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FRAUDE À EXECUÇÃO: LEI Nº 13.097/2015 VERSUS NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. RETROCESSOS NA DEFESA DO TERCEIRO ADQUIRENTE DE BOA-FÉ?

FRAUDE À EXECUÇÃO: LEI Nº 13.097/2015 VERSUS NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. RETROCESSOS NA DEFESA DO TERCEIRO ADQUIRENTE DE BOA-FÉ?

Alexandre Junqueira Gomide

Pode-se facilmente dividir a sistemática da fraude de execução no Brasil em dois períodos nitidamente distintos: antes e depois da Lei nº 13.097/2015.

Antes do advento de referido diploma, o tema era regido unicamente pelas disposições contidas no art. 593 do CPC/1973, cujo caput e inciso II assim dispunham: “Considera-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens: […] II – quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência“.

Por essa regra, recaía sobre o adquirente um ônus pesado, incongruente, tal a insegurança jurídica em que era lançado. Isso porque, conforme alertávamos em artigo de 2010[1], ainda que o comprador tomasse todas as cautelas necessárias no local da situação do imóvel, da residência do devedor e do trabalho do devedor, ainda assim poderia ser surpreendido “com demandas contra o devedor acerca das quais nem mesmo os documentos indispensáveis seriam capazes de alertá-lo“. E citávamos o caso de ação de execução em trâmite contra o vendedor no estado do Acre, enquanto imóvel, residência e domicílio do mesmo vendedor localizavam-se no estado de São Paulo. Fundamentando-nos em doutrina e jurisprudência majoritárias, destacávamos não ser minimamente razoável um sistema cujo pressuposto fosse a obtenção de certidões dos distribuidores de todas as comarcas do país; batíamo-nos, por fim, pela necessidade de proteção ao terceiro de boa-fé – assim reputado aquele que, mesmo tendo tomado as cautelas necessárias no local da situação do imóvel e na residência e domicílio do devedor, ainda assim não tenha conhecido a existência da demanda capaz de levar o devedor à insolvência. Depois do advento do Código Civil de 2002, em cujo substrato encontra-se a boa-fé, não era possível proceder de outra forma.

Desde o ano de 2006, até mesmo o legislador já havia começado a trabalhar pela mitigação de tal insegurança. Por meio da Lei nº 11.382/2006, alterações significativas foram introduzidas no texto do CPC/1973, entre as quais o oferecimento ao exequente da faculdade de obter certidão da execução a fim de averbá-la no registro de imóveis ou veículos (art. 615-A, caput). Vieram no mesmo sentido as disposições do § 3º do art. 615, segundo a qual “presume-se em fraude à execução a alienação ou oneração de bens efetuada após a averbação (art. 593)“; e a do § 4º do art. 659: “A penhora de bens imóveis realizar-se-á mediante auto ou termo de penhora, cabendo ao exequente, sem prejuízo da imediata intimação do executado (art. 669), providenciar, para presunção absoluta de conhecimento por terceiros, o respectivo registro no ofício imobiliário, mediante apresentação de certidão de inteiro teor do ato e independentemente de mandado judicial” (todos grifos nossos).

Os tribunais brasileiros também já haviam começado a prestigiar em suas decisões a boa-fé do terceiro adquirente, o que culminaria em 2009 com a edição da Súmula nº 375 do eg. STJ, em cuja ementa se lê: “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.

Em progressiva depuração do tema, o passo seguinte foi a consolidação do entendimento em lei, o que se deu com a edição da Lei nº 13.097/2015, cujos arts. 54 e 55 assim dispõem:

Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:

I – registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias;

II – averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos do art. 615-A da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil;

III – averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e

IV – averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil. 

Parágrafo único. Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel.

Art. 55. A alienação ou oneração de unidades autônomas integrantes de incorporação imobiliária, parcelamento do solo ou condomínio edilício, devidamente registrada, não poderá ser objeto de evicção ou de decretação de ineficácia, mas eventuais credores do alienante ficam sub-rogados no preço ou no eventual crédito imobiliário, sem prejuízo das perdas e danos imputáveis ao incorporador ou empreendedor, decorrentes de seu dolo ou culpa, bem como da aplicação das disposições constantes da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. (grifos nossos)

A Lei nº 13.097/2016 é fruto da conversão da MP 656/2014, diploma gestado para alcançar “quatro grandes objetivos“, dentre os quais “aprimorar a legislação de registros públicos de imóveis“, “retomando, assim, o espírito de certas alterações promovidas na Lei nº 5.869 de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil – CPC), pela Lei nº 11.382, de 6 de dezembro de 2006“, conforme se lê no relatório produzido pelo Senado Federal para justificar sua elaboração.

Compulsando esse mesmo relatório, pode-se verificar o espírito que moveu o legislador, coincidente com os argumentos que já impulsionavam doutrina e jurisprudência:

A ideia, portanto, é a de que, doravante, não se possam opor a terceiro adquirente de boa-fé atos jurídicos não consignados na matrícula do imóvel, mesmo para fins de evicção, e inclusive na hipótese de alienação ou oneração de unidades autônomas integrantes de incorporação, imobiliária, parcelamento do solo ou condomínio de lotes de terreno urbano, sendo que nesse caso, eventuais credores do alienante ficam sub-rogados no preço ou no eventual crédito imobiliário.

[…]

Igualmente como consequência dos novos procedimentos registrais trazidos pela MPV, será doravante dispensada, para a lavratura de atos notariais relativos a imóveis (a exemplo de escrituras de compra e venda ou de inventário e partilha), a apresentação da certidão de feitos ajuizados, devendo, em razão disso, ser exibida a certidão de propriedade do bem […].

O INCISO IV DO ARTIGO 792 DO NOVO CPC

Pois bem. Com a entrada em vigor do texto do novo Código de Processo Civil, Lei nº 13.105/2015, voltou a pairar sobre o tema danosa controvérsia. Da leitura do art. 792 do novo Código, vê-se que os incisos I, II e III estão rigorosamente dentro da sistemática consolidada pela Lei nº 13.097/2015, na medida em que se referem expressamente à necessidade de averbação para a caracterização da fraude:

Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:

I – quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver;

II – quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828;

III – quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude; […].

A dificuldade encontra-se no inciso IV, que recupera a ideia de que caracteriza a fraude à execução a alienação ou oneração ocorrida quando “tramitava contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência“.

Ora, o que pretendeu com esse inciso IV o legislador? Pôr a perder um sistema coeso, lenta e cuidadosamente construído conjuntamente por doutrinadores, julgadores e legisladores, desde o advento do Código Civil até a promulgação da Lei nº 13.097/2015? Um sistema corroborado pelo próprio art. 792 do novo CPC, em seus incisos I, II e III?

Não parece haver justificativa para tal interpretação, ainda que, à primeira vista, exsurja tal temor. O entendimento acerca da fraude à execução consolidado na Lei nº 13.097/2015, repita-se, não foi fruto do acaso, tampouco do açodamento; pelo contrário, nasceu do trabalho diuturno dos operadores do Direito, de lento amadurecimento do tema no seio da comunidade jurídica, e tramitou paralelamente ao novo CPC – notem a proximidade da data de suas publicações, quase contemporâneas. Nesse cenário, não se poderia admitir um retorno ao status quo ante, sem justificativa; as discussões que fundamentaram a redação dos arts. 54 e 55 da Lei nº 13.097/2015 são recentes, expressam entendimento amplamente debatido e, como tal, merecem ser prestigiadas.

Teria ocorrido um “cochilo” do legislador, que, por tradição, teria repetido, no inciso IV do art. 792 do novo CPC, a vetusta fórmula pela qual se caracterizou outrora a fraude à execução no Direito brasileiro?

Para alguns intérpretes, lidas em conjunto, as disposições do novo CPC e da Lei nº 13.097/2015 permitem sustentar que o art. 54 da Lei nº 13.097/2015 liga-se ao inciso IV do art. 792 do novo CPC “não para reforçá-lo, mas para excepcioná-lo[2]. Em outras palavras, o inciso IV do art. 792 do novo CPC estaria se referindo apenas a bens não sujeitos a registros públicos, situação que poderia ser corroborada pelo § 2º do mesmo artigo, mantendo-se intacta a sistemática consolidada pela Lei nº 13.097/2015 para os bens imóveis.

Ainda assim, estaríamos diante de um problema.

De fato, o § 2º do art. 792 do novo Código de Processo Civil determina que, “no caso de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para aquisição mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem“.

Isso significa que, na aquisição de bem sujeito a registro (bens imóveis), o adquirente fica livre de solicitar tais certidões pessoais dos vendedores, bastando obter a certidão de matrícula. Mas, para a aquisição de bens móveis, a prova de sua boa-fé estaria subordinada a essa condição? A lei não é clara.

Tomando-se essa interpretação como correta, assistiríamos a situação curiosa, em que eventual adquirente, digamos, de uma coleção de livros usados, precisaria obter certidões dos distribuidores da Justiça Estadual, Federal e do Trabalho, além da Junta Comercial, do local onde se encontra o bem e do domicílio do vendedor, e, para o caso de descobrir ser o vendedor integrante de sociedade empresarial, todas essas mesmas certidões para a pessoa jurídica, a fim de se pôr a resguardo de eventuais ações executivas contra o vendedor. Somente a adoção de tais cautelas comprovaria sua boa-fé.

Faria sentido impor ao adquirente de bem móvel um ônus em tudo superior àquele que recai sobre o adquirente de bem imóvel?

Haveria viabilidade em tal sistema, que, para dizer o mínimo, engessaria as relações comerciais e semearia a desconfiança no mercado? Não seria mais fácil, simplesmente, a presunção de boa-fé do terceiro adquirente, criteriosamente trabalhada pela sistemática anterior?

Em recente entrevista sobre o tema para o boletim da AASP, Flávio Tartuce[3] lembra que, com o advento do novo Código de Processo, o jurisdicionado brasileiro passa a estar adstrito não mais apenas à lei, mas também à jurisprudência dos tribunais superiores, em razão, sobretudo, dos comandos do art. 928. Sob esse ponto de vista, adverte que toda a legislação acerca da fraude à execução deve ser interpretada de acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, contexto em que ganha relevo o enunciado de Súmula nº 375, já comentado acima, bem como as teses firmadas no julgamento do REsp 956.943/PR, em incidente de recursos repetitivos, em 2014. Em outras palavras, o próprio novo Código de Processo Civil está assentado sobre a premissa da importância da exegese lentamente construída, dia a dia, julgamento por julgamento.

Fato é que, embora defensores da Súmula nº 375 do STJ e da Lei nº 13.097/2015, em recente pesquisa no Tribunal de Justiça, com pesar, verificamos recentes decisões que retomam a mesma ideia de julgados da década de 1970, desconsiderando o registro da penhora na matrícula do imóvel.

Refiro-me, por exemplo, ao julgado da lavra do Desembargador Vito Guglielmi, julgado no dia 27 de outubro de 2016[4]. Segundo o julgado, que reformou decisão de 1º grau, basta ação em curso contra o devedor capaz de reduzi-lo à insolvência para que seja decretada a fraude à execução. O julgado desconsiderou o teor da Súmula nº 375 do STJ.

Além disso, em outro julgado[5], datado do dia 17 de novembro de 2016, o Desembargador Ruy Coppola afirmou que, “para a caracterização da fraude à execução nestas hipóteses, mostra-se necessária a presença de dois requisitos fundamentais: a existência de ação em curso, com a citação válida do réu/executado e que a alienação ou oneração do bem conduza o devedor ao estado de insolvência“. No que diz respeito à Súmula nº 375 do STJ, o julgado afirma que, “em se tratando de transferência gratuita de propriedade imóvel, não se aplica a Súmula nº 375 do Superior Tribunal de Justiça, porquanto irrelevante, em tais hipóteses, perquirição quanto à boa-fé dos donatários“.

Em acórdão da lavra do Desembargador Sérgio Shimura[6], afirmou-se que a Súmula nº 375 não tem caráter vinculante e que “a lei não exige necessariamente o conluio fraudulento. Basta que o executado aliene seus bens após a citação, cuja venda o reduza a insolvência“. Por fim, assevera o julgado que, “pela máxima de experiência, todo interessado na aquisição de imóvel deve pesquisar junto ao distribuidor cível da situação do imóvel ou do domicílio do alienante para constar se pende alguma demanda contra o alienante“.

Advirto o leitor, contudo, que há esperança. Os julgados acima não refletem a jurisprudência aparentemente majoritária do Tribunal paulista, que ainda possui inúmeras decisões[7] reafirmando que a fraude à execução requer a observância do registro da penhora na matrícula do bem, presumindo a boa-fé do terceiro adquirente (presunção relativa, repita-se).

Nesses termos, na esperança de que a presunção de boa-fé prevaleça sob a presunção de má-fé, continuamos animados de que o atual CPC/2015 não retroceda à construção doutrinária e jurisprudencial da Súmula nº 375 do STJ.

Referências bibliográficas

[1] GOMIDE, Alexandre Junqueira. A proteção do terceiro adquirente na fraude de execução e a edição da Súmula nº 375 do Superior Tribunal de Justiça. Revista do IASP, a. 13, n. 25, p. 11-41, jan./jun. 2010.

[2] AMADEO, Rodolfo da Costa Manso Real. Problemas de direito intertemporal na nova disciplina da fraude à execução no ordenamento jurídico brasileiro. In: YARSHELL, Flávio Luiz; PESSOA, Fabio Guidi Tabosa (Coord.). Direito intertemporal. Salvador: Jus Podivm, 2016. p. 439.

[3] TARTUCE, Flavio. O novo CPC e as ações imobiliárias. Boletim da AASP, mar. 2016.

[4] TJSP, AI 2102787-20.2016.8.26.0000, Rel. Vito Gugliemi, J. 27.10.2016.

[5] TJSP, AI 2161835-07.2016.8.26.0000, Rel. Ruy Coppola, J. 17.11.2016.

[6] TJSP, AI 2020018-52.2016.8.26.0000, Rel. Sergio Shimura, J. 11.05.2016.

[7] Nesses termos, Apelação nº 1066584-04.2015.8.26.0100, Rel. Tasso Duarte de Melo, J. 09.11.2016; Apelação nº 0000190-87.2016.8.26.0363, Rel. Melo Colombi, J. 17.11.2016; Apelação nº 0046534-34.2012.8.26.0114, Rel. Moreira Viegas, J. 10.11.2016.