RKL Escritório de Advocacia

A FUNÇÃO SOCIAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA TUTELA DA HONRA DO FALECIDO PELOS FAMILIARES SUPÉRSTITES

A FUNÇÃO SOCIAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA TUTELA DA HONRA DO FALECIDO PELOS FAMILIARES SUPÉRSTITES

André Saito Casagrande

Odete Novais Carneiro Queiroz

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Do Conteúdo da Honra ou Honra enquanto Fenômeno Social. 3 A Honra como Direito Fundamental e como Direito da Personalidade. 4 A Tutela da Honra Alheia e o Viés de sua Função Social. 5 Conclusão. 6 Bibliografia.

                   

1 Introdução          

Pretende-se problematizar a tutela dos direitos de personalidade do falecido por seu cônjuge ou convivente e seus parentes supérstites, nos termos dos arts. 12 e 20 do Código Civil brasileiro, buscando-se definir qual seria o objeto tutelado e, simultaneamente, o fundamento de legitimação dos familiares do de cujus.

A circunscrição do objeto deve levar em conta, inicialmente, que a morte é causa de término da existência da pessoa natural, de modo que não se poderia cogitar localizar o objeto protegido em sua esfera de direitos, eis que esta é, por consequência lógica, também inexistente a partir da morte.

Será pela análise do rol de legitimados “cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau” (art. 12), e “cônjuge, os ascendentes ou os descendentes” (art. 20), então, que poderemos encontrar o objeto tutelado e, diante disto, definir seus contornos.

Duas são as primeiras impressões, bem distintas entre si (excluindo-se desde já, conforme será adiante explicado, a afeição ou afetividade como fundamento para a legitimação):

(i) ou se trata de direitos pessoais à honra, à imagem e à respeitabilidade dos familiares do de cujus, que se veem indiretamente ofendidos pela violação da sua imagem, por via do grau de parentesco ou do matrimônio e da união estável, como se fossem eles e o falecido congêneres;

(ii) ou o objeto tutelado é a imagem que esses supérstites têm sobre a imagem (honra) do falecido, ou seja, trata-se de preservar a memória dos sobreviventes sobre o morto.

É nítido que tais objetos ocupam espaços conceituais distintos e não podem ser confundidos (embora se admita que possam ser conjugados). Enquanto a primeira hipótese enquadra o objeto tutelado na categoria dos direitos pessoais – não sem dificuldades -, a segunda estabelece um objeto jurídico atípico, senão pela carência normativa que lhe caracteriza, pela própria dificuldade em definir o que venha a ser a memória.

Todavia, independentemente de qual hipótese se decidir adotar como fundamento para sua tutela, ambas encontram dificuldades, uma vez que os pressupostos que atribuem valor jurídico à ofensa reflexa (pela noção de compartilhamento de sobrenome ou outras categorias generalizadoras) ou à ofensa à memória não foram explicitados e requerem maiores análises. Poderão, portanto, ser tratados igualmente como se se referissem à memória ou à honra do supérstite indiretamente ofendidas.

Contudo, em vez de adentrarmos em uma psicologia moral ou social, por meio da investigação de quais valores exigem ou não tutela, pretende-se apresentar a problemática que o direito civil encontra, no campo da autonomia da vontade e da definição dos direitos civis, em tornar claros os objetos jurídicos ao redor dos quais o indivíduo terá garantida a tutela estatal.

Suscita-se, a título de ilustração dessa problemática, a questão da exclusão, do rol de legitimados, de quaisquer interessados na preservação da imagem do falecido, de forma a não se vislumbrar um liame de afetividade suficiente à legitimação para a tutela desse objeto jurídico. Ou seja, um amigo do falecido, sentindo-se perplexo diante de ofensas dirigidas ao de cujus, não seria legitimado para pleitear a cessação das injúrias.

Daí ver-se claramente surgir a questão: injúrias a quem, se o falecido não mais existe para o Direito (art. 6º do Código Civil)? E também, o que diferenciaria familiar e amigo diante dessas circunstâncias, de modo a incluir um e a excluir outro?

Em síntese, busca-se identificar quais são as (possíveis) operações feitas pelo legislador civil para identificar um objeto passível de normatização no campo da autonomia da vontade, enfrentando a questão, por um lado, levando-se em conta os objetos passíveis de ocupar um lugar privilegiado e, assim, protegidos pelo Estado e, de outro, como própria consequência, a quem cabe buscar a tutela desses objetos.

Como a questão da honra relativa ao falecido encontra-se em posição limítrofe, na qual é possível observar, com certa facilidade, a problemática surgir, pretende-se utilizá-la como contexto em que se dão as operações pelas quais circunscrevem-se os objetos jurídicos.

2 Do Conteúdo da Honra ou da Honra enquanto Fenômeno Social               

Podemos delinear o que pode ser entendido por honra, com o fim específico de tratá-la no contexto do art. 20 do Código Civil brasileiro de 2002, partindo da análise do tratamento jurídico que a ela foi dado. Podemos, todavia – e esse caminho nos parece mais interessante -, partir de uma observação da honra enquanto fenômeno ou fato social, para então pensarmos as razões que garantiriam sua tutela pelo Estado, em especial confrontando-a com o princípio mors omnia solvit.

 Baseamo-nos, em grande escala, nas conclusões de Robert Alexy [1] quanto à necessidade de se distinguir indagações ético-filosóficas e jurídico-dogmáticas na análise de direitos subjetivos. Na mesma linha do jurista alemão, julgamos que, diante da insuficiência de material normativo preexistente acerca do tema em questão, seremos levados a fundamentar a aplicabilidade dos arts. 12 e 20 do Código Civil brasileiro mediante a exploração de valorações independentes. No caso, a saída será a análise empírica, voltada à argumentação histórica e teleológica.

Partimos da premissa de ser a honra na verdade, um conceito indeterminado, mas cujo uso cotidiano nos fornece alguns indícios de como pode ser o termo entendido, sem que em torno disso haja grandes discordâncias. Enquanto indeterminado, o conceito de honra exige densificação, ou seja, uma argumentação capaz de atribuir-lhe um conteúdo minimamente claro e que seja aceito em larga escala. A força argumentativa da interpretação dependerá, dentre outros fatores, dos fatos observados como fundamento para defender tal ou qual posição.

Julgamos prudente partir, no presente caso, da definição de honra segundo o dicionário [2]:

Honra. 1 Sentimento que leva o homem a procurar merecer e manter a consideração pública. 2 Pundonor. 3 Consideração ou homenagem à virtude, ao talento, às boas qualidades humanas. 4 Probidade. 5 Fama, glória (…).

Permitindo-nos simplificar o conceito, é possível observar duas definições mais relevantes para o presente momento [3]. A honra enquanto sentimento e a honra enquanto status, ou imagem. Podemos dizer, em síntese, que os significados se dividem entre (i) um sentimento de busca e manutenção da consideração pública (status ou imagem positivos) e (ii) essa própria consideração pública, objeto de busca.

Diante da proximidade das definições e da irrelevância na distinção para o presente propósito, não haverá prejuízo em tratarmos a honra considerada nesse duplo aspecto. Em suma, ela consiste em um conjunto de observações alheias acerca do indivíduo ao qual ela se refere ou à busca pela manutenção ou melhoria dessas observações que, conjugadas, compõem um quadro de impressões acerca dele. Simplificadamente, a honra equivale em grande medida à reputação ou à busca pela melhoria da reputação, ao pudor [4] e, de certa forma, à vaidade.

Semelhante tratamento é dado ao tema em documentos históricos, capazes de densificar um tanto mais esse conceito indeterminado. Um exemplo proeminente – em parte por causa de sua antiguidade – é a Ilíada, de Homero, na qual a honra ocupa um papel central nos poemas, sendo a cólera de Aquiles sua encarnação e o herói a figura paradigmática de uma visão de mundo que a colocava à frente de outras virtudes [5].

O lugar central que ela ocupava era de principal móvel para a ação dos heróis, fato que a personagem Aquiles ilustra claramente ao escolher a bela e honrosa, porém precoce, morte do que a vida longa e pacífica.

Sob uma abordagem distinta [6], porém significando coisa semelhante, senão idêntica, a honra constituiu também objeto de análise de Aristóteles, na Ética a Nicômaco [7]:

A consideração dos tipos principais de vida mostra que as pessoas de grande refinamento e índole ativa identificam a felicidade com a honra; pois a honra é, em suma, a finalidade da vida política. No entanto, afigura-se demasiado superficial para ser aquela que buscamos, visto que depende mais de quem a confere que de quem a recebe, enquanto o bem [maior] nos parece ser algo próprio de um homem e que dificilmente lhe poderia ser arrebatado. Dir-se-ia, além disso, que os homens buscam a honra para convencerem-se a si mesmos de que são bons. Como quer que seja, é pelos indivíduos de grande sabedoria prática que procuram ser honrados, e entre os que os conhecem e, ainda mais, em razão da sua virtude.           

 (…)           

O magnânimo, portanto, é um extremo com respeito à grandeza de suas pretensões, mas um meio-termo no que tange à justeza das mesmas; porque se arroga o que corresponde aos seus méritos, enquanto os outros excedem ou ficam aquém da medida. Se, pois, ele merece e pretende grandes coisas, e essas acima de todas as outras, há de ambicionar uma coisa em particular. O mérito é relativo aos bens exteriores; e o maior destes, acreditamos nós, é aquele que prestamos aos deuses e que as pessoas de posição mais ambicionam, e que é o prêmio conferido às mais nobres ações. Refiro-me à honra, que é, por certo, o maior de todos os bens exteriores.”

Aristóteles, como se pôde observar, trata a honra também em um duplo aspecto. Por vezes, algo que buscamos, ainda que para convencermo-nos de nosso valor, e em outras ocasiões a temos como nosso maior bem exterior.

Deve-se observar, em relação aos dois documentos históricos mencionados, que o conteúdo daquilo que era considerado honra sofreu diversas alterações [8], mas sua alta relevância na vida política e social permaneceu.

Aproximando-se, portanto, de um conceito menos indeterminado, que possa amparar as futuras investigações quanto à aplicabilidade dos arts. 12 e 20, parágrafo único, do Código Civil brasileiro, nota-se que, por um lado, a honra serve ao indivíduo como reflexo de seu caráter, tal como expresso pelos outros por suas opiniões, como um retrato wildiano cujos traços são capazes de provocar, àquele representado, repúdio ou orgulho.

Sob essa perspectiva voltada ao interior, àquilo que denominamos subjetividade, a honra dialoga com nossa própria noção de identidade, pois nos mostra o que somos aos olhos dos outros.

Simultaneamente, os outros veem também, nesse repositório de considerações que circunda o indivíduo, uma forma de narrativa quanto às nossas qualidades morais e intelectuais, à maneira de um anúncio que antecipa quem é o sujeito a que se refere. Sua honra, rebaixada ou exaltada, lhe antecede.

Nas palavras de Yussef Said Cahali [9], citando Nélson Hungria:

“(…) honra, entendida quer esta como o sentimento da nossa dignidade própria (honra interna, honra subjetiva), quer como o apreço e respeito de que somos objeto ou nos tornamos merecedores perante os nossos concidadãos (honra externa, honra objetiva, reputação, boa fama). Assim como o homem tem direito à integridade de seu corpo e de seu patrimônio econômico, tem-no igualmente à indenidade do seu amor próprio (consciência do próprio valor moral e social, ou da própria dignidade ou decoro) e do seu patrimônio moral. Notadamente no seu aspecto objetivo ou externo (isto é, como condição do indivíduo que faz jus à consideração do círculo social em que vive), a honra é um bem precioso, pois a ela está necessariamente condicionada a tranquila participação do indivíduo nas vantagens da vida em sociedade.”

Por ambas as perspectivas, subjetiva ou objetiva, é possível ver repercussões – sem, para isso, adentrarmos em uma psicologia social – de ordem psíquica e patrimonial decorrentes da composição da honra – se negativa ou positiva. As consequências da elevação ou do rebaixamento da honra submetem-se a incontáveis variáveis, cuja análise é ora impertinente ao projeto, bastando exemplificá-las sucintamente em hipóteses como a suscetibilidade de tomar por verdade aquilo que lhe reputam, ou relevância direta da imagem na condução da vida profissional e/ou social (por exemplo, no campo político, no qual, segundo Aristóteles, constitui a própria finalidade).

Há, de todo modo e é incontroverso, efeitos práticos na exaltação ou deterioração da honra, sejam eles de ordem psíquica, patrimonial ou qualquer outra. De maneira muito clara, ora tomada como expressão sintética da relevância social da honra, Yussef Said Cahali a coloca como condição para o gozo das vantagens sociais.

É possível, também, observar que igualmente sob uma ótica que a considera no duplo aspecto, ou seja, tanto enquanto objeto de busca como enquanto bem que possuímos com estima, a honra constitui um objeto imaterial e transcendente ao indivíduo.

Essas características nos importam na medida em que se faz necessário, a fim de melhor esclarecer o objeto ora tratado, diferenciar a imagem-honra da imagem-retrato. Esta é material, cuida-se de uma representação do indivíduo, de sua natureza corpórea que lhe é imanente.

Maria Helena Diniz esclarece que a imagem-retrato consiste na representação dos atributos físicos do indivíduo capaz de identificá-lo, seja por foto, escultura, desenho, etc. O direito a essa forma de imagem, segundo ela, é o de não ter o representado sua efígie exposta ao público ou mercantilizada sem seu consenso [10].

Em contrapartida, a imagem-atributo (i.e., honra) consiste em um conjunto de características de ordem intelectual atribuídas por outrem a um indivíduo. É, portanto, como já foi dito, imaterial e transcendente ao indivíduo. A imaterialidade é evidente. A transcendência, a fim de melhor esclarecê-la, pretendemos seja interpretada em contraposição à imanência das qualidades corpóreas do indivíduo.

O reconhecimento dessa distinção ganha corpo em nosso ordenamento jurídico no comando expresso no art. 5º, inciso X, da Constituição Federal de 1988, que garante a inviolabilidade tanto da imagem (imagem-retrato) quanto da honra (imagem-atributo).

Todavia, as apontadas diferenças entre ambas se esgotam aqui, uma vez que é certo que da violação da imagem material não se seguem unicamente efeitos de ordem patrimonial. A representação pictórica de um indivíduo, dadas as circunstâncias, pode ter o condão de simultaneamente identificá-lo e imputá-lo características morais [11], de modo que do resultado se extrai uma significação ofensiva. De modo ainda mais simples, pode cuidar-se de uma representação que viola a privacidade do representado e lhe expõe à ridicularização pública.

A violação à imagem-retrato, portanto, pode constituir simultaneamente violação à honra. Cumpriu ao constituinte, observando a distinção fática, regulamentá-las ambas de modo a justamente tutelar as hipóteses em que essa simultaneidade não ocorre.

Em retrospectiva, o que se pretendeu – e acredita-se ter sido minimamente conquistado – é atribuir contornos mais claros à noção de honra enquanto fenômeno social. Conjuntamente, sua relevância é evidenciada pela preocupação que já a colocava entre tópicos poéticos e filosóficos antigos concernentes às fontes motivacionais da ação humana.

Tornou-se evidente, também, que nos discursos que dela tratam, em especial os não jurídicos, a honra circunscreve-se ao indivíduo ao qual ela se refere. Poder-se-ia, analisando melhor alguns textos da Antiguidade, suscitar a questão da tutela da honra dos mortos, sendo necessário, porém, proceder com a devida cautela de que tratam de sistemas baseados em crenças metafísicas e teístas, insustentáveis num estado laico.

Importa, agora, levando-se em conta as conclusões precedentes, dirigirmos a análise ao tratamento do tema pela legislação brasileira, primeiramente em relação à tutela dos direitos de personalidade – mais especificamente a honra – pelo ofendido e, posteriormente, pelos parentes supérstites.

3 A Honra como Direito Fundamental e como Direito da Personalidade       

Seguindo o projeto deste artigo, faremos a transição entre o que foi circunscrito no campo da honra enquanto fenômeno social, para então vê-lo à luz do tratamento normativo a ele dado em certos momentos históricos julgados pertinentes, chegando enfim à legislação brasileira atual.

Baseamo-nos, inicialmente, em alguns documentos históricos capazes de nos mostrar que a relevância social da honra e os efeitos de sua busca ou violação garantiram-lhe espaço dentre os alicerces da organização jurídica das sociedades, até mesmo na Antiguidade ocidental [12]. Ou seja, poderemos vislumbrar de que modo a honra ganhou existência jurídica em tempos remotos.

Pode ser considerado um indício da centralidade da honra na organização social a existência da chamada dike kakegorias, procedimento trazido aos tribunais áticos na Grécia Antiga, cujo objeto era o julgamento de indivíduos que atribuíam aporrheta, i.e. epítetos humilhantes, a outros. Harry Thurston Peck observa que os ofendidos podiam ser vivos ou mortos, e até mesmo o Estado, na pessoa de um agente público [13].

De modo semelhante, a matéria foi também regulamentada na Lei das Doze Tábuas, na Antiguidade romana. Reinhard Zimmermann avalia que a ofensa à honra teria sido uma das primeiras matérias disciplinadas em completa ruptura com a Lei de Talião, garantindo-se ao ofendido, em contraposição à ofensa equivalente dirigida ao ofensor, reparação econômica [14]. Ele prossegue, ainda, afirmando [15]:

Nem todo tipo de abuso verbal era então convicium [injúria]. Tinha que ser pronunciado em alto som (id solum, quod cum vociferatione dictum est), e tinha de ser dito em meio a um grande grupo de pessoas ([…] quod in coetudictum est). De modo a constituir um delito, o clamor deveria se direcionar a uma pessoa específica (…), mas não era necessário que o endereçado estivesse presente quando era insultado. Finalmente, uma ação somente poderia ser trazida a julgamento se a injúria estivesse em desacordo com os padrões morais da comunidade (adversus bonos mores huius civitatis) e fosse capaz de levar a pessoa ofendida à má reputação ou ao desprezo (quae […] [sc.: vociferationem] ad infamiam vel invidiam alicuius spectaret).”

Vê-se, então, que já na Antiguidade a proteção à honra era juridicizada e havia semelhante tratamento à injúria dirigida ao ausente nas práticas jurídicas grega e romana. Todavia, embora se possa notar certo rigor, especialmente na Lei das Doze Tábuas, quanto à caracterização das circunstâncias em que se constitui uma injúria, não há suficiente esclarecimento quanto aos critérios que garantem ao ausente o direito à tutela da honra. Seria possível apontarmos, novamente, para a fundamentação metafísica-teísta das leis antigas, embora isso não afaste de modo algum a relevância social da tutela.

Não obstante a carência de justificativa apontada, foi em perfeita consonância com as legislações antigas [16] que os direitos de personalidade, dentre os quais o direito à tutela da honra, ganharam relevância e asseguraram-se enquanto direitos fundamentais do homem ao longo dos séculos [17]. Atualmente, pode-se observar dentre os direitos essenciais a honra, conforme redação do art. 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948:

Art. 12. Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataque.”

Nossa Constituição Federal de 1988 garantiu em semelhante redação a mesma proteção jurídica à imagem enquanto direito fundamental (art. 5º, X), e seu status de direito de personalidade pode ser extraído do art. 1º, inciso III, que estabelece como fundamento da República a dignidade da pessoa humana.

Ambos os diplomas recentes, representando aqui seu tratamento com pretensão de universalidade e seu tratamento doméstico, embora assegurem a tutela da honra como direito fundamental e de personalidade (segundo critérios que serão à frente esclarecidos), não tratam da honra do ausente – falecido ou não – ao modo das práticas jurídicas da Antiguidade. Esse ponto controverso passará a existir adiante, no Brasil, com o advento do Código Civil de 2002.

 Acerca dos direitos de personalidade, espécies dos direitos fundamentais, ampla maioria da doutrina pátria sustenta que eles constituem direito subjetivo excludendi alios e, no caso específico da tutela da honra, o direito de exigir de todos um comportamento negativo, uma abstenção de pronunciar-se ou dirigir-se de forma ofensiva ou indesejada acerca de suas qualidades intelectuais (moral, habilidades, competências, etc.). Tutela-se, portanto, a honra.

Esse caráter subjetivo dos direitos de personalidade é melhor esclarecido por Silvio Rodrigues [18]:

Dentre os direitos subjetivos de que o homem é titular pode-se facilmente distinguir duas espécies diferentes, a saber: uns que são destacáveis da pessoa de seu titular e outros que não o são. Assim, por exemplo, a propriedade ou o crédito contra um devedor constituem um direito destacável da pessoa de seu titular; ao contrário, outros direitos há que são inerentes à pessoa humana e portanto a ela ligados de maneira perpétua e permanente, não se podendo mesmo conceber um indivíduo que não tenha direito à vida, à liberdade física ou intelectual, ao seu nome, ao seu corpo, à sua imagem e àquilo que ele crê ser sua honra.”

Significa ser possível, talvez necessário, como o faz a doutrina majoritária, dizer que os direitos de personalidade são absolutos, vitalícios, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, imprescritíveis e ilimitados [19]. Destaca-se, sobretudo, o caráter personalíssimo dos direitos de personalidade, que transparecem em especial nos atributos de vitaliciedade e intransmissibilidade.

Maria Helena Diniz explicitamente trata destes atributos [20]:

São intransmissíveis, visto não poderem ser transferidos à esfera jurídica de outrem. Nascem e se extinguem ope legis com o seu titular, por serem dele inseparáveis. Deveras ninguém pode usufruir em nome de outra pessoa bens como a vida, a liberdade, a honra etc.

(…)     

Os direitos da personalidade são necessários e inexpropriáveis, pois, por serem inatos, adquiridos no instante da concepção, não podem ser retirados da pessoa enquanto ela viver por dizerem respeito à qualidade humana. Daí serem vitalícios; terminam, em regra, com o óbito o seu titular por serem indispensáveis enquanto viver, mas tal aniquilamento não é completo, uma vez que certos direitos sobrevivem. Deveras ao morto é devido respeito; sua imagem, sua honra e seu direito moral de autor são resguardados.”

Quer nos parecer razoável afirmar que os direitos de personalidade são direitos personalíssimos, pois dizem respeito exclusivamente ao indivíduo que os detém. No caso da honra, tanto mais evidente, seguindo-se a interpretação dada ao termo, que diga respeito ao ofendido.

Eis, então, o ponto de controvérsia. Por um lado, reconhece-se a tutela da honra enquanto direito fundamental de personalidade, de modo a serem nele reconhecidos atributos da vitaliciedade, intransmissibilidade e inatismo, ou seja, o caráter de direito personalíssimo. E, nesse aspecto, o direito à tutela da honra tem sua existência condicionada à existência daquele sobre o qual dita honra concerne.

Essa posição é ainda reforçada quando se considera que a doutrina e legislação majoritárias tratam da morte como o fim da existência da pessoa natural (art. 6º do Código Civil de 2002) e, em virtude dos atributos acima mencionados, também da personalidade, conforme é expresso pelo brocardo mors omnia solvit. Silvio Rodrigues bem consignou que o indivíduo adquire sua personalidade ao nascer com vida, e ela deixa de existir com sua morte, de forma que com ela deixa o indivíduo de titularizar direitos [21]. Nesse sentido o pensar de Rosenvald e Farias, que lecionam:

“(…) a tutela jurídica concedida pelo parágrafo único do art. 12 da Lei Civil é dirigida às pessoas vivas, permitindo que sejam defendidos os direitos da personalidade do seu parente, cônjuge ou companheiro já morto.

(…) Trata-se, assim, de exercício de direito próprio (de uma legitimidade autônoma para ajuizar uma ação) e não de mera substituição processual.” [22]

Todavia, em posição oposta, o próprio Código Civil de 2002 (arts. 12 e 20) e a doutrina majoritária [23] defendem o prolongamento post mortem de alguns direitos subjetivos, tais como o direito à tutela da imagem, da honra, do direito moral de autoria, etc.

As posições parecem-nos inconciliáveis e, sendo esta controvérsia o objeto central desse estudo, dedicaremos a ela uma análise pormenorizada.

4 A Tutela da Honra Alheia e o Viés de sua Função Social        

Adiantamos sermos contrários à noção de que há prolongamento post mortem de direitos personalíssimos. Isso não significa dizer, entretanto, que negamos eficácia aos arts. 12 e 20 do Código Civil, posto que defendemos, simultaneamente, a possibilidade de tutela da honra do falecido pelo familiar supérstite.

Todavia, será apenas por uma via indireta que se estará tutelando a honra do de cujus. Como a personalidade extingue-se com a morte, e com ela os direitos de personalidade, não se pode falar em persistência de direitos post mortem tutelados pelo Estado. Ou seja, a rigor, não é o direito do falecido que se estará tutelando.

Será necessário, então, conciliarmos a posição que rejeita o prolongamento dos direitos após a cessação da existência natural do indivíduo com os dispositivos do Código Civil, buscando encontrar qual é, de fato, o objeto jurídico por eles tutelado.

Primeiramente, incumbe-nos analisar a tutela da honra pelo próprio indivíduo que sofreu ofensas, como caminho mais simples para encontrar as razões pelas quais o Estado garante essa proteção, levando-se em conta, ainda, tratar-se de matéria presente nos discursos jurídicos da Antiguidade clássica. Ou seja, devemos reconhecer essa tutela como resposta a uma aspiração social persistente na história.

Indaga-se, portanto, de que modo a honra constitui, ao modo tal qual ela foi definida acima, um objeto passível de ser garantido como direito de personalidade fundamental do homem. Para responder a isto, é necessário voltarmo-nos ao fenômeno social.

Como mencionamos acima, citando Yussef Said Cahali, a honra é socialmente relevante na medida em que garante àquele que tem boa reputação o gozo das benesses da vida em comunidade. A má reputação pode trazer, dependendo do ato repudiado, isolamento do indivíduo desonrado.

É, também, inegável que há uma dimensão psicológica não resultante de um isolamento do indivíduo cuja honra é ofendida, mas diretamente associada à sua autoimagem.

Esses dois objetos jurídicos simultaneamente tutelados pelo Estado, ao garantir a cessação das ofensas à honra, são de compreensão mais fácil do que o objeto da investigação ora em curso. Sendo diretamente relevante ao indivíduo preservar-se das ofensas, dada a possibilidade de que impliquem em danos à sua autoimagem ou dificuldades às suas atividades cotidianas, é plenamente justificável o interesse em garantir-lhe a tutela.

Porém, e essa questão é a mais complexa, em que medida há relevância quanto à proteção das ofensas dirigidas a um terceiro e, em específico, a um parente? Imaginemos, a princípio, um parente vivo, e tentemos posteriormente analisar a incapacidade de autodefesa do ausente, morto ou não, como critério permissivo da tutela da honra do de cujus por terceiro.

De início, devemos observar que a possibilidade dessa forma de proteção existe enquanto hipótese de representação. Aos pais, em razão do poder familiar, cabe a tutela da honra dos filhos incapazes, do mesmo modo como se dá nos casos de tutela e curatela. Trata-se da tutela de interesse alheio em nome alheio.

Como fundamento, não vislumbramos a possibilidade de se suscitar a ligação afetiva entre representante e representado, embora sua existência seja possível (e, no caso do poder familiar, quase certa). Tutores e curadores podem ser nomeados pelo Poder Judiciário sem que tenham quaisquer laços de parentesco ou outros com os incapazes [24], existindo até mesmo a figura do representante remunerado [25]. Logo, a afetividade não é fator necessário ou suficiente para a tutela ou curatela.

Parece-nos mais plausível que o fundamento seja a positivação dos direitos de personalidade, garantindo-se pelos meios possíveis que aqueles que não o podem fazer por sua própria conta tenham alguém nomeado para agir em seu lugar.         É possível ver, por esse aspecto, que a questão da representação se aproxima da controvérsia acerca da tutela dos direitos dos mortos.

Todavia – e essa é a grande distinção -, não há previsão legal para a proteção jurídica, em nome próprio, dos direitos de terceiros moralmente ofendidos, sejam eles parentes ou não, com exceção desta hipótese que constitui a questão central do artigo. Isso porque, como foi afirmado acima, a honra constitui direito de personalidade e, enquanto tal, é direito personalíssimo.

No caso da tutela da honra do de cujus, caso defendêssemos o prolongamento post mortem dos direitos de personalidade, seríamos obrigados a admitir, em paralelo, a legitimação extraordinária em favor do falecido, cuja personalidade, a teor dos arts. 2º e 6º do CCB e consoante o princípio omnia mors solvit, extinguiu-se com a existência natural.

Seria como se um sujeito inexistente tivesse direitos sendo violados, mas carecesse de legitimidade processual – em razão da sua inexistência – de tutelá-los, socorrendo-lhe o direito mediante a legitimação extraordinária. Tratar-se-ia de verdadeiro absurdo, capaz de ilustrar perfeitamente a problemática.

Se é pressuposto para a legitimação extraordinária a existência de uma esfera de direitos cuja tutela não é exercida por desinteresse ou impossibilidade (fática ou legal), não podemos admiti-la no caso do falecido. O ordenamento jurídico não poderia socorrer essa situação em relação a um titular a quem não se reconhece existência e personalidade jurídica.

Logo, repetimos, não há como admitirmos uma interpretação literal dos arts. 12 e 20 do Código Civil, quando referem-se à honra do de cujus.

O objeto tutelado, portanto, deverá pertencer à esfera de direitos existentes. No caso, do cônjuge sobrevivente, de qualquer parente em linha reta ou colateral até o quarto grau (art. 12, parágrafo único, e art. 20, parágrafo único, do Código Civil) [26].

Se admitirmos essa proposição, então seremos forçados a tentar, ao menos, delimitar o objeto jurídico tutelado. Conforme adiantamos, as duas hipóteses mais plausíveis limitam-se à honra do familiar supérstite, que se sente ofendido indiretamente pela ofensa dirigida ao de cujus, como se, ao modo da sinédoque, os laços familiares colocassem a parte como todo. A qualificação da parte se referiria, então, ao todo e, pela relação gênero-específica, a cada parte novamente.

A plausibilidade dessa afirmativa ganha força se tivermos em mente que essa relação gênero-específica pode ser vista à luz de um processo de formação da identidade. Vejo-me como um produto, em certo grau, do comportamento de meus familiares e, por outro lado, como uma das forças que influenciam no comportamento dos demais.

A outra hipótese consiste em atribuir à memória que os familiares têm do indivíduo um estatuto jurídico. A ofensa dirigida ao falecido atinge a imagem que o supérstite dele tem, e cuja preservação mereceu a tutela estatal. Quer nos parecer reforçar essa tese a existência de lei penal brasileira contrária ao vilipêndio de cadáveres ou suas cinzas (art. 212 do Código Penal).

O desrespeito ao cadáver nos parece ato mais grave do que o desrespeito às cinzas, mas ambas são tuteladas com a mesma força. Logo, se por um lado há um certo horror na noção de violação ao corpo, talvez em grau menor no que tange às cinzas do mesmo, por outro a garantia de tutela em igual medida (detenção, de um a três anos, e multa àquele que assim proceder) os circunscreve numa mesma esfera de direitos. As cinzas recebem o mesmo tratamento, pois, ainda que sequer a figura do indivíduo guardem, a ele remetem.

O que se pode afirmar é que, admitindo-se ambas as hipóteses como válidas, elas se referem a objetos jurídicos pertencentes aos indivíduos legitimados. Agem eles em nome próprio para a defesa de direito próprio. A conclusão nos é suficiente para que possamos cessar as investigações quanto à especificidade do objeto (se cuida-se da memória ou da honra indiretamente ofendida).

Quanto à honra, devemos consignar, por último, somente que excluímos, desde o início, a afeição como critério válido para a legitimação de terceiros contra ofensas dirigidas a um falecido. A razão é bastante simples. Ainda que sem explicitar as razões, talvez até mesmo pela dificuldade de um processo de investigação quanto à sua existência, o legislador delimitou a possibilidade de tutela aos familiares (cônjuge, parentes em qualquer grau na linha reta e colaterais até quarto grau).

E, ainda que seja possível argumentar que o Poder Judiciário poderia, em determinada circunstância, admitir como legitimado um amigo do de cujus para fazer cessar ofensas a ele dirigidas, o fato é que a lei positiva brasileira elegeu a família em rol taxativo. Para tanto, seria necessário interpretar ampliativamente os arts. 12 e 20 do Código Civil, justificando qual objeto seria tutelado e quais as razões que permitiriam a legitimação do autor da ação.

O argumento, portanto, seria favorável à tese ora pretendida e evidenciaria ainda outro ponto relevante: o Código Civil trata a família em estrita consonância com o que dispõe o art. 226, caput, da Constituição Federal:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.”

 Enquanto “base da sociedade“, a família constitui uma verdadeira instituição jurídica dotada de forma específica tendo sido garantido a ela tratamento jurídico privilegiado. Também merecem ser lembradas as entidades familiares referidas nos parágrafos do art. 226 da CF além da abrangência que se tem dado pela doutrina e jurisprudência buscando acolher o consórcio entre homossexuais com fundamento no princípio da socioafetividade.

Sobre essa base assentaram-se novas realidades jurídicas, dentre as quais a possibilidade de tutela contra ofensas dirigidas a um membro falecido.

Sob pena de distanciarmos do tema, todavia, devemos nos ater ao fato da positivação da família como instituição nuclear no direito e indagarmos, para que possamos prosseguir, qual seria o interesse objetivo na possibilidade de defesa da honra, pela família, quando há ofensas a um membro falecido.

O interesse subjetivo, quer apontemos o objeto tutelado como memória, quer como a honra própria, parece ter sido suficientemente explicitado anteriormente. Uma vez que constituem objetos jurídicos pertencentes aos direitos de personalidade do indivíduo legitimado para agir, a pretensão individual de tutelá-lo parece plenamente justificável.

Quanto ao interesse objetivo, tomando-o como aquele que enseja a positivação dessas pretensões inicialmente difusas, parece se confundir com a própria noção de “função social“. Embora essas expressões – interesse objetivo e função social – sejam, também, indeterminadas, é numa relação dialógica que densificar-se-ão a si mesmos, e o último constituirá do primeiro a condição de possibilidade de sua aplicabilidade.

É dizer, a indeterminação dos conceitos diminui quando conjugados, um encontrando significação no outro.

Se a dúvida inicial consistia em qual objeto estaria a ser tutelado pelos arts. 12 e 20 do Código Civil, suscitando-se a impossibilidade de proteger um direito sem uma personalidade que lhe fosse subjacente, mesmo assim não se afastou a tese de que são aplicáveis. Há, além do interesse subjetivo dos indivíduos que se sentem lesados quando são dirigidas ofensas a algum membro falecido da família, um interesse objetivo em salvaguardar a honra do de cujus.

Esse interesse transparece na persistência histórica das pretensões de tutela, nas caracterizações de atos como ofensas ainda que dirigidos a um ausente, fatos sociais que configuram determinados fenômenos como juridicamente relevantes.

A função social da tutela da honra do falecido, portanto, reside na pretensão coletiva de garantir a uma aspiração social, cujos fundamentos carecem de esclarecimentos, a tutela estatal. É dizer, o processo aparentemente racional e crítico pelo qual a sociedade positiva direitos por vezes se apoia em indeterminações com o intuito de, a despeito das possíveis problemáticas que surjam diante do olhar minucioso, operacionalizar a tutela de pretensões existentes.

Do mesmo modo pode ser vista a instituição da família como elemento nuclear da sociedade e, simultaneamente, sua legitimação para a proteção da imagem do morto em detrimento de outros cujos laços afetivos são muitas vezes maiores.

Logo, a aplicabilidade dos arts. 12 e 20 do Código Civil parece garantir-se no atendimento à função social, se observados por uma ótica teleológica. Ou seja, é em função do fim, qual seja o atendimento a uma aspiração social presente, cujo conteúdo encontra dificuldades para integrar o rol de direitos civis, que se positiva um regramento abstruso mas que, não obstante, é aplicável e, em sua maior parte, eficaz.

                                   

5 Conclusão          

A pretensão de buscar compreender de que modo é possível a coexistência dos arts. 12 e 20 do Código Civil com as demais normas de nosso ordenamento jurídico ensejou primeiramente a explicitação da controvérsia a seu respeito. Por um lado, teríamos um razoável repertório do que viria a ser a honra, a injúria ou outras violações, e um grande rol de legislações da Antiguidade à contemporaneidade ocidental prescrevendo sua tutela.

No Brasil, além da tutela da honra pelo ofendido, os artigos mencionados garantem a proteção à imagem do falecido. Parte considerável da doutrina e jurisprudência preleciona que o fundamento de tal proteção reside no prolongamento post mortem de direitos personalíssimos. Todavia, existe um consenso em torno da morte como término da existência da personalidade, princípio consagrado mors omnia solvit.

Não se esclarece, porém, de que modo permaneceriam em vigor direitos que não se referem a quaisquer personalidades. Seriam direitos sem sujeitos?

Posicionamo-nos contrários a excepcionalidades ao princípio mors omnia solvit, de modo que não poderíamos sustentar a permanência de direitos dos falecidos. Entendemos necessário, portanto, situar a tutela à honra do de cujus no patrimônio daqueles legitimados pelo diploma civil, a fim de garantir coerência ao ordenamento jurídico e, aos dispositivos legais em questão, sua aplicabilidade.

Enquanto objeto pertencente à esfera do legitimado, a honra do falecido deve tomar formas passíveis de tutela pelo direito. Avaliamos, nesse aspecto, que elas consistem na memória do de cujus ou na honra do próprio parente supérstite, indiretamente ofendido pelas injúrias.

 Por último, restou-nos analisar que sob ótica é possível pensar a necessidade de se tutelar tais objetos, fixando como fundamento, ou condição de possibilidade, a existência de uma certa demanda difundida na sociedade cujo atendimento condiz com a noção, in casu, da função social. Em outras palavras, é pelo atendimento a essa pretensão, ou seja, pelo fim ao qual a garantia da tutela serve, que se compreende como é possível dar-lhe aplicabilidade.

Outro elemento nos permite a mesma conclusão. A família é inserida, pela Constituição Federal expressamente e pelos demais dispositivos implicitamente, no núcleo das instituições sociais, sendo a tutela da honra do falecido, a esse respeito, uma forma de tutela da própria família. Por esta razão são legitimados somente aqueles que a integram.

Todavia, uma crítica ainda se faz necessária. Se por esse processo integrativo do direito é possível fornecer razões para a tutela do objeto em questão e justificar, em parte, a legitimação por ele estabelecida para seu exercício, também se mostra visível a carência argumentativa que, de um lado, fixa a família como instituição nuclear do direito e, de outro, exclui do rol de legitimados para a tutela da honra do falecido o amigo do de cujus.

Ora, as famílias devem ser consideradas nucleares na medida em que se observa nelas um liame afetivo que as mantém unidas ao largo de outras instituições. Ou seja, ela somente é relevante na medida em que algum laço a mantém unida. Dá-se, portanto, juridicidade a esse laço afetivo.

Por qual razão, então, não se reconheceria como legítimo qualquer indivíduo que demonstrasse tamanha afetividade ao falecido, sem que dele fosse parente, se em defesa de sua honra ele buscasse a tutela estatal?

A resposta, ao que nos parece, consiste no que foi, segundo intencionamos, o objeto deste artigo. A eficácia e a aplicabilidade do direito não estão condicionadas à racionalidade e explicitação de todas as razões subjacentes às normas. É possível, em retrospectiva, fundamentar a delineação dos objetos jurídicos e sua operacionalização na prática jurídica.

 Não é possível, contudo, pensar uma regra geral que sirva à eleição de objetos como juridicamente relevantes, por quais razões e de que forma devam ser tutelados. Ressaltamos que somente a persistência histórica de determinadas pretensões poderiam justificar muitas das leis atuais, sem que as razões pelas quais essas pretensões subsistam sejam esclarecidas.

Em síntese, a positivação de muitas regras relativas aos aspectos mais distantes da esfera patrimonial do homem ainda permanece fora do alcance do jurista. Se ele elabora normas e com elas opera o direito é porque a eficácia e a aplicabilidade delas passa ao largo de sua atuação.

                                             

6 Bibliografia

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; Poética/Aristóteles: seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

CAHALI, Yussef Said. Dano moral. 2. ed. São Paulo: RT, 1998.

CHINELLATO, Silamara Juny de Abreu. Direitos do autor e direitos da personalidade. Tese para Concurso de Professor Titular de Direito Civil da USP, 2008.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 1.

FARIAS, Christiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

FRANÇA, Rubens Limongi. Direitos da personalidade: coordenadas fundamentais. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 72, n. 567, p. 9-16, jan. 1983.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 1.

HOMERO. Ilíada. Trad. Lourenço, F. São Paulo: Companhia das Letras/Penguin, 2013.

PECK, Harry Thurston. Harpers dictionary of classical antiquities. New York: Harper and Brothers, 1898.

PLATÃO. República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbbenkian, 2001.

RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral. São Paulo: Saraiva, 1994. v. 1.

XENÓFANES DE COLOFÃO. Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Coleção Os Pensadores. v. 2.

ZANINI, Leonardo Estevam de Assis. Direito de autor. São Paulo: Saraiva, 2015.

ZIMMERMANN, Reinhard. The law of obligations: roman foundations of the civilian tradition. Oxford: Clarendon Press, 1996.

[1] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 183.

[2] Dicionário Michaelis.

[3] É importante esclarecer, também, que a finalidade da discussão delimita o escopo de interpretação do termo indeterminado.

[4] Platão já apontava, na República, para a existência do thymós, simultaneamente referindo-se à irascibilidade e ao pudor como motores da ação humana ao lado da ephitymia e o nous. O termo advém de timé, traduzido como “valor percebido”, ou “honra percebida” (PLATÃO. República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbbenkian, 2001).

[5] HOMERO. Ilíada. Trad. Lourenço, F. São Paulo: Companhia das Letras/Penguin, 2013.

[6] A distinção reside especialmente no lugar que a honra ocupa como móvel para a ação, além, é claro, da estrutura argumentativa em Aristóteles ausente no poema homérico.

[7] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; Poética/Aristóteles: seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

[8] Primeiras críticas aos ideais da honra guerreira do “mundo homérico” já haviam sido feitas, muito antes de Platão, por Xenófanes de Colofão, como se vê em DK 21 B 2 (XENÓFANES DE COLOFÃO. Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Coleção Os Pensadores. v. 2).

[9] CAHALI, Yussef Said. Dano moral. 2. ed. São Paulo: RT, 1998. p. 288.

[10] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 1. p. 129-130.

[11] Além da possibilidade de retratar o indivíduo em situações em que há uma narrativa explícita, a própria imagem-retrato, em sua dimensão unicamente estética, pode violar a honra do retratado. Podemos aqui lembrar o que R. Limongi França chamou de “aspecto moral da estética humana” (FRANÇA, Rubens Limongi. Direitos da personalidade: coordenadas fundamentais. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 72, n. 567, p. 9-16, jan. 1983).

 [12] Evidências disto também são encontradas em textos não jurídicos da Antiguidade grega, dentre os quais citou-se Ética a Nicômaco e A República.

[13] É extremamente relevante observarmos como a ofensa a um agente público podia ser considerada uma ofensa diretamente ao Estado, já que o critério aí encontrado parece ser o gênero específico ou, mais precisamente, pars pro toto (PECK, Harry Thurston. Harpers dictionary of classical antiquities. New York: Harper and Brothers, 1898).

[14] ZIMMERMANN, Reinhard. The law of obligations: roman foundations of the civilian tradition. Oxford: Clarendon Press, 1996. p. 1.051.

[15] Idem, p. 1.054.

[16] Sílvio Rodrigues avalia: “Entre as soluções legislativas, creio que as mais antigas são as do Código português de 1867 (arts. 359 e s.), a do art. 12 do Código alemão de 1896 e a do Código suíço de 1907 (arts. 27 e 28), sendo que o Código alemão, em seu parágrafo 823, a respeito dos atos ilícitos, faz referência a outros direitos de personalidade, suscetíveis de serem violados, causando prejuízos a seu titular” (Direito civil: parte geral. São Paulo: Saraiva, 1994. v. 1. p. 83).

[17] Código de Napoleão (1.804), art. 1.382: “Tout fait quel conque de l’homme, qui cause à autrui um dommage, oblige celuui par la faute du quel il est arrivé, à le réparer”.

Também o Bürgerliches Gesetzbuch (BGB) dispõe, na Seção 253, traduzido para o inglês: “(1) Money may be demanded in compensation for any damage that is not pecuniary loss only in the cases stipulated by law. (2) If damages are to be paid for an injury to body, health, freedom or sexual self-determination, reasonable compensation in money may also be demanded for any damage that is not pecuniary loss”.

[18] RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral. São Paulo: Saraiva, 1994. v. 1. p. 81.

[19] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 1. p. 119-120. Da mesma forma os descreve: GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 1. p. 157-158.

[20] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 1. p. 119-120.

[21] RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral. São Paulo: Saraiva, 1994. v. 1. p. 38.

[22] FARIAS, Christiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 169.

[23] Chinellato, citada por Zanini, elogia a inovação trazida pelo Código Civil com o art. 12, parágrafo único, entendendo que o mesmo afasta o brocardo mors omnia solvit aos direitos da personalidade. Entende a autora que tais direitos se estendem para além da vida da pessoa natural, não terminando com a morte, uma vez que ao morto são também reconhecidos direitos da personalidade (CHINELLATO, Silamara Juny de Abreu. Direitos do autor e direitos da personalidade. Tese para Concurso de Professor Titular de Direito Civil da USP, 2008. p. 222 apud ZANINI, Leonardo Estevam de Assis. Direito de autor. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 212).

[24] Art. 1.732 do Código Civil.

[25] Art. 1.752 do Código Civil.

[26] Em sentido contrário leciona Zanini: “Contudo, não se pode admitir que depois do falecimento nada existe, pois o ser humano que foi exige defesa para além da morte. Nessa linha, acreditamos que a teoria da personalidade jurídica parcial é a mais adequada, pois admite que o falecido continue sendo portador de determinados direitos da personalidade, bem como reconhece a existência de uma personalidade jurídica parcial após o fim da vida, a qual estaria atrelada aos direitos da personalidade. Ademais, tal concepção encontra fundamento no próprio Código Civil e não deixa meramente a cargo da vontade dos parentes próximos a defesa do de cujus” (ZANINI, Leonardo Estevam de Assis. Direito de autor. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 434).