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A HERMENÊUTICA E A LIBERDADE DO HOMEM NO CONTRATO SOCIAL DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU

Lauro Rocha Reis

SUMÁRIO:Introdução; A liberdade do homem; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

Meditando sobre O contrato social de Jean-Jacques Rousseau, em sua análise sobre a vontade geral e a vontade particular, foi possível verificar que a obra do filósofo em questão fixa como início a mudança do homem do estado de liberdade natural para o estado de liberdade civil. Daí ficou claro que a análise de Rousseau merece reflexão mais acurada, com aplicação da hermenêutica filosófica.

Pretende-se, com este trabalho, interpretar o pensamento de Rousseau no sentido de se verificar o que ele efetivamente disse, o que pretendeu dizer e o que foi por ele dito sem explicitamente dizer.

Em princípio, será importante esclarecer o significado de hermenêutica, seguindo-se por apresentar a ideia posta por Rousseau, após discutir o seu pensamento e, por fim, aplicar a hermenêutica filosófica ao seu ensinamento.

Os presentes escritos recorrerão ao método indutivo para análise, discussão e proposta hermenêutica da situação humana proposta por Rousseau.

Além da própria obra de referência deste trabalho, serão utilizadas outras, especialmente as que esclareçam o significado de hermenêutica.

O estudo da filosofia está intimamente relacionado à hermenêutica, pois o estudioso, o pensador, deve depurar o entendimento sobre o conteúdo que analisa, a fim de não permitir que seus valores pessoais venham macular o que o autor da obra tencionava, quando da manifestação do seu pensa­mento.

Assim, antes de se adentrar em qualquer análise, é de suma importância o entendimento sobre o significado da hermenêutica, que, em sentido geral, é “substantivo feminino, a interpretação dos textos, do sentido das palavras[1].

Esse significado bem demonstra que a palavra em questão está ligada à subjetividade do leitor, da sua forma de pensar e formar ideia sobre determinado texto por si lido. Não se trata simplesmente de captar a leitura, mas do entendimento do contexto, da intenção do autor, da firme compreensão do que ele explicitamente disse, do que quis dizer, da ideia que transmitiu mesmo sem o dizer. A interpretação direta do texto, a sensibilidade na captação do contexto e a identificação da vontade, da intenção na transmissão das ideias, todo este conjunto extrínseco e intrínseco constitui o significado do que venha a ser a hermenêutica.

Sobre a interpretação, Richard E. Palmer [2] ensina o seguinte:

Um intérprete moderno típico defende geralmente a obra literária como “um ser autônomo” e vê a sua tarefa como a de alguém que penetra nesse ser autônomo por meio da análise textual. A separação preliminar de sujeito e objecto, tão axiomática no realismo, torna-se o fundamento filosófico e o contexto da interpretação literária.

Pela simples leitura do ensinamento de Palmer, é possível entender, de forma clara, o moderno significado da hermenêutica, isto é, o objeto – ser cognoscível – submetido à análise textual do sujeito – ser cognoscente -, que realiza a interpretação literária do contexto do pensamento e das ideias do autor dos escritos.

Não será objeto de discussão neste trabalho a hermenêutica teológica, que consiste na interpretação dos textos das escrituras sagradas, pois difere do objeto presente.

Tem-se a filosofia como a ciência do universal e, para sua compreensão, faz-se necessária a utilização de método, daí a aplicação de requisitos como técnica, instrumento e arte de interpretar textos.

Recorre-se então às explicações de Luiz Rohden [3] sobre a hermenêutica metodológica:

Enquanto metodológica, a hermenêutica reduz sua atividade e validade ao nível do logos apofântico, em detrimento do ainda-não-dito. Ela delimita o interpretar ao mundo do dito, ignorando sua outra margem, o não-dito, reduzindo este ao plano do não-ser em sentido parmenidiano. Apenas o convertido ao plano do dito é tido e reconhecido como válido pela hermenêutica metodológica.

É possível extrair que a hermenêutica metodológica tem caráter interpretativo restritivo, pois o leitor e intérprete extrai apenas o que claramente está exposto nos escritos desprezando, de per si, o que o mencionado autor denomina como sendo o ainda-não-dito.

Do ponto de vista filosófico, a hermenêutica não se limita a interpretar os simples escritos; vai muito além, como continua Rohden [4] em suas explicações:

Ler, isto é, interpretar e compreender, significa compreender-se diante do texto que pode ser o contexto em que nos encontramos ou as obras que produzimos. A leitura filosófica contextualiza-se no tempo e no espaço, sem se prender a uma dessas margens. Com a leitura filosófica não procuramos apenas adquirir informações sobre algo, mas instauramos experiências autênticas de sentido do ser que se diz de muitas maneiras.

Nesse sentido, é fácil identificar que a hermenêutica filosófica, ao contrário da hermenêutica metodológica, tem caráter extensivo e não restritivo, pois o leitor e intérprete não fica adstrito ao efetivamente dito; ele explora o não-dito por meio do conhecimento histórico e das circunstâncias de tempo e espaço na ocasião em que os escritos foram produzidos. O ser cognoscente atua sobre o cognoscível, aplica sua experiência pessoal enquanto exercita a interpretação, pois o simples ler é superado pelo filosofar, isto é, pensar e sentir.

Após essas considerações, entendem-se presentes as condições para, aplicando-se a hermenêutica filosófica, passar-se aos ensinamentos de Rousseau.

A LIBERDADE DO HOMEM

Ao publicar a obra intitulada Do contrato social no ano de 1762, o filósofo Jean-Jacques Rousseau defendeu, em síntese, que a vida social é considerada sobre a base de um contrato em que cada contratante condiciona a sua liberdade ao bem da comunidade, procurando proceder sempre de acordo com as aspirações da maioria.

Para embasar a tese então elaborada, Rousseau [5] tomou como base a mudança do homem do estado natural para o estado civil, assim demonstrando:

O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo que o tenta e pode alcançar; o que ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui. Para que não haja engano em suas compensações, é necessário distinguir a liberdade natural, limitada pelas forças do indivíduo, da liberdade civil, que é limitada pela liberdade geral, e a posse, que não é senão o efeito da força ou do direito do primeiro ocupante, da propriedade, que só pode ser baseada num título positivo.

Poder-se-ia, em prosseguimento do precedente, acrescentar à aquisição do estado civil a liberdade moral, a única que torna o homem verdadeiramente senhor de si mesmo, posto que o impulso apenas do apetite constitui a escravidão, e a obediência à lei a si mesmo prescrita é a liberdade.

Para compreensão do texto acima, será importante a sua análise por partes, de cada instituto ali contido, pois em tão poucas palavras Rousseau faz profunda e importante digressão sobre a vida do homem, especialmente com relação ao convívio social. A questão da mudança na natureza da liberdade humana refletiu em todos os aspectos da complexa sociedade atual.

Em primeiro lugar, é preciso entender o significado do que vem a ser a liberdade natural. Como qualquer animal, o homem nasce no orbe e depende dos recursos naturais para subsistir, da água para saciar a sede, dos vegetais e animais à sua disposição existentes para se alimentar e se abrigar das intempéries. Uma das mais marcantes características do homem é ser nômade, migrar conforme a abundância ou escassez de recursos de subsistência o direcionar. Ir ou permanecer conforme as necessidades naturais da vida, sem nenhum laço de fixação em qualquer lugar, sem nenhuma preocupação com questões morais, apenas viver por viver, sem qualquer outro sentido. As constantes migrações levavam o homem a constantes aventuras e também a riscos de diversas formas.

Ser solitário não é característica humana, daí até mesmo para proteção comum, desde os primórdios, o homem tende a viver em grupo. Se duas ou mais pessoas se aproximam, entre si, firmam pretensões e obrigações mútuas, umas em relação às outras e vice-versa. O convívio tende sempre a limitar a liberdade, de modo que possa haver harmonia na convivência e, exatamente aí, surge o ponto de migração da liberdade natural para a chamada liberdade civil. Em grupo, uns protegendo os outros, administrando de forma racional e inteligente, podem os homens produzir abundantemente recursos de subsistência e se fixar em territórios, sem ter que sair por aí atrás de tal. A liberdade natural individual começa a dar espaço à liberdade geral, os valores e os princípios então passam a se sedimentar dentre os indivíduos, que socialmente se organizam.

Ao deixar de ser nômade, o homem, já em grupo e formando sociedade, ocupa territórios e nasce em si o animus possidendi; a liberdade civil traz novos valores e os demais conviventes passam, em comum, a respeitar a posse de outrem, daí a relação de fato entre o sujeito e a coisa também evolui para o animus domini, que nada mais é do que a relação de direito entre o sujeito e a coisa, igualmente mantendo eficácia erga omnes, já então se falando em propriedade constituída por um título positivo.

Rousseau conclui seu posicionamento sobre a liberdade do homem tratando da chamada liberdade moral, que decorre da liberdade civil, defendida por ele como “a única que torna o homem verdadeiramente senhor de si mesmo“, que, em contraponto à liberdade natural, tem esta como verdadeira escravidão.

A exposição sobre o breve texto de Rousseau constitui em hermenêutica literária ou até metodológica, simples explicação sobre os institutos abordados pelo pensador, ficando adstrita ao que efetivamente fora dito, carente de maiores digressões filosóficas.

Porém, é importante buscar adentrar ao sentimento expressado pelo autor quando produzira os escritos, pois há no contexto a transmissão de determinada vontade no demonstrar o quanto a liberdade civil é benéfica e, mais ainda, a liberdade moral. Não pode o homem ficar reduzido aos seus instintos naturais, como comer, beber, dormir; a vida merece sentido muito superior a isso, e só se pode expressar a bondade, por exemplo, com a compreensão moral da vida e da convivência.

A prática de costumes observando regras, valores e princípios legais e morais dá ao homem a sensação de liberdade muito superior à simples liberdade corporal. Todas essas considerações podem ser extraídas do texto sem que Rousseau efetivamente tenha utilizado essas palavras; trata-se do dito sem o dizer, que reside na transmissão de um sentimento constante do contexto, mesmo sem o estar explicitado no texto. Graças à hermenêutica filosófica é possível ao intérprete captar a mensagem de um sentimento manifestado nos idos de 1762, nos dias de hoje, na metade final da segunda década do século 21!

Vê-se que o autor, ao iniciar sobre a liberdade natural, sem estar o homem vinculado a compromissos horários que não aqueles impostos por intempéries, transmite a sensação de ameno contato com a natureza, de amplidão. De imediato trata da perda de tudo isso, trazendo ao leitor uma primeira imagem de frustração, de encarceramento.

Imediatamente a seguir, Rousseau produz no leitor uma sensação de novo sentimento de liberdade, muito superior àquela aparentemente perdida, reforçada por um sentimento de autoridade e senhoria, em manifesto valor ao direito de propriedade, transmite ao leitor a sensação de autoconfiança.

Nas palavras finais, Rousseau manifesta a importância da espiritualização do homem ao demonstrar que só a liberdade moral é capaz de transmitir a sensação de liberdade plena e que, para tanto, a liberdade geral deve prevalecer, as limitações civis projetam todos à verdadeira liberdade, que é o encontro da harmonia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi exposto em relação aos ensinamentos filosóficos de Rousseau, quanto às formas de interpretação, cabe agora demonstrar os três vetores da hermenêutica, de modo a expressar as diferentes formas de compreensão.

A simples leitura e captação da organização das palavras, dos escritos, traz ao significado do que vem a ser a hermenêutica literária, da simples leitura do que foi dito.

A compreensão contextual da ideia expressamente dita, demonstrada de forma clara e aberta, manifesta o que se pode chamar de hermenêutica metodológica, que nada mais é do que a captação direta e racional da ideia transmitida.

A análise do não-dito, isto é, do que foi dito sem dizer, do que foi transmitido de forma intuitiva, a faculdade de captar o que sentia o autor ao produzir os escritos, o sentimento de concordância ou discordância, vem constituir o que pode ser chamado de hermenêutica filosófica. O sentimento de frustração com a perda da liberdade natural, o ganho de autoconfiança com a ideia da liberdade civil e a sensação de amplitude e o sentimento de autoridade manifestado pela liberdade moral não estão explicitamente escritos, nem tampouco efetivamente ditos, mas, por meio da hermenêutica filosófica, o leitor forma sua compreensão superior e é capaz de interagir com os sentimentos do autor quase trezentos anos depois.

Ao término da leitura, o intérprete filosófico mantém sedimentado em si que a liberdade natural é, na verdade, uma escravidão, que cumprir as leis e se sacrificar em prol da liberdade geral traz a verdadeira liberdade, que é a moral, pois somente com esse exercício de inteligência e de sentimento espiritualizado é possível captar o verdadeiro sentido dos ensinamentos.

REFERÊNCIAS

DICIONÁRIO Aurélio eletrônico. GNU General Public Licence.

PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1999.

ROHDEN, Luiz. Interfaces da hermenêutica. Caxias do Sul: EDUCS, 2008.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/contratosocial.pdf>.

[1] Dicionário Aurélio eletrônico. GNU General Public Licence.

[2] PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1999. p. 17.

[3] ROHDEN, Luiz. Interfaces da hermenêutica. Caxias do Sul: EDUCS, 2008. p. 42.

[4] Idem, p. 55.

[5] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/contratosocial.pdf>, p. 31. Acesso em: 9 mar. 2016, às 22h.

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