 e ss.

[5] Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 34.

[6] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil… cit.; VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil… cit.

[7] Responsabilidade civil por ato lícito. In: GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello; BENACCHIO, Marcelo. Responsabilidade civil. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2015. p. 177-179.

[8] Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, t. LIII, 2012. p. 175-176.

[9] Responsabilidade civil pelo risco da atividade. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 34-41.

[10] Responsabilidade civil por ato lícito… cit., p. 169.

[11] Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, t. II, 2012. p. 275 e ss.

[12] Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, t. II, 2012. p. 275 e ss.

[13] Cristiano Chaves de Farias, Felipe Braga Netto e Nelson Rosenvald (Manual de direito civil… cit., p. 435) militam por uma quarta categoria, a saber, a dos ilícitos autorizantes, que compreendem na autorização dada pelo Direito ao ofendido para que pratique ou não determinado ato. Ocorre que tal categoria e os exemplos especificados mostram tamanha fluidez que ora é possível amoldar ao ilícito caducificante (exemplo da revogação de doação, pois o donatário ingrato perde um direito), ora indenizante-preventivo (caso do possuidor que exerce o desforço imediato, evitando um dano mediante eliminação da sua potencial fonte, os possíveis turbantes ou esbulhantes).

[14] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado… cit., p. 275-276; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado… cit., p. 150 e ss.; MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico… cit., p. 317.

[15] Tratado de direito privado… cit., p. 282.

[16] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico… cit., p. 317-321; FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Manual de direito civil… cit., p. 431-437.

[17] Obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.

[18] VANZOLINI, Patrícia; JUNQUEIRA, Gustavo. Manual de direito penal: parte geral. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 63.

[19] Essa visão, no entender do escritor, aplica-se a todo e qualquer ato ilícito, penal ou civil, relativo ou absoluto, negocial ou extranegocial, visto que as condutas que podem causar dano ou violar direito podem ocorrer em qualquer espécie de relação jurídica.

[20] PÁDUA, Felipe Bizinoto Soares de. Ações e acesso à justiça. Revista Âmbito Jurídico, ano XXIII, n. 198, jul. 2020. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-processual-civil/acoes-e-acesso-a-justica/>. Acesso em: 7 set. 2020.

[21] Idem.

[22] Metodologia da ciência do Direito. 8. ed. Trad. José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2019. p. 479-480.

[23] Tutela inibitória e tutela de remoção do ilícito. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

[24] MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, “habeas data”. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 27.

[25] Tratado das ações. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, t. I, 1972. p. 150.

[26] Sistema del Derecho romano actual. Libro I, Capítulo IV. Trad. Jacinto Mesía y Manuel Poley. Granada: Comares, 2005. p. 93-146.

[27] PÁDUA, Felipe Bizinoto Soares de. Sobre a interpretação jurídica. Disponível em: <https://felipebpadua.jusbrasil.com.br/artigos/598880447/sobre-a-interpretacao-juridica>. Acesso em: 7 set. 2020.

[28] Manual de direito civil… cit., p. 634-636.

[29] Lições preliminares de direito ambiental. São Paulo: Verbatim, 2010. p. 47-63.

[30] Diritto privato. 5. ed. Torino: G. Giappichelli, 2016. p. 575-576.

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