A FORÇA PRINCIPIOLÓGICA DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO
Jesualdo Eduardo de Almeida Junior
SUMÁRIO: Introdução – 1. Pós-positivismo processual – 2. Parte geral – Princípios e garantias: 2.1. Processo civil constitucionalizado; 2.2. Princípio do impulso oficial; 2.3. Princípio da duração razoável do processo e da primazia da decisão de mérito – 3. Normas processuais e sua aplicação – Considerações finais – Referências.
INTRODUÇÃO
Neste limiar do novo e esperado Código de Processo Civil, faz-se imperioso que haja uma análise pormenorizada dos seus recém-criados dispositivos.
O objetivo do presente artigo foi desta forma, abordar a Parte Geral deste novo Código. Em especial, analisou-se a parte introdutória, com destaque para os princípios que nortearão o novo Processo Civil, com vistas a dar a importância compatível com a realidade prática.
O material utilizado foi basicamente o texto do novo Código, com amparo de doutrina abalizada e jurisprudência pertinente, a fim de se extrair uma análise inicial das recentes alterações processuais aos operadores do Direito.
Como toda novidade, é evidente que está sujeita a divergências interpretativas e sua correta compreensão está no porvir. É idiossincrática a desavença neste momento de descoberta da norma processual. Sobretudo porque a norma, conforme lições de Friederich Muller é o texto legislativo mais a interpretação.
Por meio de um método dedutivo analisou-se a norma em abstrato, com uma perspectiva de aplicação tópica e prática.
Assim, num primeiro capítulo falou-se do pós-positivismo processual. Após, abordaram-se os princípios processuais expressos no Código, em especial a inserção dos princípios processuais constitucionais, a manutenção de princípios já consagrados no universo processual, e a introdução de outros auspiciosos, como o da primazia da decisão de mérito.
1 PÓS-POSITIVISMO PROCESSUAL
Já se disse amiúde que o direito está em crise, em especial dentro das concepções positivistas. Nas palavras de Luiz Roberto Barroso (2006, p. 26), o direito positivista vive uma grave crise existencial, na medida em que não consegue entregar com eficiência os produtos que fizeram sua reputação ao longo dos séculos, ao passo que a “a injustiça passeia pelas ruas com passos firmes e a insegurança é a característica da nossa era”.
O pós-positivismo representaria, então, exatamente o anseio por um novo fôlego, a busca de uma nova perspectiva, a ousadia de erguer a cabeça e olhar por sobre as ondas… (MARANHÃO, 2015).
O pós-positivismo não surge com o ímpeto da desconstrução, mas como uma superação do conhecimento convencional. Ele inicia sua trajetória guardando deferência relativa ao ordenamento positivo, mas nele reintroduzindo as ideias de justiça e legitimidade (BARROSO, op. cit., 27).
E o pós-positivismo tem como principal marca a assunção da normatividade dos princípios. Neste passo, apesar das leis, decretos e regras escritas em geral serem elementos imprescindíveis para a construção do Direito, são os princípios que assumem papel fundamental ao colocarem de lado uma perspectiva dogmática presa nas normas programáticas (EIRAS, 2015).
A normatividade dos princípios percorreu três fases distintas: a jusnaturalista, a positivista e a pós-positivista. Na primeira, os princípios estavam fora do Direito, num campo metafísico, associados à dimensão ético-valorativa inspiradora do Direito.
Na fase positivista os princípios ingressaram nos códigos e leis como fonte normativa subsidiária, com a função de garantir a inteireza e coesão do sistema.
Por fim, a fase pós-positivista atual, na qual os princípios constitucionais têm um papel fundamental, consagrando-se não apenas como direito, mas como “pedestal” normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais.
Dworkin (2010, p. 32) atesta grosso modo, que os princípios existem porque as regras não dão conta do recado. Para ele, o Direito de uma comunidade é um conjunto de regras que detém pedigree, que podem ser usadas para distinguir regras válidas de espúrias, e esse conjunto de regras coexiste com o Direito.
Neste passo, os princípios podem promover uma maior harmonização e otimização do sistema jurídico.
A expressão “princípios jurídicos” tem sido empregada com diferentes significados. E, com maiores ou menores variações, podemos identificá-los com as seguintes características:
– Normas providas de alto grau de generalidade;
– Normas providas de alto grau de indeterminação;
– Normas de caráter programático;
– Normas de posição hierárquica elevada;
– Normas de importância fundamental no sistema jurídico e político;
– Normas dirigidas aos órgãos de aplicação, cuja função é a escolha dos dispositivos ou das normas aplicáveis aos casos concretos.
Deste modo, os princípios são claramente normas. Normas com características próprias. Porém, normas!
Por outro lado, observa-se claramente o fenômeno da constitucionalização dos direitos. Paulo Luiz Netto Lôbo (2010, p. 100) afirma que a “constitucionalização” do Direito trouxe modificações profundas na atitude dos operadores do direito: “deve o jurista interpretar o Código Civil segundo a Constituição e não a Constituição segundo o Código”.
Percebe-se, dessa forma, que sem a observação das categorias fundamentais da Constituição, a interpretação das leis civis e processuais civis desvia-se de seu real significado.
Neste sentido, hoje se reclama uma releitura do Direito Processual. Deveras, a constitucionalização dos princípios processuais, sobretudo daqueles previstos no art. 5º, XXXV à XXXVIII e LIII à LXXV, muda veementemente o foco do estudo do processo civil. “Ontem, os Códigos; hoje, a Constituição”, nos dizeres do festejado Paulo Bonavides.
Deste modo, o legislador e o intérprete do texto dos Códigos deverá dar às regras processuais uma “interpretação constitucional”, lembrando-se sempre que é a própria Constituição quem traz os principais apontamentos em seara processual.
Neste propósito, os princípios da igualdade, da solidariedade e, principalmente, da dignidade da pessoa humana, constitucionalmente visíveis, deverão afastar-nos da concepção kantiniana para a solução dos conflitos de interesse, aplicando-se uma regra universal a um caso individual. É necessário, além disso, entender e respeitar as minorias, sobretudo aqueles que vivem entorno do Estado e por ele ignorado, ou na conceituação de Hanna Arendt, as displaced persons.
Neste propósito, o princípio da dignidade da pessoa humana ganha contornos de cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana. É o valor máximo do nosso ordenamento jurídico (TEPEDINO, 1999, p. 20). Eis as palavras de Paulo Luiz Netto Lobo (2007, p. 3):
A solidariedade e a dignidade da pessoa humana são os dois hemisférios indissociáveis do núcleo essencial irredutível da organização social, política e cultural e do ordenamento jurídico brasileiro. De um lado o valor da pessoa humana enquanto tal, e os deveres de todos para com sua realização existencial, nomeadamente do grupo familiar; de outro lado, os deveres de cada pessoa humana com as demais, na construção harmônica de suas dignidades. O princípio da solidariedade é o grande marco paradigmático que caracteriza a transformação do Estado liberal e individualista do século XIX, em Estado democrático e social, com suas vicissitudes e desafios, que o conturbado século XX nos legou. É superação do individualismo jurídico pela função social dos direitos.
A valorização dos princípios na ordem jurídica, principalmente a partir de sua constitucionalização e normatizações, traz inegavelmente a aproximação entre Direito e Moral.
Neste aspecto, a prevalência do princípio da dignidade da pessoa humana significa o reconhecimento de que o Estado existe em função daquela, e não o contrário. O homem constitui finalidade precípua e não é mero meio da atividade estatal (DINIZ, 1998, p. 13).
E neste particular, o Código de Processo Civil que ora se abrocha, inicia suas regras com a proposição dos princípios, mostrando-se compatível com a realidade constitucional neopositivista e neoconstitucionalista.
2 PARTE GERAL – PRINCÍPIOS E GARANTIAS
2.1. Processo civil constitucionalizado
O artigo primeiro do Código de Processo Civil faz clara referência à constitucionalização das regras processuais. Com efeito, o art. 5º da Constituição Federal elenca vários princípios que são de observância obrigatória nos processos judiciais. E dispôs-se no Código que “o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código” (art. 1º).
Isso realça o truísmo de que não se pode compreender o Processo Civil brasileiro alheio à influência e interpretação do texto constitucional.
Ademais, impôs-se que “ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência” (art. 8º).
Note-se que a redação não mais dispõe sobre “aplicar a lei”. Agora, o juiz aplica o “ordenamento jurídico”. A Teoria Geral do Direito há muito reclamava esta proposta. Deveras, o Direito não se resume à lei. Princípios constitucionais, princípios gerais, costumes, doutrina e jurisprudência há muito são vistos como fontes jurídicas, critérios de hermenêutica e de integração de anomias. Logo, mui feliz o legislador ao atentar-se a este primado.
Ademais, há clara referência ao princípio da dignidade da pessoa humana. Conforme Zulmar Fachin (2010, p. 198), a dignidade é, pois, um valor nuclear do ordenamento jurídico brasileiro. E, por óbvio, não poderia ser excluído do processo:
A dignidade da pessoa é princípio fundamental da República Federativa do Brasil. É o que chama princípio estruturante, constitutivo e indicativo das ideias diretivas básicas de toda a ordem constitucional. Tal princípio ganha concretização por meio de outros princípios e regras constitucionais, formando um sistema interno harmônico, e afasta de pronto, a ideia do predomínio do individualismo atomista do Direito. Aplica-se como leme a todo o ordenamento jurídico nacional compondo-lhe o sentido e fulminando de inconstitucionalidade todo preceito que com ele conflitar. É de um princípio emancipatório que trata.
Por conseguinte, a dignidade da pessoa humana não é um simples valor moral. É, também, um valor jurídico, tutelado pelo Direito, protegido contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral. Todo indivíduo tem, assim, o direito de exigir que se abstenham ilicitamente de lesá-lo física ou moralmente, de exigir dos outros um comportamento que respeite os seus diversos modos de ser, físicos ou mesmo morais. E o Processo Civil está a serviço disto.
Hélio Bicudo (1999, p. 76) sustenta que a dignidade da pessoa humana repousa numa integração pragmática de valores, que pode assim ser analisada sob o viés da garantia e a defesa da autonomia individual por meio da vinculação dos poderes públicos a conteúdos, formas e procedimentos do Estado de Direito.
Na visão de Bicudo, a dignidade da pessoa humana repousa em se estabelecerem procedimentos e formalidades estatais como forma de se garantir a proteção da dignidade da pessoa humana (NUNÕ, 1990, p. 318). Nesta perspectiva, é corolário da dignidade da pessoa humana que qualquer pessoa capaz disponha de armas processuais plúrimas, efetivas e céleres, a fim de se garantir a proteção de seus direitos e, em última análise, de sua dignidade.
Digno de nota, também, é que o Código mencionou no art. 8º quanto à necessidade de se observarem os princípios da administração pública, em especial a legalidade, publicidade e eficiência, e também albergou a razoabilidade e proporcionalidade como vetores principiológicos.([1])
A razoabilidade e a proporcionalidade compõe o denominado substantive process of law. Por consequência, não vigora mais a ideia de um juiz neutro, alheio às contingências fáticas. Numa época em que o exercício abusivo de direito é reputado como ato ilícito pelo Código Civil brasileiro (art. 187), a tônica das relações jurídicas e, in casu, das relações judiciais, deverá se pautar pelo critério do razoável. Demandas desproporcionais com pedidos excessivos, bem como defesas procrastinatórias, requerimentos de produção de provas desnecessários, entre outros exemplos, deverão ser de plano, repelidos.
Outrossim, o comedimento nas condenações pecuniárias deverá ser levado em consideração nos sentenciamentos, a fim de se evitarem ganhos injustiçados ou fixação de valores que não satisfaçam as necessidades do demandante.
Medidas liminares e coercitivas também deverão seguir o mesmo critério e não poderão ultrapassar os limites do razoável e proporcional. Conforme Sérgio Ferraz (1995, p. 221):
Ora, diante de tal doutrina, o juiz passa a ter uma atuação política – não custa esclarecer, novamente, que quando falo em política, refiro-me à política em seu exato sentido, no seu sentido grego, não, evidentemente, à política partidária, que esse tipo de política nós, juízes, não praticamos e a queremos distante dos Tribunais – atuação política que confere preeminência à função jurisdicional. Essa doutrina de Direito Administrativo toma corpo, é objeto de considerações dos publicistas, constitui a tônica do moderno Direito Público.
O substancial due process é, pois, uma limitação substantiva geral ao absolutismo da legislação e, mormente, do Poder Público e seu Poder de Polícia, sobretudo quando imponham limitações apriorísticas aos direitos clássicos, como à propriedade privada, à liberdade contratual e demais direitos da pessoa humana.
A razoabilidade e a proporcionalidade permitirão aquilo que Canotilho (1998, p. 1109-1111) chama de ponderação de bens ocorrente no caso de tensão entre direitos, cuja solução dar-se-ia pelo balancing process, visando elaborar critérios de ordenação para, em face dos danos normativos e factuais, obter-se a solução justa para o caso.
Essa ponderação seria devida quando houvesse a existência de pelo menos dois bens ou direitos reentrantes no âmbito de proteção de duas normas jurídicas, e ante a inexistência de regras abstratas de prevalência.
2.2. Princípio do impulso oficial
Mantendo-se a tradição, “o processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo as exceções previstas em lei” (art. 2º). Assim, as postulações e as exceções devem ser formuladas pelas partes. Porém, “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva (art. 6º)”.
Deste modo, a teoria da coparticipação entre juízes e partes foi erigida como regra básica, assegurando-se, inclusive, “às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório” (art. 7º).
De efeito! O conceito acadêmico de que a relação processual é tripartite, conforme a figura abaixo, formando-se pelo Autor, Réu e Juiz, dentro de uma triangulação equidistante, não pode mais prosperar. Eis o gráfico do modelo tradicional:
Reclama-se que o Juiz não seja mais impassível diante do caso concreto. Na busca da verdade (melhor falar em busca de certezas ou juízos de verossimilhança) deve o juiz disponibilizar de poderes maiores, a fim de que eventualmente supra a deficiência de uma das partes. Ao contrário de uma relação triangular, existiria, sim, uma relação linear, em que o Juiz desceria de seu pedestal equidistante e desenvolveria sua função constitucional, realisticamente.
Exemplo 01: Relação linear em que o juiz mostra-se equidistante das partes por ambas estarem suficientemente bem representadas em juízo.
Autor_____________________Juiz______________________Réu
Exemplo 02: Relação linear em que o juiz aproxima-se mais do autor, a fim de suprir falhas postulatórias.
Autor_____________Juiz______________________________Réu
Exemplo 03: Relação processual linear em que o juiz aproxima-se mais do réu, dada sua deficiência de defesa técnica.
Autor____________________________________Juiz_______Réu
Em todos os exemplos acima se busca um equilíbrio de forças, com uma atuação mais direta e efetiva do juiz, a fim de suprir eventuais falhas postulatórias para a busca da “primazia do mérito”, que em outras palavras equivaleria dizer que o que se pretende é efetivamente a solução justa da lide.
Nesta toada, se as partes estão bem representadas, mediante advogados e expedientes processuais adequados, sérios e plausíveis, não se fará necessário que o juiz exceda sua função de mero expectador e julgador. O exemplo 01 é retrato disto, e neste caso, o juiz permanece inerte, apenas como destinatário de fatos, fundamentos e provas.
Porém, se uma das partes não possui instrumentos técnicos e monetários à suficiência, o juiz tem o dever de zelar pela manutenção da estrita igualdade processual, ainda que, para tanto, deva pender para um dos lados, suprindo, destarte, a falha de postulação e produzindo declarações de ofício. José Renato Nalini (2000, p. 20), neste mesmo sentido, leciona:
O desequilíbrio da balança é evidente quando, de um lado, situa-se empresa provida de infindáveis arsenais para um litígio que lhe convém, muitas vezes, institucionalizar ao invés de pacificar. De outro, o indivíduo isoladamente considerado, carecedor de armas compatíveis para enfrentar a pugna, onde começa já na condição de perdedor.
O juiz não pode se recusar ao exercício de sua responsabilidade política e ética sob o velho pretexto de uma mais agnóstica “neutralidade” (CAPELETTI, 2000, p. 144). Exige-se-lhe não apenas reequilibrar as situações díspares, mas ainda oferecer seu talento, desforço pessoal e inteligência para ampliação real do rol dos atendidos pela Justiça. Neste diapasão, além do Poder Geral Instrutório, o art. 373, § 1º, “dispõe que diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído”.
Ademais, “O juiz pode dilatar prazos para garantir efetiva defesa, nos termos do art. 139, VI”.
Por outro lado, conquanto a iniciativa seja das partes, o Código permitiu ao juiz agir de ofício no caso de arrecadação de bens dos ausentes (art. 744), no procedimento das coisas vagas (art. 746) e na arrecadação em caso de herança jacente (art. 738).
Também se deferiu a atribuição de agir de ofício em várias oportunidades, como decretar ineficaz a cláusula de eleição de foro abusiva (art. 63, § 3º), a declaração de incompetência absoluta (art. 64, § 1º), a condenação em litigância de má-fé (art. 81), a correção do valor da causa (art. 292, § 3º), a declaração de questões preliminares de mérito (art. 337) e até a determinação de produção de provas (art. 370).
Todavia, uma novidade é muito indicativa: “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício (art. 10)”.
Assim, ainda que caiba ao juiz decidir de ofício sobre determinada questão, obrigatoriamente, as partes deverão se manifestar primeiramente sobre o tópico para que, somente depois, o órgão julgador resolva a questão. Por conseguinte, o princípio do contraditório deixa sua dimensão formal de mera garantia de ciência e oportunidade de manifestação e ganha contornos substanciais, como garantia de influência no julgamento e de não “surpresa” na decisão. Aderiu-se ao aforismo informação + reação = influência.
Contudo, claro, no art. 9º fez-se clara referência à concessão de medidas decisórias de contraditório diferido, podendo excepcionalmente ser deferidas sem que a outra parte seja ouvida, em casos, por exemplo, “de tutela provisória de urgência e em decisões liminares em tutela de evidência”.
2.3. Princípio da duração razoável do processo e da primazia da decisão de mérito
Entronizando em bom altar o princípio da “razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (CF, art. 5º, LXXXVIII), determinou-se que “as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa” (art. 4º). Porém, não apenas isto se extrai deste artigo; por ele também se depreende o princípio da primazia da decisão de mérito, sob o qual cabe melhor análise.
O art. 4º, acima citado, deixa claro que as partes têm direito a uma solução integral de mérito. Via de consequência, o Código atenua a importância de julgamentos sem análise de mérito e extinção de feitos por questões meramente processuais. E a efetividade deste princípio está lançada em vários artigos do novo Código de Processo Civil. Por exemplo:
- a) O art. 1.007, § 2º, do novo Código de Processo Civil somente permite a deserção dos recursos sujeitos a preparo por insuficiência no valor, inclusive porte de remessa e de retorno, se o recorrente, intimado na pessoa de seu advogado, não vier a supri-lo no prazo de 5 (cinco) dias;
- b) Sobretudo no Tribunal paulista, é corriqueira deserção de recuso por preenchimento equivocado da guia de taxa de preparo. Agora, pelo § 7º do art. 1.007, “o equívoco no preenchimento da guia de custas não implicará a aplicação da pena de deserção, cabendo ao relator, na hipótese de dúvida quanto ao recolhimento, intimar o recorrente para sanar o vício no prazo de 5 (cinco) dias”;
- c) Na ação monitória, se o juiz tiver dúvida quanto o documento que a instrui ser pertinente àquele procedimento, ao invés de rejeitar liminarmente a ação deverá intimar a parte para, querendo, emendar a petição inicial, adaptando-a ao procedimento comum (art. 700, § 5º);
- d) Se promovida a ação rescisória em tribunal incompetente, nos termos do art. 968, § 5º, não deve ser extinto o feito, mas sim intimado para emendar a petição inicial a fim de adequar o objeto da ação rescisória e permitir-se a remessa dos autos ao Tribunal competente
- e) Se o recorrente desistir do recurso, isso não impede a análise de questão cuja repercussão geral já tenha sido reconhecida e daquele objeto de julgamento de recursos extraordinários ou especiais repetitivos (art. 988);
- f) O juiz, ao verificar que a petição inicial não preenche os requisitos dos arts. 319 e 320, ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, determinará que o autor, no prazo de 15 (quinze) dias, a emende ou a complete, indicando com precisão o que deve ser corrigido ou completado (art. 321);
- g) Quando a decisão não for meritória e sobrevier recurso de apelação, o juiz terá prazo de 05 dias para se retratar.([2])
A proposta é de que as decisões judiciais no curso do processo sejam meritórias. Decisões meramente processuais não estancam a lide, haja vista que possibilitam nova ação judicial sob os mesmos fatos, com a correção da falha processual. Ora, então por que não oportunizar a correção da falha processual no processo já instaurado? É muito mais lógico e racional.
Destaque-se com isto, que se dá ao jurisdicionado o que ele realmente pretende quando promove ou se defende numa ação: a solução efetiva e real de seu caso. É como se o processo devesse dar “quanto for possível praticamente a quem tenha um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tenha direito de conseguir” (CHIOVENDA, 2000, 112).
Destarte, a otimização da atividade processual passará a ser o pressuposto do sistema. E as consequências práticas, além das acima alistadas, são elementares.
Outrossim, será necessária uma revisão de jurisprudência e súmulas que mostrar-se-ão descompassadas cm o novo sistema. Por exemplo, a absurda Súmula 418, do Superior Tribunal de Justiça, que tratava da intempestividade por antecipação de recursos, restará por certo superada. A propósito, prevê seu ainda vigente enunciado: “É inadmissível o recurso especial interposto antes da publicação do acórdão dos embargos de declaração, sem posterior ratificação”.
É compreensível a intempestividade por decurso de prazo. Mas, intempestividade por otimização de prazo é de uma ilogicidade que beira o risível. E esta incongruência não se compadece com a proposta de um processo otimizado, que visa a “primazia do mérito”.
3 NORMAS PROCESSUAIS E SUA APLICAÇÃO
Previu-se que “a jurisdição civil será regida pelas normas processuais brasileiras, ressalvadas as disposições específicas previstas em tratados, convenções ou acordos internacionais de que o Brasil seja parte” (art. 13).
Assim, o Código de Processo Civil deu espaço à introdução de normas processuais que estejam previstas em tratados ou convenções de que o Brasil se torne signatário. Deste modo, sobretudo em demandas que digam respeito a partes estrangeiras, eventualmente o rito processual, os modos de citação, intimações e produção de provas, bem como critérios de julgamento, poderão estar adstrito ao que dispuser o tratado, convenção ou acordo internacional.
Mantendo o princípio do tempus regit actum, “a norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada” (art. 14).
Portanto, o novo Código incidirá imediatamente aos processos em curso. Os atos já praticados serão preservados e reputados válidos se preenchidos os ditames do anterior Código; porém, os atos processuais novos a serem praticados nos processos em curso já o serão pelo novo CPC.
E em clara adoção da transcendência das regras processuais civis, determinou-se a supletividade do CPC para todos os outros tipos de processos para os quais não exista norma específica.([3]) Via de consequência, naquilo que não contrariar o Código específico, o CPC será aplicável aos processos trabalhistas, eleitorais e curiosamente aos procedimentos administrativos. Manteve-se a tendência de que o CPC não interfere nas regras processuais penais, embora jurisprudência atual já adelgaçassem essa regra em casos muito pitorescos.([4])
Deste modo, surge como inevitável que toda a parte de execução de julgados do CPC seja aplicável aos processos trabalhistas em razão da precária positivação de normas processuais daquele jaez.
Também parecerá muito interessante que as normas de instrução do CPC sejam estendidas aos procedimentos administrativos; que as normas recursais do CPC sejam aplicáveis aos procedimentos eleitorais naquilo que eventualmente couber.([5])
No tocante aos princípios das ações, o novo Código manteve a regra das condições do CPC/1973, ao dispor que “Para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade” (art. 17). Logo, conservou-se a necessidade da legitimidade ad causam e da imposição da necessidade, utilidade e adequação da medida judicial. Aliás, preservou-se o método de que “o interesse do autor pode limitar-se à declaração: I – da existência, da inexistência ou do modo de ser de uma relação jurídica; II – da autenticidade ou da falsidade de documento” (art. 19).
Ademais, a regra continua a ser da legitimação ordinária, pois “ninguém poderá pleitear direito alheio em nome próprio, salvo quando autorizado pelo ordenamento jurídico” (art. 18). Neste aspecto, a substituição processual (legitimação extraordinária) somente será admitida em situações excepcionais, tal como no regramento do CPC/1973.
Porém, vale ressaltar que não existe mais a “possibilidade jurídica do pedido” como condição de ação. De há muito se reclamava que esta vertente era, na verdade, decisão de mérito. Sim, pois imagine que alguém promova uma ação de usucapião sem ter preenchido o lapso temporal previsto em lei. Seu pedido seria juridicamente impossível. Todavia, tal decisão seria de mérito, e não mera condição de ação. Atento a esta posição doutrinária, o novo Código aboliu a possibilidade jurídica do pedido como questão processual, erigindo-a a tese de fundo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essas são as principais alterações dos primeiros artigos do novo Código de Processo Civil:
- a) A assunção clara dos princípios processuais que estavam consagrados constitucionalmente;
- b) A expressa menção à proteção da dignidade da pessoa humana como causa inclusive justificadora do próprio processo;
- c) A referência explícita de que o processo civil deverá seguir os primados da razoabilidade e da proporcionalidade, e que o juiz, ao aplicar o “ordenamento jurídico”, deverá observá-los;
- d) A manutenção do impulso oficial do processo dando-se mais poderes ao juiz na condução dos feitos, sobretudo no tocante à distribuição do ônus da prova, dilatação de prazos que poderiam sugerir cerceamento de defesa, bem como a possibilidade de algumas declarações de ofícios, como o reconhecimento da incompetência absoluta, de cláusula de eleição de foro abusiva, condenação em multas por litigância de má-fé, entre outras;
- e) A imposição de que em qualquer decisão, ainda que sejam aquelas passíveis de reconhecimento de ofício, o juiz oportunize as partes a se manifestarem sobre o que tem a ser decidido, evitando, assim, as “decisões surpresas”;
- f) A adesão à coparticipação processual e à possibilidade de influência das decisões meritórias como decorrência da ampla defesa e do contraditório;
- g) A reprodução do texto constitucional no sentido de que o processo deverá observar um prazo razoável de duração;
- h) A criação do interessantíssimo princípio da primazia de julgamento de mérito, que reclama do juiz decisões de caráter de fundo, evitando julgamentos meramente processuais, impondo-se sempre oportunizar às partes a solução de falhas que não tenham um caráter meritório, a fim de que sempre se busque a definitiva solução da lide;
- i) A manutenção da regra da legitimidade ordinária e do interesse de agir, que pode se limitar aos pedidos eminentemente declaratórios;
- j) A aplicação subsidiária das regras processuais civis a todos os outros processos, com exceção do penal.
- k) A manutenção do tempus regit actum.
REFERÊNCIAS
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[1] Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.
[2] Art. 485. O juiz não resolverá o mérito quando:
I – indeferir a petição inicial;
II – o processo ficar parado durante mais de 1 (um) ano por negligência das partes;
III – por não promover os atos e as diligências que lhe incumbir, o autor abandonar a causa por mais de 30 (trinta) dias;
IV – verificar a ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo;
V – reconhecer a existência de perempção, de litispendência ou de coisa julgada;
VI – verificar ausência de legitimidade ou de interesse processual;
VII – acolher a alegação de existência de convenção de arbitragem ou quando o juízo arbitral reconhecer sua competência;
VIII – homologar a desistência da ação;
IX – em caso de morte da parte, a ação for considerada intransmissível por disposição legal; e
X – nos demais casos prescritos neste Código.
- 1º Nas hipóteses descritas nos incisos II e III, a parte será intimada pessoalmente para suprir a falta no prazo de 5 (cinco) dias.
- 2º No caso do § 1º, quanto ao inciso II, as partes pagarão proporcionalmente as custas, e, quanto ao inciso III, o autor será condenado ao pagamento das despesas e dos honorários de advogado.
- 3º O juiz conhecerá de ofício da matéria constante dos incisos IV, V, VI e IX, em qualquer tempo e grau de jurisdição, enquanto não ocorrer o trânsito em julgado.
- 4º Oferecida a contestação, o autor não poderá, sem o consentimento do réu, desistir da ação.
- 5º A desistência da ação pode ser apresentada até a sentença.
- 6º Oferecida a contestação, a extinção do processo por abandono da causa pelo autor depende de requerimento do réu.
- 7º Interposta a apelação em qualquer dos casos de que tratam os incisos deste artigo, o juiz terá 5 (cinco) dias para retratar-se.
[3] Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.
[4] Por exemplo, parte da doutrina já faz alusão à aplicação do art. 273 do CPC, para concessão de liminares em revisões criminais.
[5] Por exemplo, a Súmula nº 728, do STF, já reconhecia a possibilidade de se aplicar aos processos eleitorais as regras do recurso extraordinário com previsão no CPC, respeitado, contudo, o prazo diferenciado daquela Justiça especializada: “É de três dias o prazo para a interposição de recurso extraordinário contra decisão do Tribunal Superior Eleitoral, contado, quando for o caso, a partir da publicação do acórdão, na própria sessão de julgamento, nos termos do art. 12 da Lei nº 6.055/1974, que não foi revogado pela Lei nº 8.950/1994”.