HABILITAÇÃO PROCESSUAL DE HERDEIROS E PRESCRIÇÃO: DO TEMA REPETITIVO 1.254/STJ
A 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, por acórdão de afetação à sistemática dos recursos repetitivos, publicado em maio do ano passado pela Corte Especial sob a relatoria do ministro Humberto Martins, apreciará o Tema nº 1.254, que trata da intrincada questão relativa aos limites temporais para que os herdeiros ou sucessores (a depender da circunstância material de cada caso concreto) prossigam incidentalmente em processo instaurado por pessoa falecida no curso da tramitação.
Embora os casos concretos afetados refiram-se a requerimentos de habilitação instaurados já em módulo de cumprimento de sentença, o tema repetitivo propõe a ampliação do debate para a habilitação sucessória nos processos em geral, relativos às fases tanto cognitiva quanto executiva, com a seguinte redação: “definir se ocorre ou não a prescrição para a habilitação de herdeiros ou sucessores da parte falecida no curso da ação”.
A afetação em caráter mais amplo — considerado inclusive o expressivo impacto social da suspensão nacional de todos os processos individuais ou coletivos versados sobre a matéria (artigo 1.037, II, do Código de Processo Civil) — justifica-se pela consabida autonomia das pretensões condenatória e satisfativa, nos termos do Enunciado nº 150 da Súmula do Supremo Tribunal Federal: “prescreve a execução no mesmo prazo de prescrição da ação”. Outra premissa do julgamento afetado refere-se à circunstância de o falecimento ocorrer no curso do processo, pois é notório que a questão da anterioridade do óbito à demanda remete a outra problemática, relativa à identificação dos próprios pressupostos de existência ou de validade do processo, cujo debate não se adentra porque exorbitaria do presente recorte temático.
A proposta de afetação (ProAfR), confirmada pela Corte Especial, resulta da seleção de três recursos paradigmáticos, representativos da controvérsia (RRC), quais sejam, os Recursos Especiais (REsp) nº 2.034.210/CE, 2.034.211/CE e 2.034.214/CE. Nos três casos, originários do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), os recorrentes são a Fazenda Pública federal, entes da administração pública indireta: a Universidade Federal do Ceará (UFC), no primeiro recurso, e o Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs), nos segundo e terceiro casos.
Dada a relevância jurídica e o impacto socioeconômico do tema, a União requereu seu ingresso como amicus curiae em 21 de março de 2025 (ora pendente de apreciação) e, como não haveria de ser diferente, defende a “prescritibilidade” da “pretensão de habilitação”, sob a justificativa de que “o prazo para exercício da pretensão condenatória ou executória continua correndo mesmo com o óbito da parte”, conforme argumenta in litteris em seu requerimento de ingresso no feito. O argumento da União supõe amparo no artigo 313, I, do CPC ao alegar que a única consequência legal advinda do óbito seria a suspensão do processo, “e não o exercício do direito material por ele perseguido”. Em seu requerimento de intervenção, a postulante não distingue sequer a existência de marco inicial (termo a quo) para a contagem do pretenso prazo incidental para habilitação, já que defende a priori a “continuidade” do lapso prescricional independentemente do óbito.
Em outras palavras, se o óbito constituísse — pela tese levantada pela União — um irrelevante jurídico para o prazo prescricional, o falecimento advindo após cinco anos de instauração do processo contra a Fazenda Pública (quinquênio estabelecido pelo artigo 1º do Decreto nº 20.910/1932) inviabilizaria inclusive a assunção de titularidade do direito pelos respectivos sucessores. Esse argumento inicial suscitado pela União, que relega o fato jurídico “óbito” a um plano insignificante sob a perspectiva da sucessão causa mortis no curso do processo, é logicamente incompatível com a garantia do direito de herança (artigo 5º, XXX, da Constituição).
Parece evidente que o óbito após o quinquênio de tramitação não fulmina per se a transmissão causa mortis da pretensão exercida em demandas contra a Fazenda Pública. Afinal, apenas a pretensão à tutela de direitos personalíssimos teria essa aptidão. Ainda assim, essa constatação traz pouca utilidade no plano prático porque, como consabido, as demandas que veiculam direitos personalíssimos são autodeterminadas e reclamam tutela jurisdicional declaratória, qualificadas como imprescritíveis por sua própria natureza.
Prescrição e decadência
Por outro lado, as entidades autárquicas recorrentes (UFC e Dnocs), embora não neguem o efeito jurídico do fato “óbito”, consideram, no entanto, a data do falecimento como termo a quo para a contagem de um “novo” prazo “prescricional”, agora submetido à órbita de titularidade dos sucessores. Defendem, ainda, com argumentação semelhante àquela aventada pela União, que a única consequência legal do óbito seria a suspensão do processo, conforme dispõe o artigo 313, I, do CPC, além de invocar a suposta nulidade dos atos processuais praticados antes da habilitação sucessória. Em síntese, a Fazenda Pública federal defende a consumação de “prescrição” quinquenal (artigo 1º do Decreto nº 20.910/1932) da “pretensão” de herdeiros ou sucessores da parte falecida no curso do processo.
Na tese fazendária imiscuem-se dois institutos muito caros ao ordenamento jurídico, quais sejam, a prescrição e a decadência, conforme demonstram as presentes considerações críticas.
Ambos os fenômenos são inconfundíveis, na dicção do próprio Código Civil (CC), cuja justificativa, a propósito, foi didaticamente elucidativa — embora não imune a críticas — de confusões conceituais anteriores sob a vigência do Estatuto de 1916. “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue pela prescrição” (artigo 189 do CC). Logo, a prescrição atinge a pretensão, que responda à violação de um direito. Já a decadência submete o exercício de um direito potestativo a um prazo legal ou convencional.
Por essa razão, correntemente se costuma dizer que a prescrição atinge a pretensão, mas não fulmina o direito (v.g., a irrepetibilidade das denominadas “obrigações naturais”). Já a decadência inviabiliza o próprio exercício do direito, que está submetido a um prazo legal ou convencional, dentro do qual a inatividade do interessado obstaculiza peremptoriamente o exercício após vencido o prazo, o que justifica a inaplicabilidade, em regra, das normas impeditivas, suspensivas ou interruptivas aplicáveis à prescrição, ressalvadas as exceções legais (artigo 207 do CC). Portanto, a decadência está sempre submetida a um prazo específico, assinado por norma legal ou convencional (autonomia das partes).
O exame da evolução dos institutos no direito brasileiro esclarece que a natureza jurídica da prescrição está umbilicalmente atrelada à perspectiva subjetiva da teoria da actio nata: a pretensão é prescritível quando a possibilidade de agir está na órbita de atuação do titular do direito e apenas a sua inércia é causa eficiente da prescrição. Por esse motivo, consagra-se a denominada acepção subjetiva da teoria actio nata: o transcurso do prazo prescricional inicia-se apenas com o conhecimento inequívoco da lesão ao direito e de sua extensão, prestigiando os postulados da boa-fé objetiva e da segurança jurídica (por todos, cf. STJ, AgInt no AREsp n. 958.624/RJ, rel. min. Raul Araújo, j. 16.9.2024, DJe 1º.10.2024; EDcl no REsp n. 1.811.735/MA, j. 30.9.2019, DJe 7.10.2019).
Em outras palavras, é da essência do instituto prescricional que o desconhecimento do titular acerca da pretensão obstaculiza quaisquer efeitos do transcurso de tempo. Ainda, militaria contra a ratio essendi do instituto conceber fenômenos prescricionais para consumar injustiças sociais, a exemplo do que seria uma prescrição aventada contra herdeiros que apenas anos depois tomaram ciência da existência de processo inicialmente instaurado pelo falecido na qualidade de credor.
No caso de processos que envolvam a Fazenda Pública há um outro agravante, consistente na circunstância de os dados dos óbitos integrarem a esfera dos registros públicos. Logo, se há um óbito da parte litigante contra a Fazenda Pública, o primeiro ente a conhecer tal circunstância e suas implicações no processo é, a rigor, o próprio Poder Público, o que se corrobora a fortiori quando a circunstância concreta envolve servidores públicos ou a instituição de benefício previdenciário por morte.
Como é consabido, grande parte dos óbitos ocorridos durante a tramitação do processo decorre da duração prolongada dos feitos. Ademais, não é usual que os herdeiros, pelo simples advento do óbito, tenham pronto conhecimento das demandas propostas pelo falecido (instituidor da herança). Afinal, como é inerente ao luto, o tempo de aceitação da perda e da própria compreensão dos direitos e das obrigações decorrentes dependem de um período razoável, que, a depender do contexto familiar, pode inclusive levar anos. Por outro lado, é igualmente notório que os advogados e as advogadas não têm ciência imediata do falecimento de seus constituintes, em razão das mesmas circunstâncias mencionadas.
Como equacionar o problema
Todas essas considerações são relevantes para afirmar que a lógica regente do sistema jurídico brasileiro é avessa à tese de que, por ocasião do falecimento, os sucessores interessados deveriam promover o andamento do feito durante determinado lapso prescricional, ou seja, “sob pena de prescrição”. A consumação da prescrição depende sempre da inércia dos interessados, cuja ciência da existência do processo é, portanto, conditio sine qua non. Herdeiros e sucessores, enquanto não têm notícia da existência dos processos pendentes, não podem agir. Apenas a partir de uma ciência expressa e formal poderia ser cogitada de eventual “prescrição”.
Nesse contexto, poderia ser invocada, à primeira vista, analogia legal com o artigo 921, I, §§ 1º e 4º, do CPC, tomando-se a “inexistência de bens” como “inexistência de [sucessores] interessados”, interpretado sistematicamente com o artigo 313, I (causa de suspensão do processo em razão de morte da parte), cujo dispositivo é expressamente remetido pelo inciso I do artigo 921. Ocorre que o próprio artigo 313, em seus §§ 1º e 2º, estabelece expressamente os efeitos do óbito sobre o processo (eficácia endoprocessual): (1) suspensão do processo; (2) intimação de eventuais herdeiros e interessados para promoverem a habilitação, inclusive “pelos meios de divulgação que [o juiz] reputar mais adequados”; (3) ausente habilitação no prazo assinado (v.g., em edital de chamamento), o feito será extinto sem resolução de mérito.
Como cediço, o reconhecimento da prescrição implica a extinção do processo com resolução de mérito (artigo 487, II, do CPC). Contudo, as únicas consequências jurídicas previstas no ordenamento para a inatividade de sucessores causam mortis são a suspensão do processo e a subsequente extinção terminativa, ou seja, sem resolução de mérito.
Afinal, a lógica jurídica do Código de Processo Civil, alinhada com os preceitos do Código Civil lidos à luz da Constituição (que garante o direito de herança e o devido processo legal), pressupõe que a habilitação de herdeiros constitui direito potestativo das partes interessadas (herdeiros ou sucessores) por ocasião do evento morte e, nesse sentido, a ausência do seu exercício apenas poderia ser fulminada pela decadência; jamais por suposta “prescrição”.
E, inexistindo prazo legal de decadência para a habilitação dos sucessores — o que poderia ser exigido apenas de lege ferenda —, o Código de Processo Civil estabelece que, com a notícia da morte do titular de direito transmissível, eventuais interessados devem ser devidamente intimados, dentro de prazo certo (v.g., fixado em edital); apenas com a manutenção da inatividade, o processo deve ser extinto, mas não por prescrição, e sim por ausência superveniente de pressuposto processual de validade.
Em síntese, conclui-se que a problemática envolvida no Tema repetitivo nº 1.254, que aguarda julgamento no Superior Tribunal de Justiça, deve ser resolvida com o reconhecimento da imprescritibilidade do requerimento de habilitação de herdeiros ou sucessores, cuja eventual inatividade, à míngua de um prazo decadencial prefixado em lei, tem por consequência a extinção terminativa sem resolução de mérito. Vale dizer, em última análise, se ainda houver prazo — daí sim prescricional — para novo ajuizamento (se o feito anterior estivesse em fase de conhecimento) ou cumprimento de sentença (se extinto na fase executiva), os sucessores podem promover as adequadas medidas, respeitado o efeito interruptivo da prescrição operado por iniciativa inicial do falecido (artigos 240, § 1º, e 802 do CPC; artigo 204 do CC).
Sendo devedora a Fazenda Pública, a interrupção da prescrição operada por iniciativa do credor falecido deve observar, ainda, o disposto nos artigos 8º e 9º do Decreto nº 20.910/1932, em linha com o Enunciado nº 383 da Súmula do Supremo Tribunal Federal (“a prescrição em favor da Fazenda Pública recomeça a correr, por dois anos e meio, a partir do ato interruptivo, mas não fica reduzida aquém de cinco anos, embora o titular do direito a interrompa durante a primeira metade do prazo”).
Trata-se de interpretação que equaciona o problema em estrita observância da lei e da Constituição, sem desconsiderar a distinção fundamental entre os fenômenos da prescrição e da decadência.
REFERÊNCIAS
https://www.conjur.com.br/2025-set-14/habilitacao-processual-de-herdeiros-e-prescricao-do-tema-repetitivo-1-254-stj/