RKL Escritório de Advocacia

GRATUIDADE DA JUSTIÇA E O ARTIGO 100 DO CPC   FUGA DA LITERALIDADE E SUPRESSÃO DO CONTRADITÓRIO  

GRATUIDADE DA JUSTIÇA E O ARTIGO 100 DO CPC  

FUGA DA LITERALIDADE E SUPRESSÃO DO CONTRADITÓRIO

 

Luciano Ramos de Oliveira

Gabriel Rhudá

 

Há, no direito brasileiro, um fenômeno no mínimo curioso: o temor da literalidade das normas. Diante de texto claro da lei, parte do Poder Judiciário prefere buscar refúgio em construções retóricas, supostamente sistemáticas, que acabam por desfigurar o sentido literal das regras. Sob o pretexto de evitar o formalismo, corre-se o risco de instaurar a arbitrariedade.

O caso do artigo 100 do Código de Processo Civil (CPC) é um bom exemplo desse desvio interpretativo. Ele prescreve como impugnar a gratuidade da justiça, deferida em favor da parte contrária, estabelecendo momentos processuais específicos para isso. Se o deferimento ocorrer na petição inicial, caberá a impugnação na contestação; se na contestação, deverá ser apresentada na réplica; e, por fim, se o benefício for deferido em decisão proferida após essas fases — seja em decisão interlocutória parcial de mérito ou na sentença —, a impugnação deverá ser formulada nas contrarrazões ao recurso [1].

Portanto, em caso de deferimento da gratuidade de justiça, a parte contrária poderá impugnar tal concessão por praticamente qualquer meio processual, não sendo exigida a interposição de recurso específico, bastando que a insurgência seja apresentada na primeira manifestação processual subsequente à decisão.

Distinções sobre gratuidade dentro do CPC

De pronto, é interessante observar a distinção que o próprio CPC estabelece para hipóteses semelhantes, embora substancialmente distintas. O artigo 101 do Código, disciplina a impugnação da decisão que indeferir o pedido de gratuidade: exclusivamente por agravo de instrumento. Essa previsão também consta de forma expressa no inciso V do artigo 1.015 do CPC, que elenca as hipóteses de cabimento desse recurso.

Note-se, contudo, que o rol do artigo 1.015 não contempla a hipótese de agravo de instrumento contra decisão que defere a gratuidade, mas apenas quando ocorre o indeferimento, sendo legitimado para recorrer aquele que teve seu pedido rejeitado. Assim, além de previsão específica, que deve prevalecer sobre a regra geral, o artigo 100 do CPC estabelece via impugnativa diversa daquela prevista no artigo 101 do mesmo diploma legal.

Tal sistemática revela uma lógica própria, ainda que se possa discordar da racionalidade normativa adotada pelo legislador ordinário. Isso porque o deferimento da gratuidade de justiça requerida pela parte contrária não interfere no mérito da causa, tampouco atinge os pedidos principais formulados na petição inicial. A parte adversa se torna parte prejudicada a ponto de legitimar a interposição de recurso autônomo em relação à gratuidade apenas em alguns casos (que serão expostos adiante), haja vista que o provimento jurisdicional pretendido é necessário e útil para alterar o estado processual até então existente.

Contrassenso processual

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ), há precedentes no sentido de que “as contrarrazões são cabíveis apenas para impugnar os fundamentos de eventual recurso interposto pela parte contrária, com o intuito de manter a sentença exarada, mostrando-se como via inadequada para pleitear a reforma da decisão”, e ainda que “consoante os princípios da non reformatio in pejus e do tantum devolutum quantum appellatum, as contrarrazões se revelam como via inadequada para suscitar pedidos de alteração da decisão recorrida, porquanto se destinam à impugnação dos fundamentos do recurso interposto” [2].

Todavia, a aplicação desse entendimento à hipótese de impugnação da gratuidade de justiça deferida gera um evidente contrassenso processual. Seguir essa linha — de que seria incabível impugnar o benefício em contrarrazões, mesmo quando concedido em sentença — significaria negar vigência ao texto literal da lei e criar uma nova regra não prevista no sistema processual. Tal leitura exigiria que a parte “prejudicada” interpusesse sempre recurso autônomo para impugnar a gratuidade concedida à parte contrária, em vez de fazê-lo nas contrarrazões ao recurso, como expressamente determina o artigo 100 do CPC, segundo o qual “o pedido de revogação da gratuidade deferida pode ser feito nas contrarrazões de recurso”.

O afastamento do texto da lei, nesse caso, não se dá por obscuridade normativa, mas por mera resistência à literalidade. É como se o intérprete, temendo parecer literal, preferisse negar a própria evidência da norma. Esquece-se, contudo, que a literalidade, quando o texto é claro e sistematicamente coerente, não deve ser encarado como vício, mas como um dever hermenêutico [3].

A questão é simples: se a gratuidade foi concedida apenas na sentença, o primeiro momento processualmente oportuno para impugná-la é, precisamente, nas contrarrazões ao recurso interposto pela parte beneficiada. A razão subjacente à regra é evidente: em caso de revogação do benefício pelo Tribunal, caberá à parte contrária recolher o preparo recursal, requisito extrínseco de admissibilidade do recurso — e é justamente na peça de contrarrazões que se concentram as impugnações a tais requisitos.

Portanto, a regra do artigo 100 do CPC aplica-se apenas nas hipóteses em que a parte que quer impugnar a gratuidade não interpõe recurso próprio, mas apresenta contrarrazões ao agravo de instrumento ou à apelação interposta pela parte adversa. Nesses casos, o referido dispositivo afasta a incidência do instituto da preclusão, permitindo o debate da matéria levada a rejulgamento pelo Tribunal.

Situação diversa daquela prevista no artigo 100 ocorre, por exemplo, quando:

  1. a gratuidade de justiça é concedida em sentença que julga improcedentes (ainda que parcialmente) os pedidos formulados, e a parte beneficiada não interpõe recurso — hipótese em que, por óbvio, não haverá contrarrazões a apresentar [4]; ou
  2. a gratuidade é deferida em decisão que julga parcialmente o mérito, nos termos do artigo 356 do CPC, caso em que o cabimento do agravo de instrumento é garantido contra a decisão interlocutória, independentemente da matéria discutida, podendo o recurso da parte que quer revogar a gratuidade versar exclusivamente sobre o capítulo que concedeu a gratuidade.

Instrumento de legitimidade

Como já exposto pelo primeiro autor neste portal [5], a aplicação literal da regra posta pelo Parlamento privilegia a segurança jurídica e prima pela elevação da autoridade legislativa como legítima para criar regras no sistema jurídico. Dessa forma, não cabe ao Judiciário impor   qualquer ônus processual sem qualquer previsão normativa, tampouco invocar o instituto da preclusão em flagrante afronta ao disposto no artigo 100 do CPC.

O processo civil democrático, inaugurado pelo CPC/2015, não se funda na desconfiança do texto legal, mas na coerência entre a norma, o sistema jurídico e o princípio do contraditório. A literalidade, nesse contexto, não é obstáculo, mas instrumento de legitimidade: é a âncora que impede que a interpretação derive para a arbitrariedade.

 

REFERÊNCIAS

[1] Não se pretende, neste ponto, engajar-se no debate hermenêutico propriamente dito.

[2] REsp n. 2.075.938/PR, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 23/10/2023, DJe de 25/10/2023 | AgInt no AREsp n. 1.335.124/GO, Relator Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/6/2019, DJe 27/6/2019

[3] NEVES, Daniel Assumpção Amorim, Novo Código de Processo Civil Comentado. Salvador: Editora Juspodivm, 2016, p. 160.

[4] Não há prejuízo processual na interposição de recurso pela parte que se opõe ao deferimento da gratuidade de justiça, ainda que exista incerteza quanto à interposição tempestiva de recurso pela beneficiária. Isso porque, nos termos do artigo 1.009, § 1º, do CPC, todas as matérias não abrangidas pelo rol do artigo 1.015 podem ser deduzidas em preliminar de apelação. Assim, havendo recursos interpostos por ambas as partes, deve ser aberto prazo para apresentação de contrarrazões — momento em que incidirá a regra do artigo 100 do CPC, permitindo a impugnação da gratuidade concedida.

[5] OLIVEIRA, Luciano Ramos de; COSTA-NETO, João.” Caso ‘BTG pactual vs. Americanas S/A’ e stay period: ‘stay’ até quando?”. Disponível aqui

https://www.conjur.com.br/2025-nov-04/a-fuga-da-literalidade-e-a-supressao-do-contraditorio-leitura-critica-do-artigo-100-do-cpc/