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A GOVERNANÇA CORPORATIVA E O PODER PÚBLICO

Ester Camila Gomes Norato Rezende

Os vocábulos “eficácia” e “eficiência” são recorrentemente empregados nas mais variadas áreas do saber, recebendo especial relevo nos campos jurídico e administrativo. Em que pese a polissemia dos termos, que enseja o emprego de ambos, por vezes, como sinônimos, é importante ter em vista a exata significação científica dessas palavras, mormente porque elas se postam como princípios guias e metas de organizações e atividades humanas.

Não obstante o uso frequente das palavras “eficácia” e “eficiência” no meio jurídico, esse campo falece de conceituação precisa de seus significados, sendo usual os autores que se debruçam sobre essa temática recorrerem a estudos interdisciplinares, principalmente às definições trazidas pela ciência da administração.

Para o que interessa ao vertente ensaio, entende-se por eficiência a potencialidade de produzir resultados, é dizer, a capacidade de uma norma, um procedimento, uma conduta, etc., produzir os efeitos para o qual fora instituída é a habilidade para gerar a consequência esperada.

A eficácia, ao seu turno, caracteriza-se não só como a aptidão para suscitar resultados, mas também como sua produção real, diga-se, efetiva, considerando, ademais, o melhor modo para atingir o objetivo traçado. Diz-se de eficaz, assim, aquilo que realmente alcança os fins para o qual fora instituído, com relação ótima entre meios e fins.

Nos dizeres de Peter Drucker [1], eficiência consiste em fazer certo as coisas, já eficácia, em fazer as coisas certas.

Pode-se dizer, ainda, que o ponto central da definição de eficiência são os meios para o alcance de determinado fim. O cerne do conceito de eficácia, por sua vez, diz respeito à finalidade propriamente dita. Aliás, nesse sentido, encontra-se na ciência do direito, especificamente na doutrina civilista, o que se denomina de obrigações de meio e obrigações de resultado.

Fez-se essa breve explanação introdutória para pontuar que se acredita que as atividades e as organizações humanas devem se guiar não apenas pela eficiência, e sim pela eficácia, uma vez que não basta valer-se dos meios, dos procedimentos e das práticas adequados para o alcance de determinado objetivo, se este não é efetivamente alcançado e, mais, da melhor forma, isto é, com o justo meio da relação meio e fim.

No âmbito da iniciativa privada, é corriqueira a lição pela máxima busca de resultados, sobretudo no âmbito empresarial, em que se visa à maior eficácia das atividades desenvolvidas, atingindo, do melhor modo, o objetivo de que delas se espera, normalmente, o lucro. Considerando que a definição de diretrizes para alcance das metas traçadas é tarefa a cargo dos diretores e demais administradores das empresas, pode-se afirmar que a cobrança de eficiência atua sobre eles com toda sua força, exigência esta feita pelos acionistas e cotistas que vislumbram o máximo de resultados da atividade empresarial, isto é, o maior lucro possível.

Nesse contexto, importa ter em vista a relação entre gerentes e acionistas (os chamados problemas de agência), que, algumas vezes, não têm interesses convergentes, em casos, por exemplo, em que os primeiros trabalham apenas para êxito próprio e não para o sucesso da organização.

Como instrumento de regulação e controle, voltado, em última análise, à máxima da eficiência da atividade empresarial, surgiram, a partir de meados da década de 1990, as práticas e os estudos a que se denomina de governança corporativa [2], voltada exatamente à relação gerente e acionista, tendo como princípios norteadores o controle, a transparência, por meio de prestações de contas, e a informação.

A Bovespa (Bolsa de Valores de São Paulo), em seu Dicionário do Investidor [3], define governança corporativa como “práticas e relacionamentos entre acionistas/cotistas, conselho de administração, diretoria, auditoria independente e conselho fiscal, com a finalidade de otimizar o desempenho da empresa e facilitar o acesso ao capital. Estas práticas abrangem os assuntos relativos ao poder de controle e direção de uma empresa, bem como as diferentes formas e esferas de seu exercício e os diversos interesses que, de alguma forma, estão ligados à vida das sociedades comerciais“.

O Instituto Brasileiro da Governança Corporativa [4], ao seu turno, afirma que “governança corporativa é o sistema pelo qual as sociedades são dirigidas e monitoradas, envolvendo os relacionamentos entre acionistas/cotistas, conselho de administração, diretoria, auditoria independente e conselho fiscal. As boas práticas de governança corporativa têm a finalidade de aumentar o valor da sociedade, facilitar seu acesso ao capital e contribuir para a sua perenidade“.

Trata-se, em outras palavras, de método (a boa governança) empregado para melhor administração da empresa e alcance de seus objetivos. Insere-se nessa seara, ainda, a própria definição dos fins de uma sociedade empresarial, se tão somente a maximização de valor para seus acionistas/cotistas ou também o compromisso com o que se nomeia de responsabilidade social.

É que existem no mundo dois principais modelos de governança corporativa, que podem ser distinguidos, dentre outros critérios, pelo fim a que a sociedade empresarial se destina, ou melhor, àqueles a quem deve beneficiar. São eles o modelo anglo-saxão (Estados Unidos e Reino Unido) e o modelo da Europa Continental e Japão. No primeiro, o objetivo primordial das empresas tem sido tradicionalmente a criação de valor para os acionistas (shareholders), enquanto nos países que se aproximam do modelo da Europa Continental e Japão as corporações devem observar, além dos interesses dos acionistas, as pretensões de outros grupos atingidos por sua atividade empresarial (stakeholders), como, por exemplo, empregados, fornecedores, clientes e a comunidade.

Não obstante as diferenças constatáveis nos modelos de governança corporativa, que, aliás, sofrem incisivas influências das peculiaridades de cada país, de sua organização econômica, política e sociocultural, é certo que o mote de sua atuação é a eficácia da sociedade empresarial, a sua aptidão para gerar os resultados a que se destina e, mais, sua real produção, do melhor meio possível.

Dessa constatação é possível perquirir sobre a aplicabilidade da governança corporativa ao Poder Público. São habituais as alusões à eficácia da iniciativa privada nas atividades que desempenha, no sentido de que o setor público igualmente deveria alcançar tais resultados, sobretudo no desempenho de serviços públicos. Não é nova a ideia de que a Administração Pública deveria se aproximar do modelo de gestão privada, tendo sido essa, aliás, a orientação das inúmeras privatizações empreendidas no Brasil na década de 1990, pautadas no que se denominou de modelo de gerencial de Administração Pública.

As Parcerias Público-Privadas – PPPs restam por caracterizar uma importante aproximação do público e do privado no desempenho de atividades públicas, visto que objetivam, em última análise, valerem-se dos benefícios da iniciativa privada – de seu regime jurídico, de seu modelo gerencial, etc. – para alcance de maior eficácia do serviço.

Essas considerações são um indicativo de que a governança coorporativa também pode ser empregada com êxito, no que couber, na seara do Poder Público, guardadas as alterações inerentes às especificidades estatais.

Com efeito, os propósitos de informação, transparência e controle, a fim de que se obtenha maior eficácia, pilares dos modelos de governança corporativa, coadunam-se induvidosamente com os princípios [5] norteadores da Administração Pública, insculpidos na Constituição da República de 1998.

No que toca à informação e à transparência exigidas pelo modelo de governança corporativa, destaca-se, na órbita do Poder Público, o princípio da publicidade, previsto no art. 37, caput e § 1º, da CR/88. Tal princípio é imperativo à atuação da Administração Pública, ou seja, esta deve dar publicidade a todos os seus atos, como forma de informar e possibilitar o controle pelos administrados. Por publicidade entende-se, então, dar conhecimento ao público, trazer a público determinada matéria. Excetuam-se do princípio da publicidade apenas as hipóteses previstas em lei, como os atos de interesse da segurança nacional (art. 5º, XXXVIII, da CR/88), certas investigações policiais (art. 20 do CPP) e processos cíveis em segredo de justiça (art. 155 do CPC).

Da dicção constitucional, constata-se que a teleologia da publicidade pública é unicamente dar transparência à atividade pública, possibilitando informação e controle pelos administrados. E são exatamente esses, dentre outros, os propósitos da governança corporativa, ao primar pela informação e transparência, permitindo aos acionistas/cotistas o acompanhamento e o controle da atuação dos administradores.

Em relação ao controle, que no contexto da governança corporativa é abordado sobre a temática das prestações de contas e do desempenho atuante dos conselhos fiscais, no âmbito da Administração Pública apontam-se as atividades de controle externo desempenhadas pelos Poderes Legislativos e pelos Tribunais de Contas, nos termos dos arts. 70 e 71 da Constituição da República, verbis:

Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.           

Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária.                                  

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:”

Cabe aqui ressaltar a relevância do controle externo, por sua natural independência – pelo menos que se espera – do órgão fiscalizado, o que pretende imprimir maior eficácia nos trabalhos do órgão controlador. Nesse sentido é uma das perspectivas dos estudos sobre governança corporativa, que preconiza a independência dos conselhos fiscais, exatamente para que suas funções sejam desempenhadas com compromisso único com a fiscalização.

Além do controle externo, tem-se também o controle interno, mantido por cada órgão de governo a fim de apurar o cumprimento de metas estabelecidas. É o que preconiza no art. 74 da Constituição da República.

Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de:           

I – avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União;

II – comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado;           

III – exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias, bem como dos direitos e haveres da União;           

IV – apoiar o controle externo no exercício de sua missão institucional.”

Ainda nessa matéria de controle, impende mencionar a Lei Complementar nº 101/00, denominada Lei de Responsabilidade Fiscal, instituída exatamente com o designo de estabelecer normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal. Esse diploma legal estatui, dentre outras, normas de planejamento, de gestão de receitas públicas, de realização de despesas e de limites de endividamento, visando regulamentar a boa gestão administrativa pública, condicionando a atuação dos administradores públicos.

Por fim, o objetivo de eficácia existente no modelo de governança corporativa também é diretriz da atividade administrativa, constituindo até mesmo princípio constitucional da Administração Pública, inserido ao caput do art. 37 no Texto Constitucional pela EC nº 19, de 1998, com o escopo de alinhar os princípios administrativos ao modelo de administração gerencial. Cuida-se do princípio da eficiência, que se crê referir ao que a ciência da administração denomina de eficácia, ou seja, não só habilidade para gerar resultados, mas também sua efetiva produção, com a melhor relação custo/benefício. Acredita-se que o emprego do termo eficiência ao invés de eficácia deve-se à mencionada polissemia desses vocábulos e a não consolidação científica desses conceitos no âmbito jurídico.

Sobre a aproximação dos princípios administrativos ao modelo de Administração Gerencial, Lúcia Valle Figueiredo escreve: “É de se perquirir o que muda com a inclusão do princípio da eficiência, pois, ao que se infere, com segurança, à Administração Pública sempre coube agir como eficiência em seus cometimentos. Na verdade, no novo conceito instaurado de Administração Gerencial, de ‘cliente’, em lugar de administrado, o novo ‘clichê’ produzido pelos reformadores, fazia-se importante, até para justificar perante o país as mudanças constitucionais pretendidas, trazer ao texto o princípio da eficiência. Tais mudanças, na verdade, redundaram em muito pouco de substancialmente novo, e em muito trabalho aos juristas para tentar compreender figuras emprestadas sobretudo do Direito americano, absolutamente diferente do Direito brasileiro” [6].

Decerto, procedem as assertivas da autora citada, visto que não foi apenas após a inserção do princípio da eficiência na Constituição da República que se passou a exigir da Administração Pública atuação voltada à produção satisfatória de resultados.

Em vista dessas considerações, conclui-se que a aplicação da governança corporativa ao setor público pode encorajar o uso eficiente de verbas públicas, exigência de responsabilidade em prestar contas ao administrador dos recursos, aperfeiçoar a administração e entrega dos serviços e, portanto, contribuir para melhorar a vida dos cidadãos e tornar as entidades públicas mais confiáveis.

Em verdade, a Administração Pública tem à sua disposição mecanismos de transparência e controle, que convergem com os aspectos basilares da governança corporativa, não sendo novidade, ao menos no âmbito normativo, as disposições voltadas à publicidade, à prestação de contas, ao controle interno e externo, à responsabilidade na gestão. Contudo, o desafio se concentra no efetivo emprego dessas práticas, em outras palavras, na eficácia das normas alhures referidas.

Outra questão que relaciona a governança corporativa com o Poder Público é o reclame de maior atuação dos acionistas, isto é, de postura mais ativa em prol da fiscalização da sociedade empresária, de acompanhamento próximo de suas realizações, com o fim último de garantir a melhor produção de resultados.

No mesmo modo, o ativismo dos cidadãos, principalmente no controle e na fiscalização das atividades dos administradores públicos, certamente contribuirá para a prestação de serviços públicos de melhor qualidade e o não dispêndio inútil de dinheiro público, a destacar aquele perdido na malfadada corrupção.

A ordem jurídica prevê instrumentos para propiciar essa atuação do cidadão mais próxima à Administração Pública, como o direito de petição (art. 5º, XXXIV, da CR/88) e a ação popular (art. 5º, LXXIII, da CR/88 e Lei nº 4.717/65), por exemplo. No entanto, o ativismo aqui depende muito mais de uma formação cidadã da população que propriamente de inúmeros instrumentos jurídicos para operacionalizá-lo. É dizer, não basta a previsão de vários meios de fiscalização e controle se seus agentes não são capacitados e conscientizados para utilizá-los.

Outrossim, cabe pontuar que é o aspecto que distingue os dois modelos enunciados de governança corporativa: o primeiro, anglo-saxão, voltado à criação de valor para os acionistas (shareholders); e o segundo, pautado na observância também de interesses de terceiros (stakeholders) alcançados pela atuação da sociedade empresarial. É que emerge daí a indagação: o objetivo da corporação é apenas gerar lucro – isto é, maximização de riqueza para seus acionistas/cotistas – ou também ela tem compromisso com propósitos sociais, visando atender ao mesmo tempo as pretensões de empregados, clientes, fornecedores, comunidade? Em outros termos, a propalada responsabilidade social é mesmo um objetivo das sociedades empresariais?

Na doutrina, principalmente norte-americana, colhem-se duas correntes a respeito do tema: a primeira, denominada conservadora, atém-se à noção tradicional de que o único fim da sociedade é a geração de lucro para seus acionistas/cotistas; a segunda, os progressistas, considera que a corporação tem também compromisso com a responsabilidade social, devendo observar e preservar interesses também de terceiros, como os empregados e a comunidade.

Consoante essa segunda corrente, é necessária uma reconsideração sobre os estudos de governança corporativa, porquanto eles tradicionalmente se focaram na relação entre acionistas e gerentes, particularmente na questão de os gerentes agirem como agentes fiéis aos acionistas. Entretanto, não se pode negar que as atuais decisões corporativas são fortemente limitadas por regras legais exógenas ao direito empresarial, tal como legislações trabalhistas, ambientais, administrativas.

Dessa feita, as discussões sobre governança corporativa não podem ignorar a importância das limitações impostas por diplomas legais, das mais variadas áreas. E é exatamente a integração dessas normas ao estudo da governança corporativa que releva a amplitude da influência e alcance da conduta da sociedade empresarial. Porque a atuação da corporação gera efeitos, muitas vezes diretos e imediatos, nos empregados, é que existem normas de cunho trabalhista direcionadas à sociedade empresarial; pela mesma razão, porque influenciam o ambiente e a comunidade local, regional ou até nacional, é que existem normas ambientais e administrativas que condicionam em alguma medida o agir corporativo.

Decerto, tratando-se de disposições cogentes, das quais a sociedade empresarial não se pode esquivar, é forçoso concluir que a gestão administrativa deve considerá-las, tendo em vista a finalidade última de garantir maior eficácia em sua atividade. A questão é se o fazem por pura obrigação ou, ao oposto, porque constitui um dos misteres da corporação a atenção aos denominados stakeholders.

Fala-se, nesse cenário, em responsabilidade social, a que se pode qualificar como conceito indeterminado, visto que inexiste precisão científica ao defini-lo, havendo mais atos que, a título exemplificativo, comumente se amoldam ao senso comum de responsabilidade social. No mesmo sentido, a legislação brasileira refere-se à função social da propriedade, à função social do contrato, aos quais os estudiosos se esforçam para conceituar, sendo certo, todavia, que as variadas definições não têm o condão de esgotar o alcance dessas “funções sociais“.

Lastrando-se na experiência cotidiana, a responsabilidade social pode ser definida como o cumprimento dos deveres e das obrigações dos indivíduos e das empresas para com a sociedade em geral. A precisão de tais deveres e obrigações fica, contudo, a cargo do casuísmo, já que são condicionadas, entre outros, pelas circunstâncias de tempo, lugar, cultura, necessidade de cada comunidade, etc.

Frequentemente se vê as sociedades empresariais se engajarem em campanhas de cunho social, empreenderem doações, oferecerem gratuitamente cursos profissionalizantes e outras benesses, sob a alegação de serem uma corporação compromissada com a responsabilidade social (marketing social).

Sem embargo de discussões sociológicas, que transcendem os limites deste ensaio, acredita-se que é plausível que as corporações tenham como objetivo a atenção de interesses de terceiros, que não seus acionistas/cotistas, mas essa finalidade se encontra em segundo plano se comparada à obtenção de lucro, certamente o propósito maior de uma sociedade empresarial. Logo, no mais das vezes, a dita responsabilidade social é utilizada como meio para a geração de valor para o acionista/cotista.

Nesse ponto, vale retomar a questão da aplicação da governança corporativa no âmbito do Poder Público. Isso porque, ainda que se admita ser a atenção aos interesses de terceiros um dos objetivos das corporações, é certo que o lucro é o seu maior foco. Entretanto, não é essa perspectiva que vigora – ou, pelo menos, que não deve vigorar – no âmbito da Administração Pública. Ressalvadas as empresas públicas que verdadeiramente desempenham atividades econômicas, em concorrência com a iniciativa privada, os órgãos e as entidades públicas que se voltam precipuamente para a prestação de serviços públicos têm como inerente e primeira finalidade a satisfação do interesse público.

Assim como a responsabilidade social, ou função social, o interesse público também é um conceito fluído, isto é, que não detém precisão e univocidade científica. Corroborando a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, não se pode equivaler interesse público à mera soma de interesses individuais, uma vez que aquele, em verdade, representa a transcendência dos interesses dos sujeitos privados.

Todavia, é errôneo conceber o interesse público como algo abstrato, existente de per si, completamente autônomo e desvinculado dos anseios das partes que compõem o todo. O citado administrativista assevera que “embora seja claro que pode haver um interesse público contraposto a um dado interesse individual, sem embargo, a toda evidência, não pode existir um interesse público que se choque com os interesses de cada um dos membros da sociedade[7].

Assim, tem-se que o interesse público é o interesse dos indivíduos considerados partícipes do todo social, é a faceta coletiva dos interesses individuais, atentando-se que na condição de sujeito singular o indivíduo tem determinados anseios que ora se coadunam, ora se contrapõem às suas pretensões de membro da sociedade. Nesse sentido, conclui Celso Antônio Bandeira de Mello: “Donde, o interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto de interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da sociedade e pelo simples fato de o serem. (…) o interesse público é uma faceta dos interesses individuais, sua faceta coletiva e, pois, que é, também indiscutivelmente, um interesse dos vários membros do corpo social – e não apenas o interesse de um todo abstrato (…)” [8].

Importa não coincidir interesse público com interesse do Estado, não obstante ser este, constitucionalmente e por definição, o guardião e realizador daquela espécie de interesse. Isso porque o Estado também é sujeito e, como tal, detém interesses subjetivamente próprios, denominados secundários pela doutrina italiana, conforme noticia Celso Antônio Bandeira de Mello, os quais não se confundem com o interesse público, algumas vezes – embora assim não devesse -, até mesmo a ele se opõem. Exemplificando essa categoria de interesse, “poderíamos acrescentar que seria concebível um interesse da pessoa Estado em recusar administrativamente – e até questionar em juízo, se convocado aos pretórios – responsabilidade patrimonial por atos lesivos a terceiros, mesmo que os houvesse causado[9].

Conclui-se, pois, que a consecução do interesse público, ou seja, do interesse da comunidade, é o objetivo primeiro do Poder Público. Nessa ordem de ideias, o emprego da noção de governança corporativa na seara pública exige que a eficácia se volte não para a geração de lucro, e sim para a atenção às pretensões da sociedade. Essa distinção não desnatura a concepção de governança corporativa, apenas a afasta do modelo anglo-saxão (shareholders) e a aproxima do molde da Europa Continental e Japão (stakeholders).

Destarte, por mais essa razão, as lições da governança coorporativa também podem ser aplicadas na seara do Poder Público, ressalvadas as adequações afetas às especificidades estatais. A relação entre governança corporativa e Poder Público também pode ser vislumbrada no cenário de crise econômico-financeira mundial que se configurou nitidamente no ano de 2008 (cuida-se, em breves linhas, de uma grave crise de crédito, cujo estopim foi o colapso do mercado imobiliário norte-americano), bem como no grave quadro de crise econômica e política brasileira, mas sensível mormente a partir de 2014.

 Alguns pontos, contudo, merecem relevo nessa conjuntura para o que interessa ao presente ensaio. Os reflexos das crises se fizeram sentir de modo mais impactante e, até mesmo, inesperado em virtude do não conhecimento por parte da maioria dos acionistas das sociedades empresariais, de investidores e da comunidade em geral dos riscos assumidos pelas administrações das corporações na concessão de empréstimos, financiamentos, nas operações com derivativos, etc. Provável, inclusive, que muitos administradores não tenham real noção dos riscos assumidos nas variadas operações realizadas pela sociedade empresária.

Sobressai, então, a importância da governança corporativa: os pilares da governança, mormente a transparência, a informação e a prestação de contas, constituem relevantes instrumentos para contornar a médio e longo prazo o colapso econômico e financeiro, de fato porque a crise encontra origem, em grande monta, na ausência dessas práticas. As prestações de contas falseadas, as informações omitidas, o desvio de finalidade das corporações, não constatáveis pelos acionistas/cotistas e pela comunidade em geral em razão, dentre outros, da falta de transparência e da inércia desses interessados, conduzem à conclusão de que o emprego de práticas de boa governança poderia minimizar, quem sabe até impedir, a caracterização da crise nos vultosos contornos que adquiriu.

Ainda, esse risco mal planejado pelo mercado evidenciou sua incapacidade de se autorregular, abalando um dos maiores pilares do neoliberalismo. A crise motiva – na verdade, trata-se mesmo de uma necessidade do mercado – intervenção do setor público sobre o privado, demonstrando não se tratarem de esferas estaques, mas que, antes disso, se interpenetram e ocasionam influências múltiplas.

Acredita-se, no entanto, que tal interferência não implica o Estado ditar regras da economia, tampouco se limita a aportar recursos públicos para salvar sociedades empresariais da falência, sem qualquer exigência de cunho público. É dizer, o Estado deve exigir das corporações privadas e também dos próprios entes e órgãos públicos, por meio de regras rígidas, que observem normas de boa governança e, ainda, observem os interesses de terceiros, convergindo, assim, a eficácia da iniciativa privada com aquela que se espera do Poder Público.

Por todo o exposto, conclui-se que os lindes que separam o público do privado são cada vez mais tênues. Os estudos e as práticas de governança corporativa mostram-se, notadamente por seus princípios inspiradores, próximos e aplicáveis ao Poder Público, possibilitando-lhe o alcance da tão querida eficácia no desempenho de suas funções.

[1] “Foi filósofo e economista, de origem austríaca, é considerado por todos o pai da gestão moderna, sendo o mais reconhecido dos pensadores do fenômeno dos efeitos da globalização na economia em geral e em particular nas organizações, ainda hoje, mesmo após a sua morte, permanece inquestionavelmente como ‘único’ pai da gestão. Subentendendo-se a gestão moderna como a ciência que trata sobre pessoas nas organizações, como dizia ele próprio.” (Fonte: Wikipédia)

[2] A governança corporativa é área de estudo com múltiplas abordagens, sendo destacado no presente trabalho aqueles aspectos que têm pertinência ao tema tratado. Vale ressaltar, ainda, que tendo em vista as especificidades de cada país, sejam econômicas, sociais ou estruturais, não é possível estabelecer um único modelo como adequado e merecedor da designação de “boa governança”. Ao contrário, a boa governança é exatamente aquela que se conforma as características do contexto em que é aplicada, ocasionando, assim, eficácia máxima.

[3] <www.bovespa.com.br>.

[4] <www.ibgc.org.br>.

[5] O caráter normativo dos princípios é hoje já consolidado em sede doutrinária e jurisprudencial, assim como sua função normogenética, hábil a originar regras que têm como norte e sustentáculo maior o conteúdo consubstanciado em determinado princípio. Dessas considerações, não há que se falar em caráter meramente programático dos princípios ou, ainda, em função unicamente diretiva do ordenamento jurídico e cujo atendimento não é coercitivamente imposto, como claramente se constata nas regras; ao contrário, os princípios também regulamentam condutas e instituem o dever ser em determinada matéria, não podendo ser localizado como hierarquicamente inferior às regras.

[6] FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 63.

 [7] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 51.

[8] Ob. cit., p. 51.

[9] Ob. cit., p. 58.

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