GRAVAÇÃO AUDIOVISUAL DAS TRATATIVAS DO ACORDO DE COLABORAÇÃO É POSSÍVEL?
Valber Melo
Filipe Maia Broeto
DELAÇÃO PREMIADA
Quase todos os artigos escritos sobre o tema colaboração premiada tem como pano de fundo uma questão em relação à qual não se tem qualquer pacificidade. E é normal que assim o seja, porquanto, tratando-se de uma ciência social, o Direito não é dotado de certezas ou fórmulas. À medida que as dúvidas vão surgindo, a doutrina fornece seu contributo à justiça, que será materializada, após, nas decisões judicias.
Observe-se que a Lei de Organização Criminosa, mesmo sendo de 2013, ainda hoje gera dúvidas e celeumas, tanto no âmbito acadêmico quanto forense. Não fosse isso o bastante, a oscilação dos julgadores contribui sobremodo para a instabilidade do instituto que mais parece um “pendulo”: ora parece que vai “dominar o mundo”, ora parece que vai perder sua credibilidade.
Noutra ocasião, com base em posicionamento paradigmático do Supremo Tribunal Federal [HC 127.483], sustentou-se que seria impossível a impugnação de acordo por um terceiro delatado, uma vez que se trata, o pacto, de negócio jurídico processual personalíssimo e, por tal razão, somente as partes (Ministério Público, Autoridade Policial, essa com a aquiescência daquele, e colaborador) detêm legitimidade para questioná-lo.[[1]]
Nada obstante, mais recentemente, sobretudo após graves acusações à correição de um acordo de colaboração premiada, o Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, “propôs à turma que repensem a jurisprudência do Tribunal acerca da impossibilidade de terceiros impugnarem acordos de delação premiada”.[[2]]
Relator de dois habeas corpus [HC 142.205 e HC 143.427], impetrados em favor de réus em ação penal derivada da “Operação Publicano”, a qual visou a apuração de desvio de recursos da Receita no Paraná, o Ministro se inclinou para a tese defendia nas ações constitucionais, sob o argumento de que, no caso concreto, “os aditivos apresentados aos termos continham cláusula que determinavam que os delatores se retratassem de acusações aos promotores do Gaeco e ratificassem declarações anteriores na fase de investigação preliminar”.
Na visão do relator, Min. Gilmar Mendes, diante da gravidade das acusações aos promotores, seria “questionável que esses agentes possam negociar e transigir sobre fatos supostamente criminosos a eles imputados”. O ministro entendeu um novo acordo sobre os mesmos fatos configurou uma “virada diametral”, com “evidente fragilização”. “A força probatória de tais declarações resta completamente esvaziada diante do panorama.”[[3]]
Se o tema do presente artigo é (im)possibilidade de gravação audiovisual das tratativas dos acordos de colaboração premiada, por qual motivo se está a falar, até agora, da legitimidade para a impugnação do acordo?
A razão é, basicamente, a obscuridade e a total ausência de regulamentação legal acerca das tratativas, que ocorrem às ocultas, de modo totalmente “informal” e sem qualquer controle judicial, o que inviabiliza eventual questionamento sobre a correição do pacto premial.
Com efeito, a Lei 12.850/2013 deixa várias lacunas no tocante aos procedimentos para celebração do acordo de colaboração premiada, uma vez que dedica, em seu artigo 4º, apenas dois parágrafos ao tema em foco, in verbis:
- 6º O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.
- 7º Realizado o acordo na forma do § 6º, o respectivo termo, acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor.
Mais adiante, no §13, a Lei 12.850/2013, fica expresso que “Sempre que possível, o registro dos atos de colaboração será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinados a obter maior fidelidade das informações”. Note-se que a Lei fala em gravação, quando e se possível, dos “atos de colaboração”, o que, por óbvio, pressupõe a formalização do acordo.
Até chegar à formalização, no entanto, há um longo e tortuoso caminho a ser trilhado, mormente porque […] quando o pretenso colaborador começa as tratativas, o faz de forma pouco segura, já que ele sabe, por um lado, que crimes cometeu, mas desconhece, por outro, quais elementos probatórios foram produzidos em seu desfavor, bem assim em qual nível investigativo encontram-se os encarregados da persecutio criminis.
Assim, ao bater às portas do Ministério Público ou da Autoridade Policial, para além de “vender informações”, o colaborador vai para negociar sua liberdade [bem da vida que se quer tutelar] sem, contudo, saber até que ponto ela se encontra comprometida. Vale dizer, parte para uma negociação [colaboração premiada] sem saber quanto vale [ou quanto dirão que vale[8]] o objeto – informações – a ser entregue aos agentes estatais. Inexiste, portanto, uma relação sinalagmática, de paridade negocial.
Diante desse contexto, nota-se que o colaborador, na atual sistemática, encontra-se em posição totalmente desfavorável, porquanto, ao negociar, sequer sabe quais provas lhe pesam em desfavor. Não raro acontece de, por medo, falar algo que as autoridades públicas nem mesmo tinham ciência, prejudicando-se [e a outros] em busca de benefícios pífios, haja vista que, se não sabe o patamar investigativo em que se encontram os investigadores, não pode mensurar o valor [quantitativo e qualitativo] que a sua informação agregará à investigação – o que caberá, unilateralmente, à parte Estatal. [[4]]
A propósito, Alexandre Moraes da Rosa bem pontua que “a base normativa da colaboração/delação premiada no Brasil depende da atitude dos jogadores/agentes que estão situados no contexto do procedimento para a delação, já que as diretrizes gerais não indicam os protocolos de cada reunião”[[5]], havendo, assim, “uma nebulosidade quanto à maneira como se estabelece, na prática, a delação premiada”.[[6]]
Nesse cenário, em total vulnerabilidade negocial, o dilema que lhe resta é pegar ou lagar o acordo, que na verdade não é um acordo, na medida em que o espaço para negociação dos prêmios é ínfimo e, no mais das vezes, ao colaborador resta apenas aceitar as propostas fixadas, típicas de “contratos de adesão”, nos quais, mesmo não se concordando com algumas disposições, o contratante o “assina”, visto que precisa dos efeitos do contrato.
Existem, basicamente, duas maneiras para se mitigar essa disparidade negocial em que o órgão Estatal agiganta-se perante o colaborador, parte hipossuficiente da relação contratual: uma primeira, a implementação do método do discovery[[7]], já utilizado nos EUA, por meio do qual o acordo de delação deve ser baseado na lealdade, e não enxergado como um jogo estratégico, no qual o importante é conseguir obter uma vantagem.[[8]]
Assim, com o método do discovery, implementar-se-ia “um mecanismo de transparência negocial, possibilitando-se ao colaborador um panorama das investigações, de modo a que possa ter uma noção real de quanto suas informações valem, de quão importantes são para as autoridades públicas”.[[9]]
Seria possível, também, como forma supletiva, a adoção da gravação, mediante sistema audiovisual, das tratativas do acordo de colaboração, tornando o procedimento fiscalizável e mais legítimo. Isso porque com crescente importância que a fase preliminar – de nítido caráter inquisitorial – passou a gozar, operou-se uma inegável relativização das regras de exclusão de provas ilícitas, haja vista não haver, nesta fase, qualquer controle da motivação na decisão do promotor de justiça em barganhar a pena a ser aplicada.[[10]]
Impõe-se destacar que o Código de Processo Penal, em 2008, teve importante alteração, por força da Lei n. º 11.719, que possibilitou, no artigo 405, § 5º, “o registro dos depoimentos do investigado, indiciado, ofendido e testemunhas será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinada a obter maior fidelidade das informações”.
Destarte, nada impede que tal dispositivo seja aplicado, por analogia, às tratativas do acordo de colaboração premiada, enquanto não se resolve, no plano legislativo, a lacuna ora apontada. É lógico que o artigo 405, §5º, do Código de Processo Penal, diz respeito à fase processual. Contudo, crê-se a utilização do artigo 394, §5º, do retrocitado código, permitiria a aplicação subsidiária ao procedimento (e não processo) de tratativas de colaboração.
Assim, com a gravação audiovisual de todos os atos antecedentes à formalização do acordo (tratativas), para além de emprestar mais fidedignidade ao acordo e segurança ao colaborador, viabilizar-se-á efetiva fiscalização do Poder Judiciário também nesta fase, que, atualmente, é totalmente restrita aos contratantes.
De mais a mais, não se pode perder de vista que, na esteira do artigo 129, §4º, da CF88, “Aplica-se ao Ministério Público, no que couber, o disposto no art. 93”. O artigo 93, a seu turno, dispõe, em seu inciso IX, que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.
Em reforço à tese ora defendida, Flávio Silva Andrade consigna, em sua obra “Justiça Penal Consensual: controvérsias e desafios”, que tal previsão existe, por exemplo, no direito alemão, in verbis:
O Tribunal Constitucional Alemão exige a documentação de todos os caminhos que levaram ao acordo, inclusive as conversas preliminares, como resultado da exigência do §273, n. 1ª, frase 1, StPO, especificamente quem deu início às conversações do acordo, as discussões sobre o balizamento da pena, as disposições que estabelecem as obrigações das partes no pacto, tudo em respeito ao princípio da publicidade, com o fito de manter a confiabilidade do público na segurança, na ordem pública, na justiça e na persecução criminal eficaz.[[11]]
Para além do quanto previsto no direito alemão, defende-se, na oportunidade, que não só devem as tratativas serem gravadas, em sistema audiovisual, como eventual negativa no prosseguimento negocial haverá de ser fundamentada, sob pena chancela a um autoritarismo não consagrado pela Constituição Cidadã.
Diante desse contexto, revela-se, de certa forma, até viável a mudança de entendimento do STF no sentido de se legitimar o terceiro a impugnar um acordo de colaboração premiada ilegal. Entrementes, para tanto, aquele que impugna deverá provar o vício do “pacto” e, para isso, meio melhor e mais democrático não há do que a gravação de todas as conversas travadas entre Colaborador e Ministério Público, as quais, evidentemente, só poderão tornar-se públicas após a homologação do acordo e recebimento da denúncia, tal como preceitua o artigo 7º, §3º, da Lei 12.850/2013.
Referências bibliográficas:
ANDRADE, Flávio da Silva. Justiça Penal Consensual: controvérsias e desafios. Salvador: Bahia, 2019. p. 123.
Gilmar propõe que STF mude posição para autorizar impugnação de delação por terceiros. Disponível em: https://m.migalhas.com.br/quentes/302768/gilmar-propoe-que-stf-mude-posicao-para-autorizar-impugnacao-de. Acesso em 21 de maio de 2019.
MELO, Valber da Silva; NUNES, Filipe Maia Broeto. Colaboração premiada: aspectos controvertidos. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2018.
NUNES, Filipe Maia Broeto; MELO, Valber da Silva. A (im)possibilidade de impugnação de colaboração premiada por terceiros. Consultor Jurídico – Conjur, ISSN 1809-2829. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-mar-27/opiniao-impossibilidade-impugnacao-delacao-terceiros. Acesso em 21 de maio de 2019.
NUNES, Filipe Maia Broeto; MELO, Valber. Colaboração premiada: uma tentativa de implantação do sinalágma contratual na justiça penal negocial por meio do discovery. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5696, 4 fev. 2019. Disponível em: . Acesso em: 21 maio 2019.
RODAS, Sérgio. Advocacia deve criar regras para atuação em delações premiadas, diz Geraldo Prado. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-ago-31/advocacia-criar-regras-atuacao-delacoes-professor. Acesso em 21 de maio de 2019.
ROSA, Alexandre Moraes da. Uma proposta das etapas da cooperação premiada diante da ausência de regras claras. In: Luiz Flávio Gomes; Marcelo Rodrigues da Silva; Renan Posella Mandarino. (Org.). Colaboração premiada: novas perspectivas para o sistema jurídico-penal. 1ed.Belo Horizonte: D’Plácido, 2018. p. 79 – 99.
VASCONSCELLOS, Vinicius Gomes de. Barganha e justiça criminal negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015. p. 175/176.
[1] Nesse sentido: NUNES, Filipe Maia Broeto; MELO, Valber da Silva. A (im)possibilidade de impugnação de colaboração premiada por terceiros. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-mar-27/opiniao-impossibilidade-impugnacao-delacao-terceiros. Acesso em 21 de maio de 2019.
[2] Gilmar propõe que STF mude posição para autorizar impugnação de delação por terceiros. Disponível em: https://m.migalhas.com.br/quentes/302768/gilmar-propoe-que-stf-mude-posicao-para-autorizar-impugnacao-de. Acesso em 21 de maio de 2019.
[3] Gilmar propõe que STF mude posição para autorizar impugnação de delação por terceiros. Disponível em: https://m.migalhas.com.br/quentes/302768/gilmar-propoe-que-stf-mude-posicao-para-autorizar-impugnacao-de. Acesso em 21 de maio de 2019.
[4] NUNES, Filipe Maia Broeto; MELO, Valber. Colaboração premiada: uma tentativa de implantação do sinalágma contratual na justiça penal negocial por meio do discovery. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5696, 4 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69046. Acesso em: 21 maio 2019.
[5] ROSA, Alexandre Moraes da. Uma proposta das etapas da cooperação premiada diante da ausência de regras claras. In: Luiz Flávio Gomes; Marcelo Rodrigues da Silva; Renan Posella Mandarino. (Org.). Colaboração premiada: novas perspectivas para o sistema jurídico-penal. 1ed.Belo Horizonte: D’Plácido, 2018. p. 79 – 99.
[6] ROSA, Alexandre Moraes da. Uma proposta das etapas da cooperação premiada diante da ausência de regras claras. In: Luiz Flávio Gomes; Marcelo Rodrigues da Silva; Renan Posella Mandarino. (Org.). Colaboração premiada: novas perspectivas para o sistema jurídico-penal. 1ed.Belo Horizonte: D’Plácido, 2018. p. 79 – 99.
[7] Conforme esse sistema, o investigado ou réu tem direito a conhecer todas as provas e indícios nos quais a polícia e o MP baseiam sua acusação. RODAS, Sérgio. Advocacia deve criar regras para atuação em delações premiadas, diz Geraldo Prado. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-ago-31/advocacia-criar-regras-atuacao-delacoes-professor. Acesso em 21 de maio de 2019.
[8] RODAS, Sérgio. Advocacia deve criar regras para atuação em delações premiadas, diz Geraldo Prado. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-ago-31/advocacia-criar-regras-atuacao-delacoes-professor. Acesso em 21 de maio de 2019.
[9] NUNES, Filipe Maia Broeto; MELO, Valber. Colaboração premiada: uma tentativa de implantação do sinalágma contratual na justiça penal negocial por meio do discovery. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5696, 4 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69046. Acesso em: 21 maio 2019.
[10] VASCONSCELLOS, Vinicius Gomes de. Barganha e justiça criminal negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015. p. 175/176.
[11] ANDRADE, Flávio da Silva. Justiça Penal Consensual: controvérsias e desafios. Salvador: Bahia, 2019. p. 123.