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FRUSTRAÇÕES E DESASTRES NO PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO

FRUSTRAÇÕES E DESASTRES NO PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO

Ivan Allegretti

 Cristian Fetter Mold

 

O título deste artigo é propositalmente dramático e apelativo, justificando-se pela necessidade de chamar a atenção para problemas sérios que estão se tornando cada vez mais frequentes no contexto de planejamentos sucessórios que não foram adequadamente amadurecidos, em especial pela falta de uma reflexão cuidadosa quanto às suas implicações tributárias, cíveis e societárias.

O objetivo de qualquer planejamento sucessório é traçar, ainda em vida, como se dará a transferência do patrimônio pessoal e a continuidade dos negócios quando do falecimento de determinada pessoa, buscando não apenas prevenir litígios, mas também distribuir de maneira adequada os bens e negócios conforme as características pessoais dos herdeiros – e, é claro, o quanto for possível, reduzir a carga tributária.

Um dos instrumentos mais utilizados para o planejamento sucessório consiste na criação de uma pessoa jurídica destinada a administrar os bens, em especial os imóveis, ou um conjunto de empresas dos progenitores de uma determinada família. A criação de tais empresas – comumente denominadas de holdings patrimoniais – envolve a transferência de cotas de participação, bens e direitos da pessoa física para a pessoa jurídica, que então passa a geri-los.

Holding, em seu significado técnico, é uma empresa jurídica que exerce o controle de outras pessoas jurídicas. Enquanto uma patrimonial corresponde a uma pessoa jurídica que explora economicamente o próprio patrimônio, notadamente imóveis. Assim, holding patrimonial corresponde tecnicamente a uma pessoa jurídica que simultaneamente exerce o controle de outras empresas e explora o patrimônio próprio.

É, no entanto, disseminado o uso do termo holding patrimonial para corresponder a quaisquer destas realidades, mesmo quando não envolvam o controle de outras pessoas jurídicas.

A implementação de uma holding patrimonial é normalmente justificada, no contexto do Direito de Família, pelo argumento da redução de complexidade no processamento da partilha pós-morte, pois ao invés de inventariar diversos bens – empresas, casas, apartamentos, veículos etc -, transferem-se apenas as quotas sociais de uma única pessoa jurídica.

A mesma racionalidade se justifica na perspectiva do Direito Tributário, especialmente se os imóveis se localizam em diferentes Estados da Federeção – situação na qual a apuração do ITCD[1] enfrenta graves percalços.

Estes percalços, aliás, surgem não apenas na partilha de bens em decorrência de inventário, como também em razão de separação ou divórcio, visto que legislação prevê a incidência do ITCD sobre o excesso eventualmente verificado na divisão do patrimônio[2].

Por exemplo: se um determinado casal possui dois imóveis, um situado no Estado de Goiás e outro no Distrito Federal, caso em razão do divórcio deliberem que cada um ficará com 50% de cada imóvel, nada será devido a título de ITCD, pois o que ocorreu foi apenas a delimitação da copropriedade de cada um com relação ao acervo patrimonial que lhes pertencia mutuamente, não caracterizando doação.

Ocorre que se este mesmo casal decidir que cada um ficará com um dos imóveis, tal operação será submetida separadamente e simultaneamente aos Fiscos de Goiás e do Distrito Federal, que então atribuirão a cada um dos imóveis o valor que entenderem cabível. Ou seja, o cálculo não será baseado no valor declarado pelos contribuimtes, mas pelo valor arbitrado pelo Fisco segundo os parâmetros estabelecidos na legislação de cada Estado, de maneira que muito provavelmente um imóvel terá valor diferente do outro, o que resultará na apuração do ITCD em relação ao que exceder a metade do patrimônio.

Assim, ilustrativativamente, quando da apuração do imposto no Distrito Federal, a Fazenda Distrital normalmente mantém o valor do imóvel do Goiás tal como informado pelo contribuinte, mas aumenta o valor do imóvel situado no DF, assim agravando a base de cálculo sobre a qual incidirá o ITCD. O mesmo acontece, na via inversa, quando da apuração do ITCD em Goiás, quando o Fisco Goiano mantém o valor do imóvel situado no DF e majora o valor do imóvel situado naquele Estado, resultando no agravamento do valor do imposto. No final, paga-se ITCD majorado tanto para o Estado de Goiás como para o Distrito Federal, dada a margem de discricionariedade que a legislação de cada Estado reconhece às Autoridades Fiscais para determinar a base de cálculo.

Problema semelhante ocorre na partilha em inventário: se for destinado ao cônjuge ou companheiro meeiro o percentual de 50% e aos herdeiros os outros 50%, em relação a todo o acervo patrimonial, o ITCD incidirá apenas sobre a parcela ideal de 50% transferida em razão do falecimento.

Mas a partir do momento em que houver a discriminação de bens específicos para cada um dos herdeiros, abre-se margem para a mesma interpretação aplicável ao divórcio, qual seja: a reavaliação do valor dos bens sob a ótica do Fisco e a consideração do excesso não oneroso como uma nova hipótese de incidência do ITCD: como uma doação dos demais herdeiros em favor daquele em relação ao qual foi verificado o excesso, em comparação com o percentual ideal que deveria ter recebido.

Como se percebe, portanto, a transferência de imóveis para uma pessoa jurídica preveniria uma série de percalços e agravamentos na apuração do ITCD. Isto porque, ao invés de haver a apuração do ITCD em cada Estado da Federação em que esteja situado cada um dos imóveis, bastará apurá-lo em relação às quotas da pessoa jurídica que é proprietária de todos estes imóveis.

Assim: a existência de dois ou mais imóveis situados em diferentes Estados da Federação é um indicativo da conveniência de criação de uma pessoa jurídica para administrá-los.

Ocorre que tal critério não é suficiente para que se decida transferir todos os imóveis da pessoa física para uma pessoa jurídica, sendo rigorosamente necessário considerar outros elementos, inclusive de natureza tributária (para não dizer de outros importantes elementos de outras naturezas).

É frequente que uma pessoa física proprietária de muitos imóveis transfira absolutamente todos os imóveis para uma pessoa jurídica administradora de bens próprios (patrimonial) animados única e simplesmente pelo fato de a tributação das rendas de aluguel ser inferior na pessoa jurídica, em comparação com a carga tributária que recairia sobre a pessoa física em relação aos mesmos rendimentos.

Mas pode ser frustrante que depois de algum tempo a mesma pessoa decida vender o imóvel onde reside para adquirir um outro de valor maior e então se dê conta de que não pode usufruir da isenção de imposto de renda sobre o ganho de capital (IRGC) concedida para a aquisição de um novo imóvel residencial. Isto porque a isenção é destinada exclusivamente para pessoas físicas, não aproveitando pessoas jurídicas.

Outro problema pode acontecer com imóveis que tenham sido adquiridos antes de 1988, em relação aos quais a legislação tributária concede reduções graduais na apuração do ganho de capital, ao ponto de zerar – isso mesmo, tornar nulo o valor devido de IRGC – em relação a bens cuja aquisição remonte a data anterior a 1969.

Ora, a transferência de titularidade do imóvel da pessoa física para a pessoa jurídica patrimonial, mesmo que para o fim de integralização do capital social, atualiza a data de aquisição, que passa a ser a desta última transferência, assim atirando na lata do lixo o direito de que dispunha o contribuinte.

Pode ser ainda pior: se por qualquer motivo ocorrer um fracasso econômico, uma pessoa jurídica patrimonial não será alcançada pela proteção legal destinada ao Bem de Família, pois o bem de família é forçosamente aquele de propriedade de pessoa física.

Bom frisar ainda que as pessoas envolvidas, leigas em assuntos jurídicos mais específicos, podem se prejudicar por não saberem, ou não serem esclarecidas, sobre as diferenças entre a configuração e a proteção dada ao Bem de Família dito “Legal” (regido pela Lei 8.009/90) e ao Bem de Família chamado “Voluntário” (regido pelos artigos 1.711 e seguintes do Código Civil brasileiro).

Destaque-se ainda que todos os aspectos acima devem ser analisados sem perder de vista a situação familiar das pessoas envolvidas. Qual o estado civil em que vivem, qual o regime de bens que rege seu casamento ou união estável, se possuem filhos, se todos são reconhecidos e registrados corretamente, se todos são da mesma relação, se são menores, se são capazes, se também já são casados ou não, se atuam no mesmo ramo dos pais, se porventura já são sócios dos pais ou se constam de alguma forma em algum Contrato Social, se já foi praticado algum tipo de adiantamento de herança, alguma doação, se há inventários em andamento, testamentos já redigidos ou ao menos idealizados, enfim, informações que terão um impacto relevante no momento de “planejar” a sucessão, esta, em última análise, engendrada, ao menos em tese, tendo em vista a próxima geração.

De mais a mais, observa-se com frequência o mau uso dos conceitos jurídicos que podem realmente confundir os menos familiarizados. Muitas vezes na prática diária, vemos a dificuldade de se lidar com as diferenças entre institutos de Direito Civil, tais como: (a) “renúncia à herança” e “cessão de direitos hereditários”; (b) “comunhão parcial de bens” e “comunhão universal de bens”; (c) “separação convencional de bens” e “separação obrigatória de bens”; (d) “colação”, “sonegação” e “redução das disposições testamentárias”; (e) “fração disponível da herança” e “fração legítima da herança”; (f) “usufruto”, “uso”, “habitação” e outros Direitos Reais; (g) “impenhorabilidade”, “incomunicabilidade” e “inalienabilidade”, dentre tantos outros.

Mesmo os prosaicos “graus” de parentesco são algo para ser visto, preferencialmente, por quem entende do assunto, vez que é corriqueiro que não se saiba fazer essa contagem – como servem de exemplo os famosos “primos de primeiro” e “de segundo grau”, que são termos, do ponto de vista técnico, absolutamente errôneo, embora de largo uso popular.

Além do mais, pela observação diuturna dos autores deste texto, não tem sido incomum a “procura” por algum tipo de planejamento quando membros da família já não respondem por si, estão adoentados e/ou incapacitados para os atos da vida civil, ainda que tal situação ainda não tenha sido proclamada judicialmente.

Enfim, não parece preciso ir mais longe para que se perceba que nenhum critério considerado isoladamente será suficiente para decidir uma estratégia adequada, inteligente e racional do ponto de vista tributário, que assim mereça o nome de planejamento sucessório.

Vale a pena lembrar, por conseguinte que, no contexto de um efetivo planejamento sucessório, os aspectos tributário, cível e societário não podem ser considerados isoladamente, vislumbrando os autores a necessidade de serem considerados em conjunto os elementos de Direito de Família, Tributário, Societário e Empresarial aplicáveis, levando em conta as características pessoais, bem como as expectativas legítimas e factíveis dos envolvidos.

Pode-se dizer que o ponto de partida para um planejamento sucessório bem sucedido é a consideração adequada dos elementos humanos envolvidos, nada obstante a consideração dos demais aspectos acima citados sejam vitais para não comprometer, tampouco frustrar sua eficácia.

 

[1] Ou mais precisamente, o imposto sobre “transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos” previsto no art. 155, I, da Constituição de 1988, também grafado ITCMD em alguns Estados da Federação.

[2] No Distrito Federal, por exemplo, o art. 2º, § 1º, da Lei nº 3.804/2006 prevê que “Para efeitos deste artigo, presume-se doação o excesso não-oneroso na divisão de patrimônio comum ou partilhado, em virtude de dissolução da sociedade conjugal por separação judicial ou divórcio, de extinção de condomínio ou sociedade de fato e de sucessão legítima ou testamentária.”