A HERANÇA DIGITAL: CONSIDERAÇÕES SOBRE A POSSIBILIDADE DE EXTENSÃO DA PERSONALIDADE CIVIL POST MORTEM
Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas
Sabrina Bicalho Silveira
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Do Direito Sucessório; 2.1 Da Evolução Histórica do Direito Sucessório no Brasil; 2.2 Dos Princípios do Direito Sucessório; 2.2.1 Do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana; 2.2.2 Do Princípio de Saisine; 2.2.3 Do Princípio da Indivisibilidade da Herança; 2.2.4 Do Princípio da Tutela Especial à Família; 2.2.5 Do Princípio da Igualdade; 2.3 Das Modalidades de Sucessão; 2.3.1 Da Sucessão Legítima; 2.3.2 Da Sucessão Testamentária; 2.4 Da Natureza Jurídica da Herança. 3 A Internet e os Direitos da Personalidade; 3.1 A Revolução da Internet na Vida Globalizada; 3.2 Do Acervo Digital; 3.3 Da Natureza dos Bens Digitais. 4 Da Personalidade Civil e da Herança Digital; 4.1 Do Legado Virtual sem Valor Econômico; 4.2 Da Possibilidade de o Legado Virtual sem Valor Econômico Ser Regulado por Testamento Virtual e por Codicilo; 4.3 Do Legado Virtual com Valor Econômico. 5 As Normas Civis Vigentes e a Sucessão dos Bens Virtuais; 5.1 Do Projeto de Lei nº 4.099-A/2012; 5.2 Do Projeto de Lei nº 4.847/2012. 6 Conclusão. 7 Referências.
1 Introdução
A partir da expansão da internet e do aumento do uso da tecnologia nas relações que se estabelecem na sociedade, instaurou-se uma verdadeira realidade virtual, na qual as pessoas passaram a expor conteúdos privados em redes sociais, além de obter e armazenar conteúdos virtualmente (on-line), a partir dos diversos mecanismos tecnológicos criados para tanto, como a chamada “nuvem“, iCloud, Dropbox, entre outros.
Neste cenário, com o reconhecimento de dados digitais, que, em geral, são utilizados pela maioria das pessoas quase todos os dias de suas vidas, passou a se instaurar na sociedade questões acerca da natureza jurídica e da possível destinação destes dados virtuais, o que, sociologicamente, gera uma forte transformação no trato jurídico destas questões.
Voltado a esta nova realidade social, primeiramente, o presente estudo investigará o instituto jurídico das sucessões, seu linear histórico, seus princípios, suas modalidades e a natureza jurídica da herança. Isto para a construção da correta compreensão acerca dos bens digitais em vida “adquiridos” e a sua destinação (ou não) a partir da morte de seu titular, uma vez que se trata de verdadeira lacuna nas nossas normas civis vigentes, não havendo, até o momento, um direcionamento concreto para o tratamento destas questões.
Após, serão abordados o contexto sociológico que trouxe a evolução da internet e seu impacto aos direitos da personalidade. Tal investigação terá enfoque tanto nos dados digitais estritamente pessoais, como externalização da intimidade do seu titular, quanto naqueles denominados pela doutrina como “bens digitais economicamente valoráveis“, que possui conteúdo essencialmente comercial, portanto, patrimonial. No primeiro grupo citado, têm-se os perfis nas mais diversas redes sociais que revelem a intimidade do titular, os e-mails, os blogs, dentre outros. No segundo grupo, porém, têm-se os e-books, os filmes e as imagens digitalmente arquivados, além do conteúdo dos sites e até mesmo das redes sociais que revelem o objetivo de aferição econômica do titular.
Atrelada ao direito sucessório, serão observados os aspectos do instituto da personalidade civil, de modo a fundamentar o reconhecimento ou não da herança digital a partir da possível extensão daquela com a da morte do titular do acervo digital.
Por fim, será investigada a problemática no que tange às normas civis vigentes e à sucessão dos bens virtuais. Para tanto, serão abordados os Projetos de Lei ns. 4.099/2012 e 4.847/2012, respectivamente, de autoria do Deputado Jorginho Mello, apresentado em 20.06.2012, que pretende alterar o art. 1.788 do Código Civil, garantindo aos herdeiros a transmissão de todos os conteúdos de contas e arquivos digitais, e de autoria do Deputado Marçal Filho, apresentado em 12.12.2012, que visa acrescentar o Capítulo II-A e os arts. 1.797-A a 1.797-C ao Código Civil, estabelecendo normas acerca da herança digital, respectivamente.
Nota-se, a partir da pesquisa a respeito das matérias abordadas neste estudo, que é imprescindível que o ordenamento jurídico brasileiro passe por uma adequação legislativa no sentido de se garantir aos autores da herança digital e aos seus herdeiros os direitos provenientes dos bens digitais aferidos em vida, propiciando maior efetividade no trato destas questões e atingindo a necessária segurança jurídica neste aspecto, respeitando, principalmente, o direito fundamental à herança, consagrado pela Constituição Federal da República.
2 Do Direito Sucessório
O direito das sucessões, consagrado como direito fundamental, conforme disposto expressamente pelo art. 5º, XXX, da Constituição da República de 1988, cuida da transmissão de bens por ocasião da morte.
Conforme Clóvis Beviláqua, “a sucessão mortis causa ou hereditária é aquela em que há transmissão de direitos e obrigações de uma pessoa morta a outra sobreviva em virtude da lei ou da vontade do transmissor” (Direito das sucessões…, 1932, p. 15).
Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 32) diz:
“A palavra ‘herança’ tem maior amplitude, abrangendo o patrimônio do de cujus, que não é constituído apenas de bens materiais e corpóreos, como um imóvel ou um veículo, mas representa uma universalidade de direito, o complexo de relações jurídicas dotadas de valor econômico (CC, art. 91).”
Sobre o tema, Sílvio de Salvo Venosa (2013, p. 7) ensina:
“Destarte, a herança entra no conceito de patrimônio. Deve ser vista como o patrimônio do de cujus. Definimos o patrimônio como o conjunto de direitos reais e obrigacionais, ativos e passivos, pertencentes a uma pessoa. Portanto, a herança é o patrimônio da pessoa falecida, ou seja, do autor da herança.”
Assim, por meio da sucessão hereditária, objeto do presente trabalho, é transmitida a universalidade de direito do de cujus aos seus herdeiros.
O Código Civil de 2002 reconhece duas modalidades de sucessão causa mortis: a sucessão legítima e a sucessão testamentária. A sucessão legítima, como o próprio nome insinua, decorre da lei, isto é, da ordem de vocação hereditária prevista no art. 1.829 do Código Civil de 2002. A sucessão testamentária, por sua vez, decorre da chamada disposição de última vontade do falecido, que, em vida, confecciona testamento ou codicilo elencando aqueles que devem, por sua vontade, sucedê-lo, o que ocorrerá a partir do respeito aos limites legais.
A partir do evento morte ocorrem os dois principais efeitos a serem trabalhados nesta oportunidade: o fim da existência da pessoa natural e a abertura da sucessão. Tem-se, conforme a doutrina e a jurisprudência, que em respeito ao chamado princípio de saisine, automaticamente, imediatamente e independentemente de aceitação, após a morte do autor da herança, ocorre a sucessão aos seus herdeiros. E a personalidade civil da pessoa, que se inicia com o nascimento com vida, conforme o art. 2º do Código Civil, estaria extinta com a morte.
É importante ressaltar ainda que a lei que regula a sucessão é aquela vigente ao tempo do falecimento, assim como a legitimação para suceder é verificada quando da abertura da sucessão. Ocorre também em razão da morte a chamada delação ou devolução sucessória, em que o patrimônio ativo e passivo do de cujus passa aos herdeiros, novos titulares, como uma verdadeira “massa patrimonial“, considerada como um todo unitário. Conforme Eduardo de Oliveira Leite, “o direito impõe, através de uma ficção jurídica, a transmissão da herança, garantindo a continuidade na titularidade das relações jurídicas do defunto” (Comentários… 2004, v. XXI, p. 5).
Para melhor abordar o tema, os próximos capítulos tratarão da evolução histórica do direito sucessório no Brasil, da base principiológica deste instituto, além de suas modalidades de forma especificada.
2.1 Da Evolução Histórica do Direito Sucessório no Brasil
Como dito, para que ocorra a transmissão causa mortis, é indispensável a morte do autor do acervo hereditário, sendo que, após tal evento, os herdeiros passam a assumir a titularidade das relações jurídicas estabelecidas pelo falecido, assumindo os seus direitos e obrigações.
Este tema teve seu marco de estudo no direito romano, no qual a Lei das XII Tábuas, considerada pelos romanos como a fonte de todo o direito público e privado, conferia ao chefe da família a autonomia para a disposição de seus bens após a morte, estabelecendo um critério de direcionamento patrimonial, ante a ausência de testamento, às três classes, nesta ordem: heredes sui, agnati proximi e gentiles (GONÇALVES, 2014).
Conforme Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 21-22):
“Os heredi sui et necessarii eram os filhos sob o poder do pater e que se tornavam sui iuris com sua morte: os filhos, os netos, incluindo-se também, nessa qualificação, a esposa. Os agnati eram os parentes mais próximos do falecido. Entende-se por agnado o colateral de origem exclusivamente paterna, como o irmão consanguíneo, o tio que fosse filho do avô paterno, e o sobrinho, filho desse mesmo tio. A herança não era deferida a todos os agnados, mas ao mais próximo no momento da morte (agnatus proximus). Na ausência de membros das classes mencionadas, seriam chamados à sucessão os gentiles, ou membros da gens, que é o grupo familiar em sentido lato.”
Verifica-se, neste sentido, a noção advinda do direito romano de que, com a morte do titular do patrimônio, a sucessão deve ser regulada a partir de uma ordem necessária de vocação, baseada na proximidade do de cujus com aqueles que lhe sucedem.
Neste linear, ressalta-se ainda a origem histórica da expressão saisine, que ocorreu nos primórdios do direito francês, e, conforme Eduardo de Oliveira Leite, trata-se de “regra costumeira que era expressa pelo adágio aceito desde o século XIII em todos os lugares: ‘le mort saisit le vif’ (o morto prende o vivo) ou, por uma forma um pouco menos lapidar: ‘le mort saisit le vif, son hoir pel plus proche, habile à lui succéder’ (o morto prende o vivo, seu herdeiro mais próximo, hábil a lhe suceder)” (Comentários…, 2014, v. XXI, p. 8).
O Código Civil de 1916, por sua vez, a partir de normas gerais, passou a tratar da transmissão hereditária, da sucessão testamentária e legítima, além de dispor de regras relativas à partilha e ao inventário.
A Constituição Federal de 1988, após, passou a tratar o direito à herança como direito fundamental, conforme seu art. 5º, inciso XXX, o que se encontra atrelado ao também fundamental direito à propriedade e ao fato de que a destinação a ser dada ao patrimônio do autor da herança encontra-se estritamente ligada à dignidade da pessoa humana.
A partir da entrada em vigor do Código Civil de 2002, a legislação infraconstitucional passou a contar com novo mecanismo de regulamentação dos direitos da pessoa, desde a sua concepção até a sua morte.
Assim, verifica-se o direcionamento do direito sucessório atual, que, em suas normas específicas vigentes, reflete as disposições do direito romano e do direito francês. No entanto, as modificações fáticas e sociais ensejaram a evolução deste instituto de modo a possibilitar a sua adequação em face dos anseios da sociedade, garantindo, efetivamente, o direito de herança.
Neste sentido, o direito sucessório contemporâneo encontra-se em mais um momento de necessária evolução: adequação à era tecnológica. Este fato decorre do modo como as relações passaram a se dar, tendo em vista a presença de dados digitais cada vez mais presentes entre as relações jurídicas estabelecidas na sociedade civil.
2.2 Dos Princípios do Direito Sucessório
Conforme já mencionado, a Constituição Federal de 1988 conferiu ao direito de herança o status de direito fundamental:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
XXX – é garantido o direito de herança;”
Tal direito encontra-se atrelado a princípios basilares, quais sejam o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da saisine, o princípio da indivisibilidade da herança, o princípio da tutela especial à família e o princípio da igualdade.
2.2.1 Do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o princípio da dignidade da pessoa humana, que é um dos próprios fundamentos do Estado Democrático de Direito, passou a ser pressuposto indispensável a se observar no tocante a quaisquer institutos do ordenamento jurídico pátrio.
Nesta perspectiva, o princípio da dignidade da pessoa humana confere às pessoas, indistintamente, o direito de serem tratadas, na sociedade civil, de forma digna, com condições mínimas existenciais e de desenvolvimento de sua personalidade. Gonçalves (2013) afirma que o respeito à dignidade da pessoa humana é primordial fundamento constitucional orientador do substrato jurídico nacional, quando na defesa dos direitos da personalidade.
No tocante ao direito sucessório, tal princípio constitucional possui valor soberano, norteando as normas deste instituto, conservando, nas normas civis, valores como liberdade e igualdade, de modo a privilegiar os direitos provenientes da personalidade da pessoa humana.
2.2.2 Do Princípio de Saisine
A partir do exato momento da morte, ocorre a abertura da sucessão, transmitindo a herança, desde logo, aos herdeiros, por força do princípio da saisine.
Como dito, tal princípio teve sua origem nos primórdios do direito francês, como forma de reação ao sistema feudal. Por ocasião da morte do arrendatário das terras, a propriedade arrendada era “devolvida” ao senhor feudal, então arrendante, o que implicava a necessidade de que os herdeiros do arrendatário pagassem uma espécie de tributo feudal para que pudessem continuar a exercer a posse das referidas terras.
Como forma de evitar tal pagamento, criou-se a ficção de que o falecido, no momento de sua morte, transmitia a posse de todos os seus bens aos seus herdeiros. Assim, aqueles que viessem a suceder o arrendatário passavam a possuir os frutos e as rendas da sucessão desde o momento da morte.
Destaca-se que o princípio da saisine regula a sucessão hereditária a partir da lei vigente ao tempo da morte do titular da herança, não podendo uma lei nova disciplinar sucessão que teve sua abertura quando da vigência de lei anterior. Certo é que, aberta a sucessão, a herança se transmite imediatamente aos herdeiros do de cujus, passando, aqueles que lhe sucedem, a serem titulares das relações jurídicas estabelecidas pelo falecido.
2.2.3 Do Princípio da Indivisibilidade da Herança
A herança deve ser entendida como um todo unitário, isto é, uma universalidade de bens, direitos e obrigações, que até o momento da partilha deve ser considerada de modo universal, como uma verdadeira massa hereditária de titularidade de todos aqueles que sucederam ao seu titular.
As normas civis vigentes determinam que os direitos provenientes dos bens dispostos no acervo hereditário são indivisíveis até que seja realizada a partilha, devendo, até tal momento, serem disciplinadas pelas regras do condomínio, sendo ineficaz a cessão por um dos herdeiros sobre qualquer bem, a título singular, ou sem autorização judicial, nos termos dos arts. 1.791 e 1.793, §§ 2º e 3º, do Código Civil:
“Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros.
Parágrafo único. Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio.
(…)
Art. 1.793. O direito à sucessão aberta, bem como o quinhão de que disponha o co-herdeiro, pode ser objeto de cessão por escritura pública.
(…)
- 2º É ineficaz a cessão, pelo co-herdeiro, de seu direito hereditário sobre qualquer bem da herança considerado singularmente.
- 3º Ineficaz é a disposição, sem prévia autorização do juiz da sucessão, por qualquer herdeiro, de bem componente do acervo hereditário, pendente a indivisibilidade.”
Desta maneira, pendente a indivisibilidade do acervo hereditário, o co-herdeiro está autorizado a alienar ou a ceder tão somente o quinhão de que disponha, sendo vedada a transmissão de qualquer bem da herança, singularmente considerado.
Em razão deste condomínio que se estabelece entre os herdeiros até a partilha da herança, qualquer um deles tem a legitimidade para reclamar a universalidade da herança em face de terceiro, não sendo possível que este oponha ao herdeiro, em exceção, o caráter parcial de seu direito nos bens do acervo hereditário, conforme o art. 1.825 do Código Civil: “A ação de petição de herança, ainda que exercida por um só dos herdeiros, poderá compreender todos os bens hereditários“.
Ressalta-se, ainda, considerando as normas do condomínio e o direito de preferência, que o quinhão hereditário de direito do co-herdeiro não poderá ser cedido por ele a pessoa estranha do acervo sucessório na hipótese de outro co-herdeiro o quiser, tanto por tanto, podendo este depositar o preço e haver para si a quota cedida a estranho:
“Art. 1.794. O co-herdeiro não poderá ceder a sua quota hereditária a pessoa estranha à sucessão, se outro co-herdeiro a quiser, tanto por tanto.
Art. 1.795. O co-herdeiro, a quem não se der conhecimento da cessão, poderá, depositado o preço, haver para si a quota cedida a estranho, se o requerer até cento e oitenta dias após a transmissão.
Parágrafo único. Sendo vários os co-herdeiros a exercer a preferência, entre eles se distribuirá o quinhão cedido, na proporção das respectivas quotas hereditárias.“
Desta maneira, considerada a natureza universal da herança, é vedada ao co-herdeiro a cessão de bens considerados singularmente, exceto se houver autorização judicial, podendo, no entanto, ceder seu direito à sucessão hereditária, total ou parcialmente, por escritura pública, desde que respeitado o direito de preferência dos outros herdeiros, haja vista as regras do condomínio que devem ser observadas até a partilha da herança.
2.2.4 Do Princípio da Tutela Especial à Família
Este princípio encontra-se disposto pelo art. 226 da Constituição Federal: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado“.
Assim, é dever do Estado tutelar pela família e pelos direitos que dela decorrem, alcançando cada um de seus membros, garantindo, de maneira concreta, o princípio da dignidade da pessoa humana tratado anteriormente.
Gama (2008) aponta a especial proteção estatal da família: “Cabendo ao Estado não apenas prevenir atentados e violações contra a coesão familiar, mas também promover medidas positivas de modo a proporcionar a tutela especial a todas as famílias“.
Conclui-se, portanto, que, em razão da reconhecida importância da família pela Constituição, o Estado deve atuar de modo a zelar por sua conservação e manutenção. E, estando o direito sucessório necessariamente ligado ao âmbito familiar, deverá ser efetiva a atuação estatal para resguardar o direito de herança.
2.2.5 Do Princípio da Igualdade
Estritamente ligado também ao princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da igualdade, conforme Dias (2009), “(…) é consagrado enfática e repetidamente na Constituição Federal. Está no seu Preâmbulo como compromisso de assegurar a igualdade e a justiça. A igualdade é o primeiro dos direitos e das garantias fundamentais: todos são iguais perante a lei“.
Conforme o art. 226, § 5º, da Constituição Federal: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher“. Além disso, tal princípio revela-se a partir da igualdade reconhecida entre os filhos e entre companheiros e cônjuges principalmente no âmbito do direito de família e do direito sucessório.
2.3 Das Modalidades de Sucessão
A sucessão hereditária pode ocorrer tanto por força de lei quanto por ato de disposição de última vontade do de cujus, tratando-se, a primeira, da chamada sucessão legítima, e a segunda, por sua vez, de sucessão testamentária.
Tratando da presença de ambas as modalidades em um mesmo contexto sucessório, Gomes (2012) expõe como possibilidade para a referida coexistência a não disposição de todo o acervo hereditário em testamento, a desconsideração da quota-parte necessária aos herdeiros legítimos, a ocorrência de caducidade ou, ainda, a invalidade do testamento.
2.3.1 Da Sucessão Legítima
A sucessão legítima, conforme já mencionado, recebe tal denominação por decorrer da lei, mais especificamente dos arts. 1.829 a 1.856 do Código Civil de 2002, que indica as pessoas chamadas a suceder o autor da herança. Trata-se da chamada ordem de vocação hereditária, disposta no art. 1.829:
“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.”
Neste sentido, Tartuce (2013) nos ensina que tal ordem de vocação hereditária poderá ser aplicada em algumas situações e exemplifica: na hipótese em que o de cujus não deixar testamento, em que a lei substituirá a sua vontade; na hipótese em que o falecido deixar testamento dispondo apenas sobre parte de seu patrimônio, situação em que a parte do patrimônio não contemplada pelo ato de disposição de última vontade seguirá a ordem de vocação hereditária; e na hipótese em que seja declarada a nulidade ou a caducidade do testamento.
Assim, a sucessão legítima tem por fundamento o fato de que, se o falecido não faz testamento, formalizando a sua vontade no tocante à destinação que devem ter seus bens, significa que presume-se que a lei (a sucessão legítima, portanto) expressa a sua vontade. Conforme Flavio Tartuce (2013):
“Em outras palavras, presume-se a afetividade do falecido para com seus parentes, cônjuges e companheiros. A ordem de chamamento dos parentes, cônjuge ou companheiro do falecido decorre, em princípio, dessa presunção legal de afetividade.”
Assim, deve-se entender a ordem de vocação hereditária como uma ordem de exclusão. Isto porque a existência de herdeiros elencados primeiramente exclui o chamamento à sucessão dos que forem previstos após, na classe posterior. Além disso, no contexto de determinada classe de sucessores, aqueles de grau mais próximo excluem os de grau mais remoto.
Além disso, cumpra-se ressaltar a existência dos herdeiros necessários, que se distinguem dos herdeiros legítimos facultativos. Estes últimos são representados pelos colaterais até o quarto grau, na medida em que os primeiros são representados pelos descendentes, pelos ascendentes e pelo cônjuge sobrevivente, tratando-se, os herdeiros necessários, do respeito à chamada legítima, nos termos do art. 1.845 do Código Civil: “São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge“, sendo que “pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima” – art. 1.846 do CC.
Desta maneira, por respeito aos herdeiros necessários, também denominados como herdeiros legitimários ou forçados, reservada a sua quota no acervo hereditário (parte indisponível, portanto), a quota restante da herança (parte disponível) poderá ser objeto de disposição pelo testador, conforme tratado no tópico seguinte.
2.3.2 Da Sucessão Testamentária
A sucessão testamentária, por sua vez, tem por base a vontade do autor da herança, que se consubstancia por meio de um testamento ou de um codicilo. Nesta modalidade de sucessão, os sucessores, isto é, as pessoas indicadas pelo de cujus, podem ser denominados como legatários, por sucederem a título singular, ou como herdeiros, por sucederem a título universal.
Nas lições de Tartuce (2013), “o testamento é um negócio jurídico unilateral, personalíssimo e revogável, pelo qual o testador faz disposições de caráter patrimonial ou não, para depois de sua morte“. Neste sentido são ainda as normas do art. 1.857 do Código Civil:
“Art. 1.857. Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte.
- 1º A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento
- 2º São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado.”
Tratando-se de patrimônio, propriamente dito, como já mencionado anteriormente, havendo sucessores necessários, não está autorizado o disponente a testar ou legar a quota de reserva necessária da legítima àqueles que por sua vontade irão lhe suceder.
Tratando-se de disposições não patrimoniais, Zeno Veloso (2003, v. 21, p. 3) nos ensina:
“O reconhecimento de filiação, a deserdação, a reabilitação do indigno, a nomeação do tutor para filhos menores, de testamenteiro, a confissão a respeito de qualquer fato, dar instruções sobre o funeral, determinar sufrágios por almas, dispor de uma ou de várias partes do corpo para fins terapêuticos e revogar testamento anterior são disposições autônomas, não patrimoniais, embora alguma delas de reflexos patrimoniais.”
Quanto à caducidade do testamento, observa-se que tal instrumento tem a sua origem válida, porém, com o advento de uma causa posterior, torna-se ineficaz. Já quando ocorre a declaração de invalidade, porém, o testamento, desde a sua origem, é eivado de invalidade diante do desrespeito aos requisitos formais de sua elaboração, ou mesmo daqueles requisitos referentes à validade do negócio jurídico.
Acerca da declaração de nulidade do testamento, Sílvio de Salvo Venosa (2013, p. 244) nos ensina:
“Os campos da existência e da validade no testamento estão muito próximos, porque o resultado que o ordenamento lhes atribui é o da invalidade. É nulo o testamento (logo o negócio jurídico não vale), tanto se feito por escritura pública quanto se feito pela forma pública perante somente quatro testemunhas, número insuficiente no sistema de 1916. Ou com uma única testemunha no sistema atual. Como a vontade testamentária deve vir resguardada pela solenidade e pelas formas da lei, sem elas o testamento não vale: é nulo. Essas nulidades do ato testamentário também são regidas pelas regras gerais.”
Ainda no tocante aos atos de disposição de última vontade, há a figura do codicilo, que assim como o testamento tem por objeto instrumentalizar a vontade do de cujus quanto à destinação de seus bens, mas se difere por ser um ato simplificado para o qual a lei não exige muitas solenidades, haja vista seu objeto ser considerado como de menor importância para o seu titular e para aqueles que venham a lhe suceder. Neste sentido trata o art. 1.881 do Código Civil:
“Art. 1.881. Toda pessoa capaz de testar poderá, mediante escrito particular seu, datado e assinado, fazer disposições especiais sobre o seu enterro, sobre esmolas de pouca monta a certas e determinadas pessoas, ou, indeterminadamente, aos pobres de certo lugar, assim como legar móveis, roupas ou jóias, de pouco valor, de seu uso pessoal.“
No que diz respeito a esta ideia de pequeno valor dos objetos que podem ser destinados a codicilo, Veloso (2006, p. 1.576) explica que
“há que ser feito um balanço, uma comparação entre o valor da disposição contida no codicilo com o montante dos bens deixados pelo falecido. O que é muitíssimo e quase tudo para um homem de poucas posses pode não significar nada e coisa alguma para um milionário.”
Conforme Tartuce (2013), podem ainda ser objetos do codicilo sufrágios por intenção da alma do codicilante; nomeação e substituição de testamenteiro; e perdão do indigno.
Cumpra-se destacar que o testamento e o codicilo podem conviver em um mesmo contexto sucessório, prevalecendo o princípio da autonomia entre os dois institutos.
Ressalta-se, por fim, que desde o direito romano, conforme a abordagem histórica realizada no presente estudo, a vontade do falecido tende a prevalecer sobre as disposições legais (desde que se respeitem os limites expressos pelas normas vigentes). Trata-se do chamado favor testamenti.
Isto decorre justamente por tratar-se de direitos decorrentes da pessoa do autor da herança, o que, por respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, deve fazer prevalecer a vontade expressa do falecido, em detrimento da vontade presumida pela lei.
2.4 Da Natureza Jurídica da Herança
Por força do art. 80 do Código Civil, ainda que a herança seja composta apenas de bens móveis, a sucessão aberta trata-se de um bem imóvel:
Assim, por ser bem imóvel, sob pena de nulidade absoluta do ato, a cessão (gratuita ou onerosa) da quota de que disponha o co-herdeiro exige escritura pública, nos termos do art. 1.793 do Código Civil, além da outorga do cônjuge do disponente na hipótese de o regime de casamento não ser de separação absoluta, conforme o art. 1.647 do Código Civil:
“Art. 1.793. O direito à sucessão aberta, bem como o quinhão de que disponha o co-herdeiro, pode ser objeto de cessão por escritura pública.”
“Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta:
I – alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis;
II – pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos;
III – prestar fiança ou aval;
IV – fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação.”
Além disso, a herança constitui a chamada universalidade de direito, da qual o art. 91 do Código Civil é expresso: “Art. 91. Constitui universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico“.
Portanto, é indivisível até o momento de sua partilha, tratando-se de verdadeiro condomínio. Neste sentido é o art. 1.791 do Código Civil:
“Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros.
Parágrafo único. Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio.”
Conforme explica Washington de Barros Monteiro (2003, p. 34),
“o herdeiro tem direito sobre uma parte ideal do acervo hereditário, que só na partilha será definido e individualizado. Enquanto se processa o inventário dos bens deixados, ativos e passivos, essa massa deve ficar sob a administração de alguém, o administrador provisório e depois o inventariante, que velará pela sua guarda e manutenção até que, pela partilha, seja objeto de divisão, concretizando-se o quinhão de cada um, que receberá, então, os bens que lhe tocaram.”
Feita a análise acerca do instituto sucessório, seu linear histórico, seus princípios norteadores, os limites impostos no tocante das modalidades de sucessão e a natureza jurídica da herança, conclui-se pela necessidade de se estabelecerem, com efetividade, normas que tutelem tal direito de modo a garantir o que a lei dispõe.
Nestes termos, serão investigados o novo contexto social ao qual se insere o direito civil, principalmente no que toca às relações sociais que passaram a se estabelecer, e o reflexo delas no direito sucessório.
3 A Internet e os Direitos da Personalidade
3.1 A Revolução da Internet na Vida Globalizada
Com o advento de uma rede mundial interligada de computadores, permitiu-se uma interação de expansão inimaginável entre os usuários, tanto no que diz respeito à elaboração, à compra e ao armazenamento de arquivos digitais, seja qual for sua natureza, como no que diz respeito a relacionamentos virtuais propriamente ditos.
Torna-se imprescindível o entendimento acerca dos referidos dados digitais, para que se observe seu correto enquadramento no âmbito do direito das sucessões, considerando ainda a possível extensão dos direitos da personalidade sob o aspecto da herança digital.
3.2 Do Acervo Digital
Conforme estudado quando da abordagem teórica do instituto sucessório, com a morte do titular do patrimônio ocorre a abertura da sucessão, legitimando aqueles chamados a suceder, por lei ou por testamento, para que substituam a titularidade das relações jurídicas estabelecidas pelo de cujus.
Desta maneira, torna-se necessária a verificação acerca da possibilidade de integração dos dados digitais ao acervo patrimonial hereditário do falecido. Neste sentido, no tocante à natureza dos bens jurídicos, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2014) asseveram que tais bens são aqueles que integram o objeto das relações jurídicas, podendo ou não ser dotados de conteúdo economicamente valorável.
Venosa (2013), no entanto, afirma que o patrimônio transmissível, portanto, contém bens materiais ou imateriais, mas sempre coisas avaliáveis economicamente.
Ainda sob o prisma de se investigar os bens que compõem o acervo hereditário, resta necessária a diferenciação quanto aos bens materiais e imateriais. Fiuza (2014) conceitua as referidas classificações, atribuindo aos bens materiais a sua existência em forma física e aos bens imateriais a sua existência de forma abstrata.
Desta maneira, infere-se que os dados digitais são abrangidos pelo conceito de bens imateriais, visto que não contam com existência física, material, encontrando-se apenas na esfera virtual, existentes tão somente no âmbito virtual.
Outro aspecto importante acerca da natureza dos dados digitais é quanto a sua economicidade, tema que virá à baila nos tópicos seguintes.
3.3 Da Natureza dos Bens Digitais
Como dito, um dos pressupostos da sucessão é a existência de patrimônio ativo e/ou passivo do autor da herança. E, para que seja considerado, o patrimônio deve ser auferível de valor econômico. Mas, na sociedade atual, o que poderia ser entendido como bem economicamente valorável?
Com o passar do tempo, o valor dos bens se modificou. Antes, que somente se verificava no plano patrimonial os bens materiais, tangíveis, atualmente, principalmente a partir da evolução tecnológica, passaram a ser considerados bens de naturezas distintas.
Primeiramente, é importante que se faça uma análise no contexto sociológico nacional a partir dos anos 1990. É incontestável o fato de que as pessoas têm se relacionado cada vez mais a partir da internet, principalmente por meio das redes sociais. Algumas pessoas utilizam-se dessas redes para divulgar seu cotidiano, para manter contato com familiares, amigos distantes… Outras pessoas, porém, utilizam desta ferramenta (poderosa) para proveito financeiro. Comerciantes, blogueiras, youtubers, artistas em geral, alcançam, a cada post, maior número de pessoas. Expectadores que pedem (muitas vezes desesperadamente) por mais um tutorial de maquiagem, por mais uma música, por mais um trecho literário, por mais um “capítulo” da vida de seus ídolos.
Neste sentido, após perceber o quanto as redes sociais em geral têm estado presentes em nosso cotidiano, sendo a elas destinada grande parcela do tempo e do interesse das pessoas, e por ser o direito uma ciência social que para atender aos anseios da sociedade deve se adaptar às novas realidades, despertou-se o interesse em investigar a possibilidade de se reconhecer o direito de herança decorrente do “patrimônio digital“, como um bem economicamente valorável, à luz dos fundamentos jurídicos e, sobretudo, dos princípios norteadores das normas civis vigentes em nosso ordenamento.
4 Da Personalidade Civil e da Herança Digital
Como já mencionado, de acordo com o Código Civil, a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida e termina com a morte. É previsto expressamente, ainda, serem os direitos de personalidade intransmissíveis e irrenunciáveis.
Ora, se a morte marca o fim da personalidade civil e se não é reconhecido expressamente pelo ordenamento jurídico o conteúdo virtual das redes sociais em geral como herança, qual será a garantia acerca do patrimônio virtual da pessoa, após a sua morte? Seria uma hipótese de extensão da personalidade civil ao de cujus, tendo como fundamento o reconhecimento da herança digital? Tais direitos podem ser tutelados, eficientemente, pelas normas jurídicas vigentes?
Quanto aos direitos da personalidade, que são tratados na Parte Geral do Código Civil de 2002 no Capítulo II do Título I do Livro I, e conforme os ensinamentos de Caio Mário da Silva Pereira (2014, p. 183): “A personalidade, como atributo da pessoa humana, está a ela indissoluvelmente ligada. Sua duração é a da vida. Desde que vive e enquanto vive, o ser humano é dotado de personalidade“.
No tocante ao caráter intransmissível da personalidade civil, conforme Farias e Rosenvald (2014):
“Os direitos da personalidade são vitalícios, extinguindo-se, naturalmente, com a morte do titular, confirmando o seu caráter intransmissível. Falecendo, pois, o titular de um direito da personalidade, não haverá transmissão, extinguindo-se, automaticamente, a relação jurídica personalíssima.”
No entanto, embora a morte determine a extinção da personalidade civil da pessoa, deve se considerar, neste estudo, os atos praticados em vida, sobretudo na esfera virtual, e que geram efeitos mesmo após a morte do sujeito. Os e-mails, os perfis nas redes sociais, os canais no youtube, etc., sites que em vida são diariamente atualizados pelo titular e cada vez mais acessados por aqueles que se identificam com o conteúdo exibido, e que geram efeitos inclusive financeiros, poderiam ser considerados como uma espécie de herança? A herança digital?
Inicialmente, há que se fazer uma importante distinção entre as pessoas que se utilizam da esfera virtual tão somente como uma exteriorização de sua intimidade e as pessoas que se utilizam destes meios para proveito financeiro.
No primeiro caso, as pessoas aderem às redes sociais, por exemplo, para manter contato com amigos e familiares, para compartilhar, com estes, seus momentos, a partir da postagem de fotos, vídeos, etc.
Por outro lado, estão cada vez mais presentes em nossos meios de comunicação aqueles que fazem da internet sua ferramenta profissional. Por meio das redes sociais, a divulgação de produtos, marcas, lojas e serviços atinge número cada vez maior de consumidores. Além disso, as pessoas com forte influência midiática e as que num “piscar de olhos” ganham seu espaço nas redes sociais, a partir do crescente número de seguidores, compartilham suas opiniões e experiências a respeito das mais diversas áreas de sua vivência.
No que diz respeito às pessoas que possuem redes sociais com conteúdo exclusivamente pessoal, há entendimentos no sentido de que:
“Ao falecer, aquele perfil não poderia ser transmitido a herdeiros (intransmissibilidade), reclamando sua exclusão automática ou, como ocorre em algumas redes, ser transformado em memorial, bloqueando o acesso à conta virtual do falecido, jamais transferindo a titularidade daquele perfil a outra pessoa.” (SÁ; MOUREIRA; ALMEIDA, 2013, p. 108)
Já com relação aos denominados “bens virtuais economicamente valoráveis“, aqueles, portanto, auferíveis a partir da utilização das redes sociais como ferramenta de proveito econômico:
“No cenário atual, o usuário investe num patrimônio que não pode ser transferido aos seus herdeiros. Há, no entanto, interesse dos sucessores de acesso aos conteúdos desses bens de valor patrimonial e sentimental como legado. Em alguns casos há ainda necessidade de acesso a esses bens digitais para fazer prova em processo ou até mesmo para prosseguimento de uma empresa que tinha funcionamento apenas na web.”
No que se refere à possibilidade de extensão da personalidade civil, corroborando as considerações acima quanto à intransmissibilidade, tem-se o seguinte entendimento:
“Seja no meio real ou no meio virtual, é impossível prorrogar a existência de direitos da personalidade para depois da morte, de modo que os perfis em rede sociais e contas de e-mails deixados ativos não podem ser transmitidos aos herdeiros, salvo se houver manifestação expressa deixada pelo falecido nesse sentido, principalmente no que se refere ao legado virtual com valor econômico.” (SÁ; MOUREIRA; ALMEIDA, 2013, p. 112)
Conforme Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2011), “os direitos da personalidade são inatos e permanentes, acompanhando a pessoa desde a primeira manifestação de vida até seu passamento. Sendo inerentes à pessoa, extinguem-se, em regra, com o seu desaparecimento“.
Verifica-se, portanto, o caráter intransmissível dos direitos da personalidade que se extinguem conjuntamente com a vida, a partir do evento morte. Neste sentido, cumpra-se destacar o legado virtual com e sem valor econômico, a fim de que se possa inferir sua correta destinação a partir da abertura da sucessão.
4.1 Do Legado Virtual sem Valor Econômico
Com o falecimento do titular, seu perfil nas redes sociais, principalmente naquelas protegidas pelo acesso a partir de login e senha, permanece ativo, o que gera uma situação desconfortável no meio familiar, em razão de se tornar uma maneira de sentir a presença do de cujus, tendo acesso aos seus últimos momentos em vida, seus últimos pensamentos, suas últimas vontades e inspirações…
Neste sentido, a tendência das pessoas próximas ao falecido é a de buscarem deletar o perfil ativo ou de habilitarem-se na condição de gestores dos referidos cadastros.
Nesse caso, tratando-se de um legado virtual que exteriorize unicamente a intimidade do sujeito, surge o seguinte problema: o que fazer com seus dados pessoais nas redes sociais após a sua morte? Seu direito à intimidade em relação ao seu conteúdo virtual permanece mesmo após a sua morte, o que implica a extensão da sua personalidade civil? Ou, tendo em vista a extinção da personalidade civil, a privacidade do sujeito pode ser revelada aos seus familiares?
A análise deve ser feita considerando-se que o perfil virtual no âmbito deste tópico é, como dito, decorrência única da exteriorização da intimidade do titular. Tendo em vista este aspecto, algumas redes sociais, como Twitter e Facebook, criaram um formulário a partir do qual familiares ou amigos podem formular o pedido de remoção do perfil do falecido, a partir da comprovação da morte deste. Os referidos sites possibilitam à família ainda a manutenção do perfil virtual ativo, transformando-o, porém, em memorial, tornando-o disponível somente aos amigos já confirmados quando da morte, sendo removidas informações acerca de atualizações e de contato e impossibilitando o login na referida conta.
Em 2009, o site Facebook criou a possibilidade de os familiares e amigos do titular do perfil preservarem seu mural permitindo a publicação de mensagens daqueles que quando da morte já eram inscritos, em memória do falecido. Porém, como com a transformação da conta em memorial resta impossibilitado o login, não é possível a filtragem das publicações, nada se podendo fazer a respeito de mensagens e postagens ofensivas ou inconvenientes.
Existem, no entanto, sites que oferecem o serviço dos chamados cofres virtuais, em que ao titular do perfil é facultado o armazenamento de um testamento, no qual é manifestado o interesse do falecido ao que deva ser feito de sua conta, senhas e demais conteúdos virtuais. O site www.brevitas.com.br , por exemplo, possibilita o registro de senhas de e-mails e de redes sociais de modo que amigos e familiares possam administrar o legado virtual. É possível ainda, aos inscritos do Facebook e do Twitter, a programação de mensagens de “despedida“, como postagem de última vontade.
Neste sentido, reconhecendo o caráter personalíssimo dos direitos provenientes da pessoa do titular, externalizados por atos de sua vontade, quando, ao tempo de sua manifestação, possuía capacidade de fato e de direito para tanto, deve-se concluir pela intransmissibilidade dos direitos da personalidade como fundamento para o reconhecimento do legado digital auferível sem fim econômico.
Com isso quero dizer que os perfis digitais utilizados como mecanismo de comunicação do titular e de compartilhamento de aspectos da intimidade deste, sem que com isso se busque a aferição de vantagem econômica, não podem ter a destinação que os familiares ou amigos optarem.
Neste sentido são as lições de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2011, p. 214):
“O elemento fundamental do direito à intimidade, manifestação primordial do direito à vida privada, é a exigibilidade de respeito ao isolamento de cada ser humano, que não pretende que certos aspectos de sua vida cheguem ao conhecimento de terceiros.”
Portanto, não se infere como razoável que após a morte continue ativo o perfil virtual do titular, sem que esse fim tenha sido fruto de sua expressa manifestação de vontade, possibilitando a administração de sua conta por pessoas que ainda sejam próximas e queridas do de cujus, o que pode não constituir a melhor opção para a manutenção da garantia de seus direitos à intimidade.
4.2 Da Possibilidade de o Legado Virtual sem Valor Econômico Ser Regulado por Testamento Virtual e por Codicilo
Conforme visto, o codicilo é meio idôneo para que o de cujus instrumentalize a sua vontade acerca da destinação a ser dada aos seus bens considerados de menor importância (o que deve ser observado concretamente), como móveis, roupas, joias não muito valiosas, de seu uso pessoal.
Ora, tratando-se de um legado virtual que exteriorize a intimidade do sujeito, isto é, dados pessoais em redes sociais, e-mails, arquivos digitais de armazenamento, dentre inúmeros outros que traduzem unicamente seus aspectos pessoais, poderia o codicilo instrumentalizar a vontade da pessoa no sentindo de dar a finalidade que melhor preserve a sua liberdade, dignidade e privacidade, quando de sua morte.
Os direitos personalíssimos objetivam tutelar a dignidade da pessoa humana diante dos valores da sociedade, tidos como essenciais, o que é protegido constitucionalmente, conforme o art. 5º, inciso X, da Constituição Federal:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”
Há também, como já tratada, a possibilidade de o sujeito fazer o seu testamento virtual. Algumas empresas de serviços de tecnologia, como o Google Inc., apresentam alternativas àqueles que pretendam testar os dados armazenados:
“Ninguém gosta de pensar muito sobre a morte, ainda mais sobre a própria. Mas planejar o que acontecerá depois que você se for é muito importante para as pessoas que ficam para trás. Então, lançamos um novo recurso que facilita informar ao Google a sua vontade quanto aos seus bens digitais, quando você morrer ou não puder mais usar a sua conta.
Trata-se do gerenciador de contas inativas: não é lá um nome fantástico, mas, acredite, as outras opções eram ainda piores. O recurso pode ser encontrado na página de configurações da conta do Google. Você pode nos orientar com relação ao que fazer com as suas mensagens do Gmail e dados de vários outros serviços do Google se a sua conta se tornar inativa por qualquer motivo.
Por exemplo, você pode escolher que seus dados sejam excluídos depois de três, seis, nove ou 12 meses de inatividade. Ou ainda pode selecionar contatos em quem você confia para receber os dados de alguns ou todos os seguintes serviços: +1s; Blogger; Contatos e Círculos; Drive; Gmail; Perfis do Google+, Páginas e Salas; Álbuns do Picasa; Google Voice e YouTube. Antes que os nossos sistemas façam qualquer coisa, enviaremos uma mensagem de texto para o seu celular e e-mail para o endereço secundário que consta nos seus settings da conta.
Esperamos que este novo recurso ajude no planejamento da sua pós-vida digital e proteja a sua privacidade e segurança, além de facilitar a vida dos seus entes queridos depois da sua morte.” (Google Brasil, 2015)
Entretanto, na ausência ou na falta da opção por estes cofres virtuais, considerando que os bens digitais sem valor econômico não são passíveis de tutela a partir da transcendência dos direitos da personalidade civil, tendo em vista ainda se tratarem de dados de menor importância no que toca ao acervo patrimonial hereditário, a solução para resguardar a intimidade, a privacidade e a dignidade do de cujus, quando da destinação destes bens, seria a sua manifestação de vontade por meio de codicilo, que sequer o exigirá solenidades muito especiais.
4.3 Do Legado Virtual com Valor Econômico
Por outro lado, aqueles dados digitais que podem ser economicamente valorados, tendo utilidade patrimonial, tratam-se de arquivos e serviços que podem se encontrar disponíveis nos mais variados sites e redes sociais. Como dito, cada vez mais as pessoas utilizam de mecanismos virtuais para tornar públicas suas atividades profissionais, alcançando número de pessoas cada vez maior, e para adquirir arquivos como filmes, livros, etc.
Canais no YouTube e perfis no Facebook e no Instagram em que são depositados frequentemente fotos e vídeos de música, moda, entrevistas, comentários políticos, dentre uma infinidade de outros direcionamentos, com o crescente número de seguidores que se identificam com o conteúdo exibido, atingem uma popularidade e uma visibilidade cada vez maior no meio mercantil.
E quando ocorre a morte dos titulares de tais perfis, como tratar os dados lá arquivados? Devem ser mantidos os conteúdos digitais, sendo o produto econômico transmitido aos seus herdeiros do mesmo modo como ocorre nos termos das normas vigentes do Código Civil no tocante ao direito sucessório?
Constata-se que o conteúdo economicamente valorável do acervo digital integra a definição de patrimônio, devendo, por essa razão, integrar, quando da morte do titular, o todo unitário da herança.
Contudo, em que pese a consideração dos referidos bens como juridicamente possíveis de se integrar à massa hereditária, não há que se falar, também neste caso, em extensão da personalidade civil para a referida tutela.
A transmissão do patrimônio digital do titular aos seus herdeiros revela justamente o fim da existência da pessoa com a morte. No entanto, embora o legado virtual com valor econômico possa ser tutelado pelas normas vigentes do direito sucessório, tal matéria anseia por maior concretismo jurídico, vez que, em razão da falta de regulamentação expressa, resta prejudicada a imprescindível segurança jurídica. O capítulo seguinte fará a abordagem deste tema.
5 As Normas Civis Vigentes e a Sucessão dos Bens Virtuais
O direito, como ciência social que é, deve evoluir em conjunto com as necessidades sociais. Não há mais que se falar em critérios restritos de reconhecimento de bens digitais e de tutela desses direitos, sob pena de restar prejudicado o direito fundamental à herança, consagrado pela Constituição Federal.
O ordenamento jurídico brasileiro deve resguardar os direitos sucessórios referentes aos bens digitais economicamente valoráveis adquiridos durante a vida do falecido, assim como assegurar o respeito à intimidade e a transcendência dos direitos de personalidade quanto aos bens digitais que não revelem a aferição de proveito financeiro. Porém, não há dentre as nossas leis regulamentação quanto a tais direitos.
Há, no entanto, o Projeto de Lei nº 4099-A, de iniciativa do Deputado Jorginho Mello, encaminhado ao Senado Federal, que altera o art. 1.788 do Código Civil, para dispor sobre a sucessão dos bens e das contas digitais do autor da herança, e o Projeto de Lei nº 4.847, de iniciativa do Deputado Marçal Filho, que objetiva acrescentar ao Código Civil os arts. 1.797-A, 1.797-B e 1.797-C, tendo a Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania já apreciado a constitucionalidade e o mérito dos referidos projetos, nos seguintes termos:
“O PL nº 4.099, de 2012, e o PL nº 4.847/2012 não afrontam o ordenamento jurídico nem a técnica legislativa. Quanto ao mérito, não há lei que trate sobre a sucessão de ‘bens virtuais’ do de cujus aos herdeiros da herança. Assim, a aprovação da presente proposição atende aos pleitos dos tempos modernos e atualiza a legislação. É sabido que houve crescimento nas aquisições na internet de arquivos digitais de fotos, filmes, músicas, e-books, aplicativos, agendas de contatos, entre outros; e a utilização das contas das redes sociais. Neste sentido, somos pela aprovação do PL nº 4.099, de 2012, e do PL nº 4.847/2012, pois visam à pacificação dos conflitos sociais. Diante do exposto, voto pela constitucionalidade, juridicidade, boa técnica legislativa e, no mérito, pela aprovação dos PLs ns. 4.099/2012 e 4. 847/2012.”
Para Zeno Veloso, Diretor Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), o Projeto de Lei nº 4.099-A é compatível com a nova realidade virtual: “Já não digo nem do tempo futuro, mas do tempo presente. Acho a matéria do Projeto importante e esses dados devem, sim, ser abertos, conferidos, transmitidos, informando os herdeiros“, disse. Entretanto, segundo Zeno Veloso, deve-se ter cuidado na verificação de quem está solicitando os dados, “se é real e efetivamente herdeiro do falecido” (IBDFAM, 2013).
Sobre o enfoque da herança patrimonialmente reconhecida, adverte:
“A herança entra no conceito de patrimônio. Deve ser vista como o patrimônio do de cujus. Definimos o patrimônio como o conjunto de direitos reais e obrigacionais, ativos e passivos, pertencentes a uma pessoa. Portanto, a herança é o patrimônio da pessoa falecida, ou seja, do autor da herança.” (VENOSA, 2011)
Neste sentido, os referidos Projetos Legislativos objetivam sanar a lacuna relacionada ao acervo digital de pessoa falecida, levando-se em consideração o fato de que o direito deve se adequar às novas realidades sociais, garantindo, com efetividade e com segurança jurídica, os direitos constitucionalmente previstos.
5.1 Do Projeto de Lei nº 4.099-A/2012
O referido Projeto de Lei objetiva alterar o art. 1.788 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), a fim de dispor sobre a sucessão dos bens e das contas digitais do autor da herança:
“Art. 2º O art. 1.788 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:
‘Art. 1.788. (…)
Parágrafo único. Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança.’”
A justificação para a apresentação do referido Projeto, conforme o Deputado Jorginho Mello, tem fundamento no fato de que, conforme já mencionado nesta oportunidade, deve o direito acompanhar as mutações sociais, aperfeiçoando-se e tornando-se efetivo no que diz respeito à resolução de conflitos.
Permeia o fato de que o direito civil precisa ajustar-se às novas realidades geradas pela tecnologia digital, que agora já é presente em grande parte dos lares. Têm sido levadas aos Tribunais situações em que as famílias de pessoas falecidas desejam obter acesso a arquivos ou contas armazenadas em serviços de internet e as soluções têm sido muito díspares, gerando tratamento diferenciado e, muitas vezes, injustos em situações assemelhadas. É preciso que a lei civil trate do tema, como medida de prevenção e pacificação de conflitos sociais. O melhor é fazer com que o direito sucessório atinja essas situações, regularizando e uniformizando o tratamento, deixando claro que os herdeiros receberão na herança o acesso e total controle dessas contas e arquivos digitais. Cremos que a medida aperfeiçoa e atualiza a legislação civil, razão pela qual conclamamos os nobres pares a aprovarem esta proposição.
Sob o enfoque de adequação das normas civis vigentes para a tutela do direito à herança digital, portanto, trata o referido Projeto Legislativo. Busca-se, sobretudo, a uniformização das decisões judiciais acerca da matéria, que, com a falta de disposições expressas no ordenamento jurídico, são díspares, gerando grande insegurança jurídica.
5.2 Do Projeto de Lei nº 4.847/2012
Propõe o Projeto de Lei nº 4.847/2012, por sua vez, estabelecer normas a respeito da herança digital, acrescentando ao Código Civil de 2002 o Capítulo II-A e os arts. 1.797-A a 1.797-C:
“Capítulo II-A
Da Herança Digital
Art. 1.797-A. A herança digital defere-se como o conteúdo intangível do falecido, tudo o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual, nas condições seguintes:
I – senhas;
II – redes sociais;
III – contas da Internet;
IV – qualquer bem e serviço virtual e digital de titularidade do falecido.
Art. 1.797-B. Se o falecido, tendo capacidade para testar, não o tiver feito, a herança será transmitida aos herdeiros legítimos.
Art. 1.797-C. Cabe ao herdeiro:
I – definir o destino das contas do falecido;
- a) transformá-las em memorial, deixando o acesso restrito a amigos confirmados e mantendo apenas o conteúdo principal ou;
- b) apagar todos os dados do usuário ou;
- c) remover a conta do antigo usuário.”
O Deputado Marçal Filho, em sua justificação, se posicionou no sentido de que todos os dados passíveis de arquivo virtual se inserem no conceito de patrimônio, devendo, portanto, ser inseridos no acervo hereditário do titular que falece, sendo as normas brasileiras precárias na resolução de conflitos que envolvam direitos desta natureza, e apresenta uma estatística no direito comparado:
“Tudo o que é possível guardar em um espaço virtual – como músicas e fotos – passa a fazer parte do patrimônio das pessoas e, consequentemente, da chamada ‘herança digital’. O Caderno TEC da Folha de S. Paulo trouxe uma reportagem sobre herança digital a partir de dados de uma pesquisa recente do Centro para Tecnologias Criativas e Sociais, do Goldsmiths College (Universidade de Londres). O estudo mostra que 30{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} dos britânicos consideram suas posses on-line sua ‘herança digital’ e 5{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} deles já estão incluindo em testamentos quem herdará seu legado virtual, ou seja, vídeos, livros, músicas, fotos e e-mails. No Brasil, esse conceito de herança digital ainda é pouco difundido. Mas é preciso uma legislação apropriada para que as pessoas, ao morrerem, possam ter seus direitos resguardados a começar pela simples decisão de a quem deixar a senha de suas contas virtuais e também o seu legado digital. Quando não há nada determinado em testamento, o Código Civil prioriza familiares da pessoa que morreu para definir herdeiros. Dessa forma, o presente Projeto de Lei pretende assegurar o direito dos familiares em gerir o legado digital daqueles que já se foram.”
Corrobora o referido Projeto de Lei, portanto, o entendimento abordado no presente trabalho, na medida em que se conclui pela fragilidade do ordenamento jurídico brasileiro no tocante à tutela dos direitos de herança provenientes do patrimônio digital, que não possui um reconhecimento expresso e um direcionamento objetivo para cuidar desta matéria, além de se verificar o entendimento de que devem ser considerados como bens patrimonialmente reconhecidos os dados digitais que guardem relação com o arquivo ou com a exposição virtual de conteúdos de cunho comercial.
6 Conclusão
Considerando os aspectos abordados acerca da sucessão hereditária e da personalidade civil, conclui-se pela intransmissibilidade dos direitos decorrentes da pessoa do de cujus, não se admitindo a hipótese de extensão da personalidade civil como fundamento para o reconhecimento da herança digital, o que ocorre pelo caráter patrimonial que possui os bens digitais economicamente valoráveis, constituindo o próprio fundamento da transmissão da universalidade de direito decorrente da morte, para o acervo hereditário.
Constata-se que os dados digitais, que deságuam nos direitos da personalidade, aqueles não economicamente apreciáveis, não podem ser objeto de herança, porquanto personalíssimos. Morrem com a pessoa. Contudo, a partir da morte do titular de tais direitos, o que fazer com seus dados? É possível protegê-los?
Verificou-se que os dados digitais não economicamente valoráveis, que apenas externalizam os atos de vontade do de cujus, quando da utilização de blogs, e-mails e redes sociais em geral para compartilhar sua vivência e para comunicar-se com outras pessoas, são de caráter extrapatrimonial, devendo o direito resguardar a intimidade do de cujus, não se admitindo que familiares ou amigos tenham acesso às suas contas. Para tutelar estes direitos, portanto, na falta de manifestação expressa de vontade do sujeito por testamento virtual ou por codicilo, as referidas contas devem ser excluídas imediatamente a partir da comprovação da morte do titular, como forma de resguardar os seus direitos à intimidade e à dignidade.
Por outro lado, aqueles dados economicamente apreciáveis devem ser reconhecidos como herança, assim como os outros bens que compõem o acervo hereditário. Constata-se, porém, que em relação ao tema há verdadeira lacuna nas normas civis vigentes, não havendo expressa disposição acerca da herança digital, sendo a análise da matéria casuística, o que demonstra enorme insegurança jurídica, estando em risco o direito fundamental à herança.
Sob o enfoque da normatização, investigando-se os dois Projetos de Lei, quais sejam os de ns. 4.099-A e 4.847, ambos de 2012, que, se aprovados pelo Senado, alterarão o Código Civil vigente passando a dispor expressamente sobre o reconhecimento da herança digital e sobre as normas a respeito desta, conclui-se que se trata de imprescindível direcionamento objetivo acerca do tema, visto que implicará a necessária segurança jurídica quanto aos direitos provenientes da sucessão dos bens digitais economicamente valoráveis, efetivando, de fato, o direito à herança destes dados patrimonialmente apreciáveis.
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