RKL Escritório de Advocacia

A HIGIDEZ DA SÚMULA 410 DO STJ À LUZ DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

Raoni Souza Drummond

 

A (des) necessidade de intimação pessoal da parte para dar cumprimento ao provimento jurisdicional que impõe obrigações de fazer ou não fazer sempre foi um tema polêmico na doutrina e na jurisprudência. Com o CPC/15, a matéria ganhou novos contornos, notadamente pelo confronto entre a lei e o Enunciado nº 410 da Súmula de Jurisprudência do STJ[1].

Questão relevante sobre a cobrança da multa fixada para os fins do artigo 537, seja ele provisório ou definitivo, diz respeito à necessidade, ou não, de prévia intimação pessoal para tanto”. A pertinência da questão justifica-se também por força da Súmula 410 do STJ, assim enunciada: A prévia intimação pessoal do devedor constitui condição necessária para a cobrança de multa pelo descumprimento de obrigação de fazer ou não fazer’[2].

De fato, o debate se arrastou por anos, desde as reformas promovidas no CPC/73 pelas Leis 8.952/94, 10.444/02 e 11.232/05[3], e continuou durante a vigência do CPC/15[4], diante da redação obscura dos seus artigos 513, §§1º e 2º, 515, I, 536 e 537.

De um lado, parte dos doutrinadores defende que a leitura sistemática dos dispositivos, voltada ao espírito da nova lei, conduz inexoravelmente à confirmação de que se tornou despicienda a intimação pessoal do devedor para que fosse deflagrado o prazo de cumprimento da ordem judicial de fazer ou não fazer[5]. Houve inclusive quem — lastreado em abalizada doutrina[6] — desse “adeus” à necessidade de intimação pessoal, e considerasse já revogado o verbete sumular, ainda durante a vacância legal[7].

De outra banda, desde antes da entrada em vigor da nova lei instrumental, respeitáveis nomes do processo civil brasileiro argumentam que a intimação do devedor precisaria ser feita pessoalmente, seja pelo silêncio eloquente da norma, seja porque o cumprimento da tutela depende do seu comportamento pessoal [8]. Vale dizer, “diante do total silêncio da lei, é imperioso que a intimação seja feita pessoalmente ao obrigado, não ao seu patrono, pois se trata de intimar a praticar atos que dependem da atuação pessoal da parte[9].

Esses doutrinadores ponderam, ademais, que as sanções cominadas para o caso de descumprimento seriam suportadas pela parte e não pelo causídico, pelo que este não poderia ser intimado em nome daquela, mesmo tendo poderes especiais para tanto no instrumento de mandato. Além disso, empreender diligências para localizar seu cliente e transmitir a comunicação processual que recebera em nome próprio seria um encargo deveras excessivo para o mandatário[10], e que poderia até mesmo inviabilizar o exercício da sua atividade profissional.

Como não poderia deixar de ser, a controvérsia não cessou na academia, chegando também aos tribunais pátrios, para enfim desaguar no STJ, editor do referido enunciado sumular e responsável pela interpretação última das normas processuais no plano infraconstitucional.

Exemplificativamente, após a entrada em vigor do CPC15, a 4ª Turma do STJ seguiu aplicando expressamente o Enunciado nº 410, como fez no AgInt no REsp 1.592.889/SE [11], para reputar necessária a prévia intimação pessoal do devedor caso a decisão exequenda tenha estipulado obrigações de fazer ou não fazer; mas, em sentido inverso, a 2ª Turma da corte, amparada em precedentes das 2ª e 3ª Turmas, continuou deliberando que o enunciado não se aplicaria às relações posteriores à Lei 11.232/05, bastando que a intimação do devedor se operasse por meio de publicação na Imprensa Oficial, dirigida ao seu advogado constituído nos autos, conforme se infere do decisum exarado no REsp 1.727.034/SP[12].

O resultado disso é o regime de insegurança jurídica instalado. A assertiva leva em conta não apenas o fato de que houve abrupta alteração do entendimento jurisprudencial, mas sobretudo porque, ao contrário do que se imaginou, os precedentes que serviram de base para a formação da jurisprudência na Corte Superior não foram, sob uma perspectiva técnica jurídico-processual, objeto de superação (…).

Essa balbúrdia envolvendo a jurisprudência do STJ nos remete à autocontradição e ao descrédito do próprio Poder Judiciário, levando a crer que a Corte Especial não se vincula aos seus próprios precedentes, criando uma espécie de jurisprudência lotérica, na qual o resultado do julgamento é determinado pela casualidade. Temos o acaso reinando sobre uma importante quaestio juris, sedimentada sob uma mesma base empírica, recebendo dois ou três tratamentos distintos que se conflitam, malferindo a isonomia constitucional, uma das bases de sustentação do Estado Democrático de Direito.

O julgamento dos casos passa a ser atribuído à sorte, e não propriamente ao bom direito, à correta exegese da lei federal, fato que retrata ausência de boa-fé objetiva por parte do Estado-juiz, além de descaso quanto às funções institucionais do STJ e, sobretudo, com o seu auditório verdadeiro — a sociedade[13].

Não por outro motivo, desde há muito se clamava pela uniformização da jurisprudência em torno do Enunciado nº 410, mediante o julgamento de embargos de divergência [14], a fim de dar previsibilidade ao sistema jurisdicional e, consequentemente, conferir segurança jurídica às relações sociais.

Tanto por isso, a questão foi parar na Corte Especial, que finalmente pôde dirimir a grave divergência entre turmas integrantes de seções distintas, sedimentando o entendimento pretoriano de que o Enunciado nº 410 da Súmula de Jurisprudência do Tribunal permanece hígido mesmo após a vigência do CPC/15.

Com efeito, no último dia de expediente forense do ano de 2018 foram a julgamento os EREsp 1.360.577/MG[15], nos quais o relator — ministro Humberto Martins — votou no sentido de restringir a incidência da tese sumulada àqueles casos em que a obrigação é disciplinada pelo sistema anterior às minirreformas de 2005 e 2006, no que foi acompanhado pelos ministros Herman Benjamin, Felix Fischer e Nancy Andrighi.

O ministro Luis Felipe Salomão, contudo, manifestou fundada divergência, mantendo-se firme no posicionamento de que a tese sumulada permanece plenamente válida após a edição do CPC/15, sob o argumento de que as obrigações de fazer e de não fazer exigem um “tratamento jurídico diferenciado” daquele aplicado às obrigações de pagar quantia certa, justamente pelas múltiplas e graves consequências jurídicas e práticas de seu eventual desatendimento (como verbi gratia as astreintes, contempt of court ou a configuração de crime de desobediência). A maioria do colegiado, convencida, seguiu a sua linha de raciocínio, acompanhando a divergência os ministros Maria Thereza de Assis Moura, Napoleão Nunes Maia, Jorge Mussi, Mauro Campbell Marques, Benedito Gonçalves, Raul Araújo e João Otávio de Noronha.

Na oportunidade, os julgadores admitiram que “muitas situações similares — como se percebe da praxe forense — acabam por transformar multas em condenações astronômicas, justamente pela falta de cientificação oportuna do próprio devedor para cumprimento da obrigação de fazer“, rememorando que “a regra geral sobre intimações leva em conta a pessoa a quem cabe cumprir a ordem judicial: o advogado, quanto aos atos postulatórios; a parte, quanto à prática de um ato pessoal“.

Inegavelmente, a fundamentação encontra sólido respaldo doutrinário:

“É claro que a possibilidade de intimação da parte na figura do advogado facilita, e muito, o trabalho do Judiciário, indo ao encontro de uma maior concretude da relação jurídico processual. Todavia, essa medida não encontra amparo na unidade das normas componentes do processo civil, configurando desrespeito às profundas diferenças de regime jurídico entre tais espécies.

Devemos encontrar saídas para as mazelas que acometem o Poder Judiciário sim, mas sem solapamento das garantias constitucionais de um processo legítimo, que respeita igualmente os direitos daquele contra quem a decisão judicial se volta. Se a decisão judicial é mandamental, possuindo severas consequências advindas do descumprimento, é prudente, salutar e irrefutável que o devedor seja pessoal e previamente intimado.

Esse encargo não pode ser transferido ao advogado, quando suas atribuições estão muito bem solidificadas no ordenamento jurídico. Não se coadunam as severas consequências advindas do descumprimento de tutela específica da obrigação com tamanha informalidade oficial.

Destarte, nenhum argumento jurídico sólido há que justifique o abandono do entendimento manifestado na Súmula 410 do STJ que, repita-se, é fruto de uma construção pretoriana sólida, encontrando consonância com a nova ordem processual civil[16].

Já depois disso, a Corte Especial teve a oportunidade de reafirmar a tese, exempli gratia nos julgamentos do AgInt nos EAREsp 1.029.346/RJ[17] e do EREsp 1.725.487/SP[18], estabelecendo definitivamente que “é necessária a prévia intimação pessoal do devedor para cobrança de multa pelo descumprimento de obrigação de fazer ou não fazer antes e após a edição das Leis 11.232/2005 e 11.382/2006, nos termos da Súmula 410 do STJ, cujo teor permanece hígido também após a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil“.

Dessa forma, embora louváveis as críticas ao posicionamento adotado[19], a uniformização da jurisprudência em derredor do tema conferiu estabilidade e integridade ao sistema, bem como segurança jurídica aos jurisdicionados, por dar previsibilidade às consequências jurídicas dos fatos ocorridos no processo, ou dos atos praticados pelas partes e por seus advogados.

Agora não há mais dúvida: é necessária a intimação pessoal da parte para que seja deflagrado o prazo para cumprimento da tutela cominatória fixada na decisão, não bastando a intimação por advogado, na esteira da jurisprudência sumulada do STJ, que continua hígida na vigência do CPC/15.

 

[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 410. A prévia intimação pessoal do devedor constitui condição necessária para a cobrança de multa pelo descumprimento de obrigação de fazer ou não fazer. 2ª Seção. DJe 16 dez. 2009; DJe 03 fev. 2010. Revista de Súmulas do STJ. Vol. 38, 2014, p. 457-478.

[2] BUENO, Cassio Scarpinella. Comentários ao código de processo civil. Vol. X (artigos 509 a 538): da liquidação e do cumprimento de sentença. BONDIOLI, Luis Guilherme Aidar; FONSECA, João Francisco Naves da; GOUVÊA, José Roberto Ferreira (coord.). São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 380.

[3] NOGUEIRA, Antonio de Pádua Soubhie. Súmula 410 do STJ: uma breve análise crítica. Revista de Processo. Vol. 190, p. 231-256, dez. 2010.

[4] BALZANO, Felice. A súmula 410 e a incoerência do STJ: uma tentativa de se atropelar o devido processo legal. Revista de Processo. Vol. 231, p. 255-285, mai. 2008.

[5] FAGUNDES, Cristiane Druve Tavares; JÚDICE, Mônica. Os contornos conferidos pelo CPC/2015 para a multa periódica nas obrigações de fazer, não fazer ou entregar coisa. Revista de Processo. Vol. 273, p. 171-188, nov. 2017.

[6] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 530.

[7] PEREIRA, Rafael Caselli. A chegada do novo CPC/2015 e o adeus à Súmula 410 do STJ. Revista Consultor Jurídico. São Paulo, 13 mar. 2016. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2016-mar-13/chegada-cpc2015-adeus-sumula-410-stj>. Acesso em 15 mar. 2020.

[8] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; WAMBIER, Luiz Rodrigues; MEDINA, José Miguel Garcia. Sobre a necessidade de intimação pessoal do réu para o cumprimento da sentença no caso do art. 475-J do CPC. Migalhas de Peso. São Paulo, 8 jun. 2006. Disponível em <https://migalhas.uol.com.br/depeso/25880/sobre-a-necessidade-de-intimacao-pessoal-do-reu-para-o-cumprimento-da-sentenca–no-caso-do-art–475-j-do-cpc–inserido-pela-lei-11-232-2005>. Acesso em 13 jun. 2020.

[9] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Vol. 4. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 525.

[10] REDONDO, Bruno Garcia. Astreintes: aspectos polêmicos. Revista de Processo. Vol. 222, p. 65-89, ago. 2013.

[11] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Recurso Especial n° 1.592.889/SE. Rel. Min. Marco Buzzi. 4ª Turma. Diário de Justiça Eletrônico. 31 ago. 2016.

[12] Idem. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n° 1.727.034/SP. Rel. Min. Herman Benjamin. 2ª Turma. Diário de Justiça Eletrônico. 05 nov. 2019.

[13]  BALZANO, Felice. Mais do mesmo: ainda a súmula 410 do STJ. Loc. Cit.

[14] NOGUEIRA, Antonio de Pádua Soubhie. Op. Cit., Loc. Cit.

[15] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Divergência em Recurso Especial ° 1.360.577/MG. Rel. Min. Humberto Martins; Rel. Ac. Min. Luis Felipe Salomão. Corte Especial. Diário de Justiça Eletrônico. 07 mar. 2019.

[16]  BALZANO, Felice. Op. Cit, Loc. Cit.

[17]  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno nos Embargos de Divergência em Agravo em Recurso Especial n° 1.728.194/MG. Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura. Corte Especial. Diário de Justiça Eletrônico. 24 mai. 2019.

[18] Idem. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Divergência em Recurso Especial n° 1.725.487/SP. Rel. Min. Laurita Vaz. Corte Especial. Diário de Justiça Eletrônico. 17 dez. 2019.

[19] Por todos: BUENO, Cassio Scarpinella. Op. Cit., p. 380-381. FAGUNDES, Cristiane Druve Tavares; JÚDICE, Mônica. Op. Cit., Loc. Cit. NOGUEIRA, Antonio de Pádua Soubhie. Op. Cit., Loc. Cit.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *